CAPÍTULO IV: OS FILÓSOFOS DA NATUREZA

...do nada, nada pode nascer...
Quando, nessa tarde, a mãe chegou a casa do trabalho, Sofia estava
sentada no balanço e meditava sobre que relação poderia existir entre o curso de
filosofia e Hilde Möller Knag, que não receberia nenhum postal de aniversário do
seu pai.
— Sofia! — chamou a mãe de longe — Há aqui uma carta para ti!
Sofia assustou-se. Ela tinha recolhido o correio, por isso a carta tinha de ser
do filósofo. O que havia de dizer à mãe? Ergueu-se lentamente do balanço e foi
ter com a mãe.— Não tem selo. Provavelmente é uma carta de amor.
Sofia pegou nela.
— Não a queres abrir?
O que é que havia de dizer?
— Já ouviste falar de pessoas que abrem cartas de amor quando a mãe,
por detrás, espreita de soslaio?
Era preferível que a mãe acreditasse que se tratava de uma carta de amor.
Era uma situação extremamente penosa, visto que Sofia era ainda bastante nova
para receber cartas de amor; mas seria ainda mais desagradável se se viesse a
saber que ela recebia, por correspondência, um curso de um filósofo
inteiramente desconhecido que brincava ao gato e ao rato com ela.Era um envelope branco, pequeno. Já no quarto, Sofia leu as três perguntas
que o envelope continha: “Haverá um elemento primordial a partir do qual tudo é
gerado? Será que a água se pode transformar em vinho? Como é que a terra e a
água se podem transformar numa rã viva?”.
Sofia achou estas perguntas absurdas, mas andou com elas na cabeça
durante toda a tarde. Na manhã seguinte, na escola, refletiu nas três perguntas
pela ordem apresentada.
Haveria um “elemento primordial”, a partir do qual tudo fosse gerado?
Mas se houvesse um elemento a partir do qual tudo o que está no mundo fosse
produzido, como é que este elemento poderia transformar-se de repente num
dente-de-leão ou num elefante?
Passava-se o mesmo com a pergunta sobre a água: poder-se-ia
transformar em vinho? Sofia já tinha ouvido dizer que Jesus tinha transformado
água em vinho, mas não interpretara esta história literalmente. E se Jesus tinha de
fato transformado água em vinho, era um milagre, algo que normalmente não
era possível. Sofia não tinha dúvidas sobre o fato de haver uma grande
percentagem de água no vinho e em muitas plantas e animais.
Mas mesmo que um pepino fosse constituído por noventa e cinco por cento
de água, teria de haver algo mais que fizesse com que um pepino fosse um
pepino e não apenas água.E havia ainda a questão da rã. O seu professor de filosofia tinha um fraco
por rãs.
Sofia poderia eventualmente aceitar que uma rã fosse feita de terra e
água, mas nesse caso a terra não podia ser feita de um só elemento. Se a terra
fosse composta de muitos elementos diversos, era possível pensar que a terra
juntamente com a água produzisse uma rã. Se a terra e a água fizessem um
desvio pelos ovos da rã e pelos girinos,bem entendido. É que uma rã não podia
simplesmente crescer numa horta, mesmo que fosse regada muito
escrupulosamente.
Quando, nessa tarde, regressou a casa da escola, havia uma carta grossa
dirigida a ela na caixa do correio. Sofia foi para a toca, como já fizera nos dias
anteriores.

“O projeto dos filósofos”

Eis-nos de novo! É preferível começarmos imediatamente com a lição de
hoje, deixando à parte os coelhos brancos e coisas parecidas.Vou contar-te em linhas gerais como é que os homens, desde a
Antiguidade até hoje, pensaram sobre as questões filosóficas. Tudo por ordem
cronológica.
Visto que a maior parte dos filósofos viveram numa outra época — e
possivelmente também numa cultura completamente diferente da nossa — vale
a pena interessarmo-nos pelo projeto de cada filósofo. Quero com isso dizer que
temos de tentar compreender os aspectos a que o filósofo quis dar resposta.
Um filósofo pode perguntar-se como é que as plantas e os animais
surgiram. Um outro pode querer descobrir se Deus existe, ou se os homens
possuem uma alma imortal.
A partir do momento em que determinamos qual é o projeto de um
determinado filósofo, podemos mais facilmente seguir o seu pensamento. Com
efeito, dificilmente um filósofo se ocupa de todas as questões filosóficas.
Falei sobre o pensamento “dele”, porque a história da filosofia foi escrita,
principalmente, por homens. Isso se deve à condição de inferioridade
freqüentemente atribuída à mulher, tanto no plano físico como no plano
intelectual. É grave, na medida em que, dessa forma, se perderam muitas
experiências. As mulheres só surgem verdadeiramente na história da filosofia
neste século. Não te vou dar trabalhos de casa — nem trabalhos complicados de
matemática. As flexões dos verbos ingleses não me interessam. Mas, de vez em
quando, pedir-te-ei que faças um pequeno exercício. Se aceitares estas
condições, continuamos.“Os filósofos da natureza”
Os primeiros filósofos gregos são designados por “filósofos da natureza”,
porque se interessaram, principalmente, pela natureza e pelos processos físicos.
Já nos interrogamos sobre a origem de tudo. Hoje em dia, muitos homens
acreditam que tudo nasceu do nada em determinada altura. Este pensamento não
estava muito difundido entre os Gregos.
Eles acreditavam que “algo” teria existido sempre.
A questão fundamental não era, portanto, como é que tudo poderia surgir
do nada.Em lugar disso, os Gregos admiravam-se que a água se pudesse
transformar em peixes vivos, e a terra morta em árvores altas ou flores de cores
vistosas. Para não falar de como um bebê pode nascer no corpo da mãe!
Os filósofos viam com os seus próprios olhos que havia na natureza
transformações constantes. Mas como é que essas transformações eram
possíveis? Como é que algo feito de uma substância se poderia transformar numa
coisa completamente diferente?
Era comum entre os primeiros filósofos acreditarem que havia um
elemento primordial responsável por todas as transformações. A forma como
teriam chegado a este pensamento não é clara. Sabemos apenas que ele surgiu
da concepção, segundo a qual, teria de haver um elemento primordial, que daria
origem a todas as transformações da natureza.
O mais interessante para nós não são as respostas que estes primeiros
filósofos encontraram. O mais interessante são as questões que punham e que
tipo de respostas procuravam. Para nós, é mais importante saber como é que eles
pensaram do que o que pensaram.
Podemos constatar que se questionavam sobre a forma como aconteciam
certas transformações na natureza. Procuravam descobrir algumas leis naturais
eternas. Desejavam compreender os fenômenos da natureza, sem recorrer aos
mitos tradicionais. Acima de tudo, procuravam compreender os processos da
natureza através da observação da própria natureza. Isso é completamente
diferente da explicação do relâmpago e do trovão, do Inverno e da Primavera,
por meio da referência aos acontecimentos no mundo dos deuses.Desta forma, a filosofia libertou-se da religião. Podemos afirmar que os
filósofos da natureza deram os primeiros passos em direção a um modo de
pensar “científico”. Assim, abriram caminho a toda a posterior ciência da
natureza.
Quase tudo o que os filósofos da natureza disseram e escreveram perdeuse
para a posteridade. O pouco que sabemos encontramo-lo nos escritos de
Aristóteles, que viveu duzentos anos após os primeiros filósofos. Mas Aristóteles
resume apenas os resultados a que os filósofos anteriores tinham chegado. O que
significa que não podemos saber sempre de que forma é que chegaram às suas
conclusões. Mas sabemos o suficiente para podermos afirmar que o projeto dos
filósofos gregos consista nas questões que estavam relacionadas com o elemento
primordial nas transformações da natureza.
“Três filósofos de Mileto”
O primeiro filósofo de que temos notícia é Tales, da colônia grega de
Mileto, na Ásia Menor. Ele viajava freqüentemente. Diz-se que, certa vez, teria
medido a altura de uma pirâmide no Egito, medindo a sombra da pirâmide no
momento em que a sua própria sombra estava tão alta como ele. Além disso,
conseguiu prever um eclipse do Sol no ano 585 a.C.Para Tales, a água era a origem de todas as coisas. Não sabemos
exatamente o que ele queria dizer com isto. Talvez quisesse dizer que toda a vida
começa na água — e que toda a vida se torna de novo água quando se inicia a
degradação.
Quando esteve no Egito, viu certamente como os campos ficavam férteis
quando o Nilo abandonava as terras que constituíam o seu delta.
Talvez tenha visto também como as rãs e os vermes surgiam à luz do sol
depois de ter chovido.
Além disso, é provável que Tales se tenha questionado quanto ao modo
como a água se pode tornar gelo e vapor — e de novo água.
Afirma-se que Tales disse que “tudo está cheio de deuses”. Apenas
podemos avançar hipóteses sobre a interpretação desta frase. Talvez tivesse
pensado que a terra era a origem de tudo, desde as flores e as sementes, até às
abelhas e baratas. Tinha chegado à conclusão de que a terra estava cheia de
pequenos “gérmenes da vida” invisíveis. O que é certo é que não estava a pensar
nos deuses homéricos.O filósofo seguinte de que temos conhecimento é Anaximandro, que viveu
igualmente em Mileto. Para ele, o nosso mundo é apenas um dos muitos que
nascem de algo e perecem em algo que ele denominou o infinito. É difícil dizer o
que queria significar com o termo infinito, mas sabemos que não pensava, ao
contrário de Tales, numa substância totalmente determinada. Talvez quisesse
dizer que aquilo, a partir do qual tudo é criado, tem de ser completamente
diferente de tudo o que é criado. E visto que tudo o que é criado é finito, tudo o
que lhe é anterior ou posterior tem de ser infinito. É claro que o elemento
primordial não podia ser, assim, simples água. Um terceiro filósofo de Mileto era
Anaxímenes (cerca de 570-526 a. C.). Para ele, o ar era o elemento primordial
de todas as coisas. Anaxímenes conhecia, naturalmente, a teoria de Tales sobre a
água. Mas de onde surge a água? Para Anaxímenes, a água era ar condensado.
Nós sabemos que, ao chover, a água é condensada a partir do ar. Quando a água
é ainda mais condensada, torna-se terra, segundo Anaxímenes. Talvez tivesse
visto que, quando o gelo se derrete, “expele” terra e areia.
De modo análogo, pensava que o fogo era ar rarefeito. Segundo
Anaxímenes, a terra, a água e o fogo tinham origem no ar.
A passagem da terra e da água às plantas no campo não era demorada.
Talvez Anaxímenes pensasse que a terra, o ar, o fogo e a água tivessem de existir
para que pudesse nascer vida. Mas o verdadeiro ponto de partida era o ar. Ele
partilhava, portanto, a concepção de Tales, segundo a qual um elemento
primordial estava na origem de todas as transformações na natureza.
“Do nada, nada pode nascer”.Os três filósofos de Mileto acreditavam num — e apenas num elemento
primordial, a partir do qual todas as outras coisas eram criadas. Mas como
poderia uma substância transformar-se de repente e tornar-se uma coisa
completamente diferente? Podemos designar este problema pelo problema do
devir.
A partir de aproximadamente 500 a.C. viveram na colônia grega de Eléia,
na Itália meridional, alguns filósofos, e estes “eleatas” tratavam destes
problemas. O mais conhecido de entre eles era Parmênides (aproximadamente
540-480 a.C.).
Parmênides acreditava que tudo o que existe, existiu sempre. Esta idéia
estava bastante difundida entre os Gregos. Tinham como evidente que tudo o que
há no mundo existiu desde sempre. Do nada, nada pode nascer, pensava
Parmênides. E nada do que existe pode tornar-se nada.
Mas Parmênides foi mais longe que a maior parte dos outros. Para ele, não
era possível nenhuma verdadeira transformação. Uma coisa só se pode
transformar naquilo que já é.
Parmênides não tinha dúvidas de que na natureza se dão constantemente
transformações. Os seus sentidos apercebiam-se do devir das coisas. Mas nãoconseguia fazer coincidir o que os seus sentidos registravam com o que a razão
lhe dizia. Quando foi obrigado a decidir se devia confiar nos sentidos ou na razão,
decidiu-se pela razão.
Conhecemos a frase: “Só acredito naquilo que vejo.” Mas Parmênides
nem sequer acreditava no que via. Pensava que os sentidos nos forneciam uma
imagem falsa do mundo, uma imagem que não coincidia com o que a razão diz
aos homens. Enquanto filósofo, encarava a sua tarefa como o desmascarar de
todas as formas de “ilusões sensoriais”.
Esta forte confiança na razão humana é designada “racionalismo”. Um
racionalista é uma pessoa que tem uma grande confiança na razão humana,
como fonte do nosso conhecimento sobre o mundo.
“Tudo flui”
“Heráclito”, contemporâneo de Parmênides, era originário de Éfeso na
Ásia Menor (aproximadamente 540-480 a.C.). Segundo ele, as transformações
constantes eram a verdadeira característica da natureza. Podemos dizer que
Heráclito confiava mais nas impressões dos sentidos do que Parmênides.“Tudo flui”, segundo Heráclito. Tudo está em movimento, e nada dura
eternamente. Por isso, não podemos “entrar duas vezes no mesmo rio”. Porque
quando entro no rio pela segunda vez, tanto eu como o rio estamos mudados.
Heráclito explicou, também, que o mundo é caracterizado por contrários
constantes. Se nunca estivéssemos doentes, não compreenderíamos o que é a
saúde. Se nunca tivéssemos fome, não gostaríamos de comer. Se nunca houvesse
guerra, não saberíamos apreciar a paz, e se nunca fosse Inverno, não saberíamos
quando chega a Primavera.
Tanto o bem como o mal ocupam um lugar necessário no todo, dizia
Heráclito. Sem o jogo permanente entre contrários, o mundo terminaria.
“Deus é o dia e a noite, o Inverno e o Verão, a guerra e a paz, a saciedade
e a fome”, dizia. Ele utiliza aqui a palavra “Deus”, mas não se refere aos deuses
de que falam os mitos. Segundo Heráclito, Deus — ou o divino — é algo que
abrange tudo.
Sim, Deus está patente justamente na natureza, que é contraditória e está
em transformação constante.Em vez do termo “Deus”, Heráclito usa freqüentemente a palavra grega
“logos”, que significa razão. Mesmo que nós, homens, não pensemos sempre de
modo igual ou não tenhamos o mesmo bom-senso, tem de haver uma espécie de
“razão universal”, que governe tudo o que acontece na natureza. Esta razão
universal — ou “lei universal” — é comum a todos, e todos os homens se devem
orientar por ela. No entanto, a maior parte deles vive segundo a sua própria razão
particular, segundo Heráclito. Com efeito, ele não tinha uma idéia muito positiva
do seu próximo. As opiniões da maior parte dos homens eram, para ele,
“brinquedos de crianças”.
Em todas as transformações e contradições da natureza, Heráclito via uma
unidade ou totalidade. Aquilo que está na origem de tudo, era designado por ele
“Deus”, ou “logos”.
Quatro elementos principais Parmênides e Heráclito tinham, sob um certo
ponto de vista, concepções opostas. A razão de Parmênides defendia que nada se
pode alterar.Mas as experiências dos sentidos de Heráclito defendiam que, na
natureza, se dão constantemente transformações.
Qual dos dois tinha razão? Devemos confiar na razão, ou nos sentidos?
Tanto Parmênides como Heráclito fazem duas afirmações respectivamente:
Parmênides afirma que:a) nada se pode transformar e que:
b) conseqüentemente as impressões dos sentidos não podem ser dignas de
confiança.
Heráclito, por seu lado, afirma que:
a) tudo se transforma (“tudo flui”) e que:
b) as impressões dos sentidos são dignas de confiança.
Dificilmente pode haver um desacordo maior entre filósofos! Mas qual dos
dois tinha razão? Por fim, Empédocles (aproximadamente 494-434 a.C.), deAgrigento, haveria de encontrar o caminho para sair do novelo no qual a filosofia
se tinha emaranhado. Pensava que tanto Parmênides como Heráclito tinham
razão numa das suas afirmações, mas que ambos se enganavam num ponto.
Segundo Empédocles, a grande discórdia baseava-se no fato de os filósofos
terem pressuposto que apenas havia um elemento. Se isso fosse verdade, então o
abismo entre o que a razão diz e o que recebemos dos sentidos seria
intransponível.
A água não se pode transformar em peixe ou em borboleta. A água não se
pode transformar de todo. A água pura permanece água pura para toda a
eternidade. Parmênides tinha razão em afirmar que nada se transforma.
Simultaneamente, Empédocles estava de acordo com Heráclito, dizendo que
devemos confiar nas impressões dos sentidos. Temos que acreditar no que
vemos, e vemos transformações permanentes na natureza.
Empédocles reconheceu que a idéia de um único elemento primordial
tinha de ser rejeitada. Nem a água, nem o ar se podiam transformar numa
roseira ou numa borboleta. A natureza não podia ter apenas um elemento
constituinte.
Segundo Empédocles a natureza é constituída por quatro elementos
primordiais ou “raízes”, que identifica com a terra, o ar, o fogo e a água.Todas as transformações da natureza resultam do fato de os quatro
elementos se misturarem e se separarem. Tudo é constituído por terra, ar, fogo e
água, misturados em proporções variáveis. Quando uma flor ou um animal
morrem, os quatro elementos separam-se novamente uns dos outros.
Podemos apercebermo-nos destas transformações a olho nu.
Mas a terra, o ar, o fogo e a água permanecem totalmente inalterados ou
intactos, apesar de todas as misturas em que estão presentes. Também não é
verdade que “tudo” se altera. Basicamente, nada se altera. O que sucede é que
quatro elementos diferentes se misturam e se voltam a separar — para se
misturarem novamente no futuro.
Podemos fazer uma comparação com um pintor. Se ele tem apenas uma
cor — por exemplo, o vermelho — não pode pintar árvores verdes.
Mas se tem amarelo, vermelho, azul e preto, pode pintar centenas de cores
diferentes, porque mistura as cores em proporções diferentes.
Um exemplo da cozinha mostra-nos o mesmo. Se eu tivesse apenas
farinha, tinha de ser um ilusionista para fazer um bolo com ela. Mas se tenho
ovos e farinha, leite e açúcar, posso criar variados bolos com os quatro elementos
de base.Não foi por acaso que para Empédocles as raízes da natureza eram
precisamente a terra, o ar, o fogo e a água.
Antes dele, outros filósofos tinham procurado mostrar que o elemento
primordial era a terra ou a água ou o ar ou o fogo. Tales e Anaxímenes tinham
insistido em que a água e o ar eram elementos importantes na natureza.
Para os Gregos, o fogo também era importante. Por exemplo, viam a
importância do Sol em toda a vida da natureza e, obviamente, tinham
conhecimento do calor do corpo nos homens e nos animais.
Talvez Empédocles tenha visto arder um pedaço de madeira. Neste caso,
há algo que se desagrega. Ouvimo-lo no crepitar da madeira. É a água. Algo se
torna fumaça. É o fogo. E vemos claramente o fogo. Quando as chamas se
apagam, algo permanece. É a cinza, ou a terra.
Depois de Empédocles ter indicado que as transformações da natureza são
produzidas através da mistura e separação das quatro raízes, há ainda uma
questão em aberto: qual é a causa pela qual os elementos se unem para que
nasça uma nova vida? E o que é que contribui para que a “mistura”, uma flor,
por exemplo, se desagregue de novo?Segundo Empédocles, há na natureza duas forças diferentes que nela
agem. Designava estas forças por “amor” e “discórdia”. Aquilo que une as
coisas é o amor, o que as desagrega é a discórdia.
Empédocles faz uma distinção importante entre elemento e força. É
importante notar isto. Ainda hoje, a ciência distingue elementos e forças da
natureza. A ciência moderna acredita que todos os processos da natureza se
podem explicar como resultado dos vários elementos e algumas forças da
natureza.
Empédocles também se dedicou à questão do que acontece quando
sentimos algo. Como é que eu posso, por exemplo, “ver” uma flor? O que sucede
então? Já alguma vez refletiste sobre isto, Sofia?
Caso não o tenhas feito, tens a oportunidade de o fazer agora.
Empédocles pensava que os nossos olhos, tal como todas as outras coisas
na natureza, são constituídos por terra, ar, fogo e água. Por isso, a terra do meu
olho apreende o que é feito de terra no que é visto, o ar apreende o que é feito de
ar, o fogo dos olhos apreende o que é feito de fogo, e a água o que é feito de
água. Se faltasse no olho um destes elementos, eu não poderia ver toda a
natureza.“Algo de tudo em tudo”
Um outro filósofo, Anaxágoras (500-428 a.C.), não estava satisfeito com a
conclusão a que se tinha chegado: que um determinado elemento primordial —
água, por exemplo — se pudesse transformar em tudo o que vemos na natureza.
Também não aceitava a concepção segundo a qual a terra, o ar, o fogo e a água
se transformavam em sangue ou ossos, pele ou cabelo.
Anaxágoras achava que a natureza era composta por ínfimas partículas
que não podiam ser apreendidas pelos olhos. Segundo ele, tudo se pode dividir em
partes ainda menores, havendo nessas partículas um pouco de tudo.
Se a pele e o cabelo não podem nascer de uma outra coisa, então tem de
haver também, segundo ele, pele e cabelo no leite que bebemos e nos alimentos
que comemos.
Dois exemplos modernos apontam para aquilo em que Anaxágoras
pensou. Com a técnica “laser” podemos fabricar os chamados “hologramas”. Se
um holograma representa, por exemplo, um carro e este holograma é em
seguida fragmentado, veremos ainda a imagem de todo o carro, mesmo que já
só tenhamos a parte do holograma que mostrava o pára-choques. Isto sucedeporque todo o motivo está presente em cada parte, mesmo a mais reduzida.
O nosso corpo também é basicamente formado desta maneira. Se eu
raspar uma célula da pele do meu dedo, o núcleo da célula não contém apenas a
descrição da minha pele. Na mesma célula, há igualmente a descrição dos meus
olhos, da minha cor de cabelo, do número e aspecto dos meus dedos, etc. Em
cada célula do corpo há uma detalhada descrição da constituição de todas as
outras células do meu corpo. Em cada célula há, portanto, “algo de tudo”. A
totalidade encontra-se na partícula mais reduzida.
Anaxágoras chamou “sementes” a estes elementos infinitamente divisíveis
a partir dos quais se formam os vários corpos. Vimos que segundo Empédocles o
amor unia entre si as várias partes que formavam os corpos na sua globalidade.
Também Anaxágoras imaginava uma espécie de força que, por assim dizer,
produzia a ordem e criava homens, animais, flores e árvores. Designava esta
força por “espírito” ou razão.
Anaxágoras é também digno de nota por ser o primeiro filósofo em Atenas
de que temos notícia. Era oriundo da Ásia Menor, mas foi viver para Atenas com
cerca de quarenta anos. Aí, foi acusado de impiedade e teve que deixar
novamente a cidade.
Afirmara, entre outras coisas, que o Sol não era nenhum Deus, mas uma
massa incandescente, maior que a península do Peloponeso.Anaxágoras interessava-se muito por astronomia. Acreditava que todos os
corpos celestes eram feitos da mesma substância que a terra. Ficou convencido
disto após ter examinado um meteorito. Por isso, era lícito pensar, segundo ele,
que existissem homens noutros planetas. Além disso, esclareceu que a Lua não
brilhava por si mesma, mas era iluminada pela terra. Por fim, explicou a
formação dos eclipses solares.
PS. Obrigado pela atenção, Sofia. Talvez tenhas que ler este capítulo duas
ou três vezes até compreenderes tudo. Mas a compreensão implica um pequeno
esforço pessoal. Dificilmente admirarias uma amiga que soubesse tudo se isso
não lhe tivesse custado nada.
A melhor resposta para a questão do elemento primordial e das
transformações na natureza tem de esperar até amanhã. Conhecerás então
Demócrito. Não revelo mais nada!
Sofia estava na toca e espreitava para o jardim. Tinha que tentar ordenar
os seus pensamentos depois de tudo o que tinha lido.
Era óbvio que a água se podia tornar gelo ou vapor.Mas a água não podia transformar-se numa melancia, visto que mesmo
uma melancia era constituída por algo mais que água. Mas se estava tão certa
disso, era porque o tinha aprendido. Poderia saber que o gelo era constituído
apenas por água se não o tivesse aprendido? Nesse caso, teria que ter observado
muito bem de que modo a água passava a gelo e como o gelo se derretia.
De novo, Sofia procurava pensar por si mesma sem aplicar o que tinha
aprendido de outros.
Parmênides recusara-se a aceitar qualquer forma de devir. E quanto mais
ela refletia sobre isso, mais se convencia de que, de um certo ponto de vista, ele
tinha razão. A sua razão não podia aceitar que “algo” se transformasse
subitamente em “algo” completamente diferente.
Tinha sido muito corajoso da parte dele dizer isto, porque tivera de negar
todas as alterações na natureza, que todo o homem podia observar.
De certeza que muita gente se tinha rido dele.
Também Empédocles se tinha mostrado genial ao explicar que o mundotinha necessariamente de ser constituído por mais do que um só elemento. Desta
forma, todas as alterações na natureza eram possíveis, sem que alguma coisa se
transformasse de fato.
O antigo filósofo grego tinha descoberto isto com o simples uso da razão.
Naturalmente, tinha observado a natureza, mas não tivera nenhuma possibilidade
de efetuar análises químicas, ao contrário da ciência moderna.
Sofia não sabia se estava particularmente convencida de que tudo era
constituído por terra, ar, fogo e água. Mas o que é que isso importava?
Em princípio, Empédocles tinha razão. A nossa única possibilidade de
aceitarmos todas as alterações que os nossos olhos vêem sem perdermos o juízo,
é admitirmos mais do que uma substância.
Sofia achava a filosofia particularmente cativante porque podia seguir
todas as reflexões com o seu próprio entendimento — sem ter de recordar tudo o
que aprendera na escola. Verificou que, na verdade, não se pode aprender
filosofia, mas talvez se pudesse aprender a “pensar” filosoficamente.

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