Hilde Möller Knag acordou na mansarda na antiga moradia do capitão
perto de Lillesand. Olhou para o relógio; eram apenas seis horas. Porém, já era
de dia. Uma larga faixa de sol matinal iluminava o quarto.
Hilde levantou-se e foi à janela. A caminho, inclinou-se para sua
escrivaninha e para uma folha do calendário da mesa. Quinta-feira, 14 de Junho
de 1990. Amarrotou a folha e deitou-a no cesto dos papéis.
“Sexta-feira, 15 de Junho de 1990” era o que estava escrito no calendário;
o algarismo brilhava para ela. Já em Janeiro escrevera nesta folha do calendário
“15 anos”. Achava que fazer quinze anos num dia quinze fazia um efeitoespecial. Nunca haveria de viver isso de novo.
Quinze anos! Não era o seu primeiro dia na sua vida “adulta”? Ela não
conseguia voltar para a cama; além disso, era o último dia de aulas antes das
férias. Nesse dia os alunos só tinham de ir à igreja à uma. E, além disso, dentro
de uma semana o seu pai regressaria do Líbano. Ele prometera estar em casa
para a noite de S. João.
Hilde assomou à janela e olhou para o jardim, para a pequena ponte e
para o barracão vermelho dos barcos. O barco à vela ainda não fora arranjado
para a época do Verão, mas o velho barco a remos estava amarrado à doca.
Não se podia esquecer de tirar a água, depois da forte chuvarada.
Enquanto observava a pequena enseada, lembrou-se de que uma vez, com
seis ou sete anos, subira para o barco a remos e remara sozinha no fiorde. Em
seguida, caíra à água e só a custo conseguira voltar a terra. Arrastara-se por
entre os espessos arbustos completamente molhada. Ao chegar ao jardim em
frente à casa, a mãe veio a correr.
Vira o barco e os remos flutuarem lá fora no fiorde.Hilde ainda sonhava por vezes com o barco, que boiava lá fora às voltas,
completamente abandonado. Tinha sido uma experiência horrível.
O jardim não era nem particularmente frondoso nem cuidado. Mas era
grande e pertencia a Hilde. Uma macieira maltratada pelas intempéries e
algumas groselheiras que já quase não produziam frutos tinham sobrevivido às
violentas tempestades do Inverno.
Entre os rochedos e o matagal estava o velho balanço, no relvado. À
brilhante luz matinal parecia completamente abandonado. Parecia mais triste
porque as almofadas estavam em casa. A mãe de Hilde saíra precipitadamente à
tarde para as salvar do temporal.
Todo aquele grande jardim estava rodeado de bétulas.
Deste modo, ficava um pouco protegido das rajadas de vento mais fortes.
Devido a estas árvores — bjõrketreer —, o terreno recebera o nome de Bjerkely
há mais de cem anos.
O bisavô de Hilde mandara construir a casa pouco antes da mudança do
século. Ele fora capitão de um dos últimos grandes navios à vela. Ainda hoje,
muita gente chamava à casa a “moradia do capitão”.Nessa manhã, ainda se notava pelo jardim que na tarde anterior cho-vera
violentamente. Hilde fora acordada várias vezes por trovões. Mas agora já não se
via uma única nuvem no céu. Após os aguaceiros estivais, o tempo ficava
sempre bastante fresco. Nas últimas semanas, o tempo estivera quente e seco, e
as bétulas tinham ficado com feias manchas amarelas na parte exterior da
folhagem. Agora, o mundo parecia lavado de fresco. Nessa manhã, toda a sua
infância parecia também ter-se extinguido com o trovão.
“Claro, dói quando os botões desabrocham... Não fora uma poetisa sueca
que dissera uma coisa do gênero? Ou fora uma finlandesa?
Hilde pôs-se em frente do espelho de latão que estava pendurado sobre a
velha cômoda da avó.
Era bonita? Pelo menos não era feia... Estava talvez no meio termo...
Tinha longos cabelos loiros. Hilde tinha sempre desejado ter os cabelos
mais claros ou mais escuros. Esta cor de cabelo intermédia não tinha graça. Mas
gostava dos seus caracóis suaves. Muitas das suas amigas tratavam dos cabelos
para conseguirem ondulações, mas Hilde nunca precisara disso. Também
gostava dos seus olhos verdes, de um verde esmeralda. “São de fato verdes?”,
perguntavam sempre as tias e os tios quando se inclinavam para ela.Hilde refletiu sobre se a imagem que estava a examinar era o reflexo de
uma moça ou de uma jovem mulher. Chegou à conclusão de que não era
nenhuma das duas. O seu corpo já se assemelhava muito ao de uma mulher; o
rosto, pelo contrário, fazia lembrar uma maçã ainda verde.
Algo no velho espelho fazia Hilde pensar no pai. Anteriormente, tinha
estado pendurado em baixo, no atelier. O atelier ficava por cima do barracão dos
barcos e servia ao pai de biblioteca, local de inspiração para escrever e um
refúgio para se isolar quando estava irritado. Al-bert, como Hilde lhe chamava
quando ele estava em casa, quisera sempre escrever uma grande obra.
Tentara uma vez um romance, mas tinha-se ficado pela tentativa. Alguns
poemas e descrições inspiradas na paisagem que o rodeava tinham sido
publicados regularmente no jornal local. Hilde ficava quase tão orgulhosa como
ele quando via o seu nome impresso. Alberto Knag. Pelo menos em Lillesand,
este nome tinha uma ressonância especial. O bisavô também se chamava Albert.
O espelho, sim. Há muitos anos, o seu pai dissera na brincadeira que talvez
fosse possível piscar os olhos para si mesma no espelho, mas com ambos os olhos
isso não seria possível de todo. A única exceção era este espelho de latão por ser
um espelho mágico antigo que a bisavó comprara a uma cigana logo a seguir ao
seu casamento.
Hilde tentara durante muito tempo, mas piscar ambos os olhos para si
mesma era tão difícil como fugir da sua própria sombra. Por fim, recebera depresente a velha peça herdada. Durante toda a sua infância, tentara esta
habilidade impossível regularmente. — O que se passa conosco, minha filha?
Não admirava que pensasse só em si. Quinze anos... Só então deitou um
olhar à sua mesa de cabeceira. Estava lá um grande embrulho. Com papel de um
lindíssimo azul celeste e uma fita de seda vermelha. Devia ser um presente de
aniversário!
Seria esse o “presente”? Seria o grande PRESENTE do seu pai, o presente
à volta do qual fizera tanto mistério? Nos seus postais do Líbano, ele fizera
repetidamente alusões estranhas. Mas submetera-se a si mesmo a “uma censura
rigorosa”.
Era um presente que crescia, escrevera ele. E depois fizera alusões a uma
moça que havia de conhecer em breve — e à qual ele enviara uma cópia de
cada postal. Hilde procurara saber pela mãe o que que-ria ele dizer com aquilo,
mas ela também não fazia idéia.
O mais estranho de tudo tinha sido a indicação de que o presente podia
talvez ser partilhado com outras pessoas. Não era por acaso que trabalhava na
ONU: se o pai de Hilde tinha uma idéia fixa — e ele tinha muitas —, então era a
de que a ONU devia assumir a seu cargo uma espécie de responsabilidade
governativa em todo o mundo. “Possa a ONU um dia aproximar de fato a
humanidade”: escrevera ele num postal.Poderia ela abrir o embrulho antes de a mãe subir com pão de passas e
limonada, a canção dos parabéns e a bandeira norueguesa? Podia, certamente,
por isso é que estava ali.
Hilde atravessou o quarto de mansinho e levantou o embrulho da mesa de
cabeceira. Era pesado! Tinha um cartão:
“Para Hilde, do pai, pelos seus quinze anos.”
Ela sentou-se na cama e desfez com cuidado o nó da fita de seda
vermelha. Em seguida, já podia remover o papel.
Era um grande “dossiê”.
Era este o presente? Era este o presente para o seu aniversário do qual se
falara tanto? Era este o presente que crescera e que, além disso, podia ser
partilhado com outros?
Um olhar rápido mostrou que o “dossiê” estava cheio de folhas escri-tas à
máquina.Hilde reconheceu o tipo de letra da máquina de escrever que o seu pai
levara consigo para o Líbano.
Teria ele escrito um livro para ela?
Na primeira folha estava escrito à mão, em maiúsculas:
O MUNDO DE SOFIA
Um pouco mais abaixo lia-se, em letra de máquina:AQUILO QUE A LUZ DO SOL É PARA A TERRA FÉRTIL É O
VERDADEIRO SABER PARA OS AMIGOS DA TERRA.
N. F. S. Grundtvig
Hilde folheou o “dossiê”. Na parte de cima da página seguinte começava o
primeiro capítulo. O título dizia: “O jardim do Éden”. Sentou-se comodamente na
cama, apoiou o “dossiê” nos joelhos e começou a ler: Sofia Amundsen
regressava da escola. Percorrera com Jorunn o primeiro trecho do caminho.
Tinham conversado sobre robôs. Para Jorunn, o cérebro humano era um
computador complexo. Sofia não estava de acordo. Um homem deveria ser algo
mais do que uma máquina.
Hilde continuou a ler, e pouco depois se esqueceu de todas as outras coisas;
esqueceu-se inclusivamente de que fazia anos. De vez em quando, uma idéia
ainda conseguia introduzir-se entre as linhas:
Teria o pai escrito um romance? Teria retomado a tentativa de escrever o
grande romance e queria terminá-lo no Líbano? Tinha-se queixado tanto de que o
tempo demorava a passar.Sofia também viajava na história universal. Era com certeza a moça que
Hilde devia conhecer...
Só quando se apercebia que um dia teria desaparecido, compreendia
claramente que a vida era infinitamente valiosa... De onde vem o mundo?...
Afinal, alguma coisa teria de ter surgido do nada a certa altura. Mas seria isso
possível? Este pensamento não seria tão impossível como o de o mundo ter
sempre existido?
Hilde continuou a ler, e sentiu-se surpresa ao saber que Sofia Amundsen
recebera um postal do Líbano. “Hilde Möller Knag, a/c Sofia Amundsen.
Klöverveien 3...
Querida Hilde! Parabéns pelos teus 15 anos! Como compreendes, quero
dar-te um presente, que te ajudará a crescer. Peço desculpa por mandar o postal
pela Sofia. Era mais fácil deste modo.
Saudades, do pai.
Este malvado! Hilde sempre achara o seu pai um maroto, mas nesse dia
surpreendeu-a completamente. Em vez de colocar o postal no embrulho,escrevera-o no próprio presente.
Pobre Sofia! Estava totalmente perplexa.
Porque é que um pai enviaria um postal de aniversário para a morada de
Sofia, se era óbvio que devia ser enviado para outro local? Que tipo de pai
enviaria um postal de aniversário para o endereço errado, impedindo que a filha
o recebesse? Como é que poderia ser “mais fácil” deste modo? E principalmente,
como poderia ela encontrar Hilde?
Não, como é que Sofia havia de conseguir? Hilde virou a folha e começou
a ler o segundo capítulo. Chamava-se “A cartola”. Pouco depois, chegou a uma
longa carta que essa pessoa misteriosa escrevera a Sofia. Hilde reteve a
respiração.
Interessarmo-nos pela razão da nossa existência não é um interesse
ocasional, como o interesse em colecionar selos. Quem se interessa por tais
problemas, preocupa-se com tudo aquilo que os homens discutem desde que
apareceram neste planeta...
“Sofia estava exausta”.Hilde também. O pai não lhe escrevera apenas um livro para o
aniversário; ele escrevera um livro muito estranho e misterioso.
Breve sumário: um coelho branco é retirado de uma cartola vazia. Dado
que é um coelho muito grande, este truque leva muitos bilhões de anos.
Na extremidade dos pêlos finos nascem todas as crianças humanas. Por
isso, podem admirar-se com a inacreditável arte da magia. Mas à medida que
envelhecem, deslizam cada vez mais para a pele do coe-lho. E permanecem
ali...
Não era só Sofia a ter a sensação de ter estado à procura de um lugar para
si muito em baixo na pelagem do coelho branco. Nesse dia, Hilde fazia quinze
anos. Também ela tinha a sensação de ter de se decidir quanto à orientação a
seguir.
Leu acerca dos filósofos da natureza gregos. Hilde sabia que o pai se
interessava por filosofia. Escrevera no jornal que a filosofia tinha de ser
introduzida como disciplina escolar. “Por que inserir a filosofia nos programas
escolares?”, era o título do artigo. O pai até levara o tema à discussão na reunião
dos pais e professores da turma de Hilde. Para Hilde, isso fora extremamente
embaraçoso.Olhou então para o relógio.
Já eram sete e meia. Mas a mãe só subiria daí a uma hora com o café-damanhã.
Felizmente, porque Hilde estava completamente concentrada em Sofia e
nas questões filosóficas. Leu o capítulo sobre Demócrito. Primeiro, Sofia tinha de
refletir acerca de uma questão: “Porque é que as peças do Lego são o brinquedo
mais genial do mundo?”. Em seguida, encontrou “um grande envelope amarelo”
na caixa do correio.
Demócrito concordava com os seus predecessores ao afirmar que as
transformações observáveis na natureza não significavam que algo se alterasse
realmente. Admitiu, portanto, que tudo tinha de ser composto de elementos
pequenos e invisíveis, eternos e imutáveis.
Demócrito designava estas pequenas partículas por átomos.
Hilde inquietou-se quando Sofia encontrou o seu lenço de seda vermelho
debaixo da cama. Então era ali que fora parar? Mas como é que um lenço podia
cair numa história?
Tinha de estar noutro lugar...O capítulo sobre Sócrates começava com Sofia a ler num jornal “algumas
linhas sobre o contingente norueguês da ONU no Líbano”. Típico do pai! Ele
tinha muita pena que as pessoas na Noruega se interessassem tão pouco pelo
trabalho dos soldados da ONU de conservar a paz. E se mais ninguém se
preocupava com isso, pelo menos Sofia devia fazê-lo. Deste modo, era possível
atrair a si uma certa atenção dos “media”.
Hilde não pôde deixar de sorrir quando leu na carta do professor de
filosofia endereçada a Sofia um “PS2”.
PS2. Se encontrares um lenço de seda, quero pedir-te que o conserves
cuidadosamente. Acontece, por vezes, que os objetos são trocados,
principalmente na escola e em locais semelhantes, e esta é na verdade uma
escola de filosofia.
Hilde ouviu passos na escada. Devia ser a mãe com o café-da-manhã do
dia de anos.
Antes de ela bater à porta, Hilde leu ainda que Sofia tinha encontrado um
vídeo de Alberto no seu esconderijo no jardim.
— Parabéns a você, nesta data querida...A mãe começara a cantar nas escadas.
— Muitas felicidades...
— Entra! — disse Hilde.
Estava a ler sobre o professor de filosofia que falava a Sofia direta-mente
da Acrópole. Ele era fisicamente muito parecido com o pai de Hilde — com
uma “barba negra bem tratada” e uma boina azul.
— Parabéns, Hilde!
— Mmm...
— Hilde?— Deixa-o aí.
— Não queres...
— Não vês que estou ocupada?
— Pensa que já tens quinze anos!
— Já estiveste em Atenas, Mamãe?
— Não, por quê?
— É bastante estranho que os templos antigos ainda estejam de pé. Têm
dois mil e quinhentos anos. O maior chama-se “Partenon”.— Abriste o embrulho do pai?
— Que embrulho?
— Olha para mim, Hilde! Estás completamente nas nuvens!
Hilde deixou cair o grande “dossiê” nos joelhos. A mãe inclinou-se para a
cama. No tabuleiro havia velas, sanduíches e sumo de laranja. Havia também
um pacote. Mas a mãe só tinha duas mãos e por isso tinha entalado a bandeira
norueguesa debaixo do braço.
— Muito obrigada, Mamãe. É muito amável da tua parte, mas não tenho
mesmo tempo.
— Só tens de estar na igreja à uma.
Hilde só nesse momento se apercebeu onde estava. A mãe pôs o tabuleiro
na mesa de cabeceira.— Desculpa. Estava tão concentrada nisto...
Hilde mostrou o “dossiê” e prosseguiu:
— Isto é do pai...
— Mas o que é que ele escreveu, Hilde? Estou tão curiosa como tu. Há
meses que não se lhe ouve uma palavra sensata.
Por algum motivo, Hilde sentiu-se subitamente envergonhada.
— Ah, é apenas uma história.
— Uma história?
— Sim, uma história. E também um livro de filosofia, mais ou menos.— Não queres abrir o meu pacote?
Hilde achava que não podia fazer distinção entre os presentes e por isso
abriu também o da mãe. Era uma pulseira de ouro.
— Que bonita! Muito obrigada!
Hilde deu um beijo à mãe. Conversaram um pouco.
— Agora tens de ir embora — disse Hilde depois. — Ele está mesmo no
alto da Acrópole, percebes?
— Quem?
— Bom, não faço idéia, e a Sofia também não. O problema é esse.— Eu tenho de ir para o escritório. Tens de comer qualquer coisa. O teu
vestido está lá embaixo.
Por fim, a mãe foi-se embora. E o professor de filosofia de Sofia fez o
mesmo; desceu as escadas da Acrópole e subiu para a elevação do Areópago,
para aparecer pouco depois na antiga ágora de Atenas. Hilde sobressaltou-se ao
ler que os antigos edifícios se elevavam subitamente das ruínas. O pai tinha a
idéia fixa de que todos os países da ONU deviam fazer em conjunto uma cópia
fiel da antiga ágora de Atenas. Aí se poderia trabalhar em questões filosóficas e
hipóteses de desarmamento. Um projeto gigantesco desses havia de unir a
humanidade, segundo ele.
Em seguida leu sobre Platão. “A alma deseja voar nas asas do amor de
‘volta’ ao mundo das idéias. Deseja ser libertada da ‘prisão do corpo...’”.
Sofia tinha passado através da sebe e seguira Hermes, mas perdera-o de
vista depois.
Após ter lido sobre Platão, caminhou pelo bosque e chegou a uma cabana
vermelha junto a um pequeno lago. Havia ali uma fotografia de Bjerkely .Pela descrição, era evidente que tinha de se tratar de Bjerkely de Hilde. E
ali estava também um retrato de um homem chamado Berkeley .
“Berkeley e Bjerkely ... Não era estranho?”
Hilde pousou o volumoso “dossiê” na cama, foi à estante e consultou a
enciclopédia em três volumes que recebera de presente quando fizera catorze
anos. Berkeley ... lá estava!
Berkeley, George, 1685-1753, filósofo anglo-saxônico, bispo de Cloy ne.
Nega a existência de um mundo material exterior à consciência humana. As
nossas percepções sensoriais provêm de Deus.
B. é também famoso pela sua crítica às idéias universais abstratas. Obra
principal: “A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge” —
Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano (1710).
Sim, era estranho. Hilde ficou alguns segundos parada e pensativa, antes de
voltar à cama e ao “dossiê”. Teria sido o pai a pendurar aqueles dois quadros?
Poderia haver uma outra relação além da semelhança entre os nomes?Berkeley era um filósofo que negara a existência de um mundo material
exterior à consciência humana. Era possível fazer-se muitas afirmações
estranhas, mas nem sempre era fácil invalidar essas afirmações. Essa descrição
prestava-se ao mundo de Sofia. As suas “sensações” eram provocadas pelo pai
de Hilde.
Mas saberia mais se continuasse a ler. Hilde levantou os olhos do “dossiê”
e riu-se ao ler que Sofia vira o reflexo de uma moça no espelho que piscava os
dois olhos. “A moça do espelho parecia piscar os olhos para Sofia. Parecia
querer dizer: eu estou a ver-te, Sofia. Estou aqui do outro lado.” Lá, encontrou
também a carteira verde — com dinheiro e o resto!
Como teria ido lá parar? Que absurdo! Por um ou dois segundos, Hilde
acreditara que Sofia tinha encontrado de fato a carteira. Mas mesmo depois,
tentou compreender como tudo acontecia do ponto de vista de Sofia. Devia ser
muito insondável e misterioso.
Pela primeira vez, Hilde sentiu um forte desejo de conhecer Sofia
pessoalmente.
Gostaria de discutir com ela a relação entre todas as coisas.
Mas agora, Sofia tinha de sair da cabana se não queria ser surpreendida
em flagrante.Era óbvio que o barco andava à deriva no lago. Ele não resistira a referir a
velha história do barco.
Hilde bebeu um gole de sumo e trincou uma sanduíche com salada de
maionese e camarão enquanto lia sobre Aristóteles, que criticara a teoria das
idéias de Platão.
Aristóteles aponta para o fato de que nada existe na consciência que não
tenha existido primeiro nos sentidos. Platão poderia ter dito que não há nada na
natureza que não tenha existido primeiro no mundo das idéias. Desta forma,
Platão duplicou o número de coisas, segundo Aristóteles.
Hilde não sabia que fora Aristóteles a inventar o jogo do “reino vegetal,
reino animal, reino mineral”.
Aristóteles queria fazer uma arrumação profunda no quarto da natureza.
Procurou provar que todas as coisas na natureza pertencem a diversos grupos e
subgrupos.
Ao ler a concepção de Aristóteles sobre a mulher, ficou simultaneamenteadmirada e irritada. Como é que alguém pode ser um filósofo tão competente e
ao mesmo tempo um ignorante!
Sofia deixara-se inspirar por Aristóteles ao arrumar o seu próprio quarto. E
aí, no meio do caos completo, encontrou a meia branca que desaparecera há um
mês do armário de Hilde. Sofia reunira todas as folhas que Alberto lhe escrevera
num “dossiê”. “Agora já tem mais de cinqüenta páginas”. Hilde, por seu lado, já
tinha chegado à página cento e setenta e oito, porque ainda tinha de ler, além das
cartas filosóficas de Alberto Knox, toda a história de Sofia.
O capítulo seguinte chamava-se “O Helenismo”. Nesse capítulo, Sofia
encontrava um postal com a fotografia de um jipe da ONU. O postal tinha o
carimbo do contingente da ONU do dia 15 de Junho. Mais um “postal” dirigido a
Hilde que o pai integrara no “dossiê” em vez de o enviar pelo correio.
“Querida Hilde: imagino que deves estar a festejar o teu aniversário. Ou já
passa um dia? De qualquer modo, não faz diferença para o teu presente;
desfrutarás dele durante toda a tua vida. Dou-te os parabéns mais uma vez.
Talvez compreendas agora porque é que mando o postal para a Sofia. Tenho a
certeza de que ela to dará.
PS. A mãe contou-me que perdeste a carteira. Prometo reembolsar-te das
150 coroas. Receberás certamente um novo cartão de estudante na escola antes
que ela feche para o Verão.Um abraço do pai”
Nada mau, pensou Hilde, com isso tinha ficado com mais cento e
cinqüenta coroas. Ele achava com certeza que um presente de fabrico caseiro
não era suficiente.
Descobriu que o dia 15 de Junho era também o dia de aniversário de Sofia.
Mas o calendário de Sofia ainda estava na primeira metade de Maio. Nessa
altura, o pai de Hilde devia ter acabado de escrever esse capítulo e dera uma
data posterior ao “postal de aniversário” para Hilde.
Entretanto, a pobre Sofia corria para o supermercado, onde Jorunn
esperava por ela.
Quem era Hilde? Como é que o pai dela achava evidente que Sofia a
encontraria? Não fazia sentido nenhum que ele lhe enviasse os postais em vez de
os enviar diretamente à filha...
Também Hilde se sentira suspensa no ar enquanto estava a ler acerca de
Plotino.Em tudo o que vemos há algo do mistério divino. Vemos que ele cintila
num girassol ou numa papoula. Temos uma idéia mais clara desse mistério
impenetrável numa borboleta que levanta vôo de um ramo — ou num peixe
dourado que nada no seu aquário. Mas estamos mais próximos de Deus na nossa
própria alma. Só aí podemos unir-nos ao grande mistério da vida. Em momentos
raros podemos sentir que nós mesmos somos esse mistério divino.
Até então, isto era do mais vertiginoso que ela tinha lido. Mas era ao
mesmo tempo o mais fácil. Tudo é uno, e este “uno” é um mistério divino no
qual todos participam. Não era nada que fosse difícil de acreditar. É assim,
pensava Hilde. E depois, cada um pode acrescentar a palavra “divino”, ou o que
lhe agradar.
Folheou rapidamente o “dossiê” para chegar ao capítulo seguinte. Sofia e
Jorunn queriam ir acampar na noite de 17 de Maio. E depois foram para a
cabana do major...
Hilde ainda não lera muitas páginas quando saltou da cama agitada e deu
alguns passos pelo quarto com o “dossiê” nos braços. Raramente vira um truque
tão descarado como aquele! Na pequena cabana do bosque o pai fez com que
ambas as moças encontrassem cópias de todos os postais que enviara a Hilde na
primeira metade de Maio. E as cópias eram autênticas. Hilde tinha lido várias
vezes todos os postais do pai. Reconheceu cada palavra:
“Querida Hilde! Estou quase a rebentar com todos os segredos que têm a
ver com o teu aniversário, e várias vezes por dia tenho de me conter para não
telefonar e contar tudo. É uma coisa que não pára de crescer. E tu sabes que
quanto mais uma coisa cresce mais difícil é guardá-la para nós...Sofia recebeu uma nova lição de Alberto. Tratava de Judeus e Gregos e
das duas grandes culturas. Hilde ficou contente com esta ampla panorâmica da
história. Na escola, nunca tinham aprendido nada assim. Eram só pormenores e
mais pormenores. Quando acabou de ler a carta, o pai transmitira-lhe uma
perspectiva completamente nova de Jesus e do Cristianismo. Gostou da citação
de Goethe:
“Quem não sabe prestar contas de três milênios, permanece nas trevas
ignorante, vive apenas o dia que passa.”
O capítulo seguinte começava com um bocado de cartão que ficara colado
na janela da cozinha de Sofia. Era obviamente mais uma felicitação para Hilde.
“Querida Hilde! Não sei se ainda estarás a festejar o teu aniversário
quando leres este postal. Por um lado, espero que sim, de qualquer modo tenho
esperança que ainda não tenham passado muitos dias.
Que passem uma ou duas semanas para Sofia não significa que suceda o
mesmo conosco.Eu regresso a casa na noite de S. João. Nessa altura, ficaremos sentados no
balanço e poderemos olhar juntos para o mar, Hilde. Temos muito para
conversar...
Em seguida, Alberto telefona a Sofia e ela ouve a sua voz pela primeira
vez.
“Falas como se se tratasse de uma espécie de guerra.”
“Eu diria que é uma guerra espiritual. Temos de tentar chamar a atenção
de Hilde e trazê-la para o nosso lado, antes que o seu pai regresse a Lillesand.”
E depois, Sofia encontra-se com Alberto Knox disfarçado de monge da
Idade Média numa antiga igreja de pedra do século XII.
Numa igreja, sim. Hilde olhou para o relógio. Um quarto para a uma.
Tinha-se esquecido completamente do tempo.
Talvez não fosse tão grave faltar à escola no seu dia de anos, mas havia
uma coisa que a enervava nesse aniversário.Os colegas não festejariam com ela. Bom, no fundo não houvera falta de
felicitações.
Em seguida, Hilde teve de ouvir um longo sermão.
Alberto não parecia ter grandes problemas em pisar o púlpito. Ao ler sobre
Sophia, que se mostrara a Hildegard em visões, teve de recorrer novamente à
enciclopédia. Mas não encontrou nem Hildegard nem Sophia. Era típico.
Quando se tratava de mulheres ou de alguma coisa relativa a mulheres, a
enciclopédia era tão omissa como uma cratera da Lua. Haveria uma comissão
de homens a censurar as enciclopédias?
Hildegard von Bingen tinha sido pregadora, escritora, médica, botânica e
cientista. E, além disso, era um “exemplo de que na Idade Média as mulheres
eram freqüentemente mais práticas — e mesmo mais científicas — que os
homens”.
Mas na enciclopédia não havia uma única sílaba sobre ela. Que vergonha!Hilde nunca ouvira dizer que Deus também tinha “um lado feminino”, ou
uma “natureza maternal”. E esse lado chamava-se Sophia — mas também não
valia um grama de tinta para os autores da enciclopédia.
O mais próximo que encontrou foi a igreja Hagia Sophia em
Constantinopla. “Hagia Sophia” queria dizer “santa sabedoria”. Uma capital e
inúmeras rainhas eram conhecidas por esta “sabedoria”, mas na enciclopédia
não vinha nada a dizer que tal sabedoria fosse feminina. Se aquilo não era
censura...
Hilde continuou a ler e achou que Sofia lhe “aparecia” de fato. Achava
poder ver à sua frente a moça de cabelos negros...
Quando Sofia chegou a casa, depois de ter passado quase toda a noite na
igreja de Santa Maria, pôs-se em frente do espelho de latão que trouxera da
cabana no bosque.
Em contornos nítidos, via o seu rosto pálido, que os cabelos negros
emolduravam, cabelos que apenas serviam para fazer o penteado “cabelos lisos”
naturais. Mas por baixo ou por detrás deste rosto aparecia o rosto de uma outra
pessoa.De repente, a moça estranha do espelho piscou energicamente os olhos.
Parecia querer avisar que estava, de fato, do outro lado do espelho. Poucos
segundos depois, desapareceu.
Quantas vezes Hilde já tinha estado em frente ao espelho como se
procurasse a imagem de outra? Mas como é que o pai podia saber isso? Não
procurara com os olhos uma moça de cabelos negros? A sua bisavó tinha
comprado o espelho a uma cigana...
Hilde sentiu que as suas mãos tremiam ao segurar no volumoso “dossiê”.
Estava convencida de que Sofia existia de fato algures “no outro lado”.
Depois, Sofia sonhava com Hilde e Bjerkely. Hilde não a conseguia ver
nem ouvir, mas em seguida Sofia encontrou na doca o crucifixo de ouro de
Hilde. E este crucifixo, com as iniciais de Hilde — estava na cama de Sofia
quando ela acordou do sonho.
Hilde tinha que refletir.
Não podia ter perdido também o seu crucifixo de ouro. Foi à cômoda e
tirou a sua caixa de jóias. O crucifixo de ouro — que a avó lhe dera de presente
pelo seu batizado — tinha desaparecido! Então tinha mesmo perdido a jóia!
Bom! Mas como é que o pai podia saber se nem ela reparara nisso?E mais: Sofia tinha sonhado que o pai de Hilde regressara do Líbano. Mas
até lá faltava uma semana inteira. Teria Sofia tido um sonho profético? Pensava
o pai que, quando chegasse a casa, Sofia também estaria presente? Ele tinha
escrito uma coisa a respeito de ela encontrar uma nova amiga...
Numa visão clara, mas também extremamente breve, Hilde teve a
convicção de que Sofia era mais do que papel e tinta. Ela “existia”!

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