Capítulo 21

O JANTAR DAQUELA NOITE FOI AGRADÁVEL. Notei que os garotos aprenderam com o erro de Jack. Todos se endireitaram em seus lugares quando entrei e inclinaram a cabeça à minha passagem. Senti, novamente, que estava no controle.
Meu pai parecia mais calmo também, embora desse para perceber um pouco de preocupação em seu rosto. Ahren esticou o pescoço sobre a mesa e piscou para mim com um ar conspiratório. Parecia até que aquele incidente terrível tinha melhorado a nossa relação.
Meu pai havia sugerido que eu tentasse conversar com os garotos durante o jantar, mas falar aos gritos no meio de tanta gente me parecia grosseiro. Não me considerava capaz disso, pelo menos não com naturalidade. Eu sabia que, apesar do que tinha acontecido, precisava voltar à ação. Em vez de conversar, porém, analisei minhas opções…
De todos os remanescentes, Ean era o mais intimidador. Não por parecer violento, mas por sua segurança e calma constantes. Era como se um terremoto fosse incapaz de movê-lo contra a sua vontade.
Talvez um passeio com ele me permitisse vencer uma espécie de receio. Não era possível que fosse tão inabalável quanto parecia. Bastava combinar alguma coisa num ambiente aberto e garantir a presença dos fotógrafos.
Como se tivesse lido meus pensamentos, Ean olhou para mim naquele mesmo segundo. Virei o rosto e fingi estar prestando atenção no meu irmão.
Percebi que Kaden lia um jornal por baixo da mesa.
— Do que trata esse artigo? — perguntei.
Ele respondeu sem desviar o olhar, como se tentasse concluir o dia de trabalho antes do fim do jantar.
— Uma arrecadação em uma área de Midston. Estão levantando fundos para que uma garota possa ir para a escola de arte. Ela tem talento, mas não consegue pagar o curso sozinha. Ela diz… um momento. Aqui está: “Venho de uma linhagem de Três. Minha família acha que estudar arte seria me rebaixar, embora as castas já não existam. É difícil. Eu tento lembrá-los que a rainha nasceu Cinco e é maravilhosa. Eles não querem pagar pela minha educação, por isso peço ajuda para ir atrás dos meus sonhos”. Veja as fotos dos quadros dela. Nada mal.
Cresci com uma profunda admiração por arte e, apesar do trabalho da jovem não me agradar esteticamente, dava para ver que tinha talento.
— São bons. Quanta tolice. O objetivo de acabar com as castas era dar às pessoas a possibilidade de escolher qualquer profissão que desejassem. Mas eles não querem saber. É quase como se não quisessem que o plano desse certo.
— Criar um sistema não implica que as pessoas vão segui-lo.
— É óbvio — comentei friamente antes de tomar um gole de bebida.
— O ponto-chave é fazer as pessoas compreenderem. Lembra quando a mamãe mostrou aqueles livros antigos de história? Os Estados Unidos tinham aquele documento — ele fez uma pausa para lembrar o nome —, a Declaração de Independência… Ali estava escrito que as pessoas tinham permissão para buscar a felicidade. Mas ninguém que produziu aquele papel era capaz de dar a felicidade às pessoas.
— Você é muito inteligente — eu disse com um sorriso.
— Eu tomaria isso como elogio, mas semana passada você foi flagrada beijando Kile no escuro.
— Ah. Ha-ha-ha — ironizei, com vontade de mostrar a língua para ele. — Não que a minha opinião valha muita coisa.
— Você vai casar com Kile?
Quase engasguei.
— Não!
Kaden gargalhou como um louco, o que fez quase todos os presentes olharem em nossa direção.
— Retiro o que disse — comentei. — Você é só um idiota especialmente esperto.
Levantei para sair e dei um peteleco na orelha de Kaden ao passar por ele.
— Ei! — ele reclamou.
— Obrigada por estar ao meu lado, Kaden. Você é um ótimo irmão.
Ele esfregou a orelha sem desfazer o sorriso e respondeu:
— Faço o possível.
“Casar com Kile”, pensei, fazendo força para não rolar de rir de novo. Se Kile continuasse a ser discreto, as chances de eu beijá-lo novamente eram muito, muito altas… Mas eu não conseguia me imaginar casada com ele. Não sabia se era capaz de me imaginar casada com qualquer um daqueles garotos.
Na verdade, não sabia nem se era capaz de me imaginar casada.
Desacelerei os passos e comecei a olhar para os rapazes à medida que avançava. Como seria adormecer ao lado de Hale? Ou ver Baden colocar um anel no meu dedo?
Tentei visualizar a cena e falhei. Me lembrei de Ahren comentando que alguns garotos haviam perguntado se era possível que eu gostasse de garotas. Me fazia rir só de pensar. Sabia que não era isso que me impedia de ter um envolvimento genuíno com um garoto… mas eu sentia que havia uma barreira. Não era só o meu desejo de ser independente. Havia um muro ao meu redor, e eu não sabia bem o motivo.
Mas, com ou sem muro, eu havia feito uma promessa.
Me detive ao passar por Ean.
— Sr. Cabel?
Ele levantou e fez uma reverência.
— Sim, Alteza.
— Sabe montar?
— Sei.
— Gostaria de me acompanhar em um passeio amanhã?
Um brilho malicioso reluziu em seu olho.
— Gostaria.
— Excelente. Nos vemos amanhã.


Optei por usar vestido e montar de lado. Não era a maneira como eu preferia, mas julguei que um toque de feminilidade contribuiria ao propósito da tarde.
Quando cheguei aos estábulos, Ean estava à minha espera, selando seu cavalo.
— Ean! — chamei ao me aproximar.
Ele levantou a cabeça e acenou. Era muito bonito, o tipo de homem que as pessoas esperavam ver ao meu lado. Cada um de seus atos era controlado, e eu estava decidida a imitá-lo e não me deixar vencer pela ansiedade.
— Está pronta? — ele perguntou.
— Quase. Preciso pegar minha sela — respondi ao cruzar com ele em direção às baias.
— Você vai vestida assim?
Olhei por cima do ombro.
— Posso fazer mais com esse vestido do que a maioria dos homens faria usando calça em um dia inteiro.
Ele riu.
— Não duvido.
Caramelo estava ao fundo, em uma baia um pouco maior que as outras. A égua de uma princesa merecia um pouco de espaço e uma bela vista.
Eu a preparei e voltei a Ean.
— Se não se importa, vamos tirar algumas fotos no jardim antes.
— Ah, não. Tudo bem.
Tomamos os cavalos pelas rédeas e os conduzimos ao redor do jardim. Um homem estava à nossa espera, fotografando o céu e as árvores enquanto não chegávamos. Quando nos viu, veio até nós.
— Alteza — ele saudou, apertando minha mão. — Meu nome é Peter. Acho que seria bom tirar algumas fotos dos dois juntos.
— Obrigada — agradeci enquanto acariciava Caramelo. — Onde ficamos?
Peter olhou em volta.
— Se puderem deixar os cavalos perto de alguma árvore, acho que algumas imagens diante da fonte ficariam bem.
Soltei Caramelo, sabendo que ela não correria.
— Venha — chamei Ean animada e o tomei pela mão.
Ele amarrou seu cavalo em um galho e me seguiu. Peter não perdeu tempo. Ean e eu sorrimos e evitamos timidamente olhar um para o outro. O breve passeio ficou registrado. Paramos diante da fonte, sentamos perto de arbustos e até tiramos fotos em frente aos cavalos.
Quando Peter avisou que já tinha o bastante, quase ergui os braços para o céu. Olhei ao redor e, como prometido, não estávamos completamente a sós. Havia guardas enfileirados ao longo dos muros do palácio, e alguns trabalhadores circulavam pelo terreno para cuidar da grama e das trilhas.
— Aqui, Caramelo! — chamei, já caminhando até a égua, que agitou a cauda.
Ean montou seu cavalo com maestria. Fiquei feliz por ele ser tão competente quanto me fizera crer.
— Me desculpe, mas isso tudo pareceu um pouco armado — Ean disse à medida que trotávamos em direção aos limites do gramado.
— Eu sei. Mas deixá-los capturar os momentos armados significa que posso manter os espontâneos em particular.
— Interessante. E a cena com Kile? Foi armada ou espontânea?
Abri um sorriso. Uau, como ele era rápido.
— Na última vez que conversamos, me pareceu que você queria dizer alguma coisa — lembrei.
— Eu quero. Quero ser honesto com você. Mas isso requer que você seja completamente honesta comigo. Você consegue?
Quando olhei para ele, duvidei que seria capaz de lhe dar o que pedia. Não naquele dia.
— Depende.
— Do quê?
— De muitas coisas. Não costumo abrir a alma para quem conheço há apenas duas semanas.
Trotamos mais uns minutos em silêncio.
— Comida favorita? — ele perguntou com um sorriso satisfeito no rosto.
— Vale responder “coquetéis”?
Ele riu.
— Claro. O que mais…? O melhor lugar que já visitou?
— Itália. Parte pela comida, parte pela companhia. Se eles vierem aqui, você precisa conhecer a família real. São muito divertidos.
— Eu gostaria. Bom, cor favorita?
— Vermelho.
— A cor do poder. Ótimo.
Ele parou de me sabatinar por um tempo, e continuamos a trilha em volta do palácio. Foi uma cavalgada pacífica, até. Passamos pelos portões da frente, e os jardineiros interromperam o trabalho para se curvar para nós. Assim que nos afastamos deles, Ean aproximou sua montaria da minha.
— Posso estar muito errado, mas vou fazer algumas suposições a seu respeito.
— Vá em frente — desafiei.
Ele hesitou.
— Espere. Vamos fazer uma parada aqui.
Havia um banco perto do muro do palácio e foi ali que paramos.
Saltei de Caramelo e sentei naquele lugar estreito ao lado de Ean.
— Alteza.
— Eadlyn — corrigi.
— Eadlyn.
Ele engoliu em seco e revelou a primeira rachadura em sua armadura superconfiante.
— Tenho a sensação — começou — de que a Seleção não era algo que você realmente queria.
Fiquei em silêncio.
— Se era, então não saiu conforme o esperado, e agora você se encontra em uma situação que lhe desagrada pessoalmente. A maioria das mulheres morreria para ter dezenas de homens a seu dispor, mas você parece querer manter distância.
Abri um sorriso gentil.
— Já disse: não me abro para pessoas que conheço há pouco tempo.
Ele balançou a cabeça e prosseguiu:
— Há anos que a vejo no Jornal Oficial. Você parece estar acima de um concurso como este.
Respirei bem fundo, sem saber o que dizer.
— Gostaria de lhe fazer uma oferta. Talvez jamais necessite disso, mas apresento a opção mesmo assim.
— E o que o senhor poderia oferecer à futura rainha?
Ele sorriu, mais uma vez seguro de si.
— Uma saída.
Era arriscado perguntar o que ele queria dizer, mas não consegui esconder a curiosidade.
— Como?
— Eu jamais a sufocaria. Jamais tiraria sua liberdade. Jamais sequer pediria que me amasse. Se me escolher, poderá ter um casamento livre das restrições convencionais. Faça de mim seu rei, e você será livre para reinar como julgar adequado.
Tirei o pó do vestido.
— Você jamais seria rei.
Ele inclinou a cabeça de um jeito cômico.
— Não faço o seu tipo?
Revirei os olhos.
— Não é essa a questão. Qualquer homem que se casasse comigo jamais seria rei. Seria o príncipe consorte, já que ninguém pode portar um título mais alto que o meu.
— Eu aceitaria isso.
Me apoiei sobre o braço do banco.
— Por curiosidade, por que fazer tal oferta? Você é muito carismático e bem bonito. Suponho que possa ter um casamento repleto de felicidade, o que me faz pensar: por que se comprometer voluntariamente com uma vida sem amor?
Ele concordou com a cabeça.
— É uma pergunta justa. Pessoalmente, acredito que o amor é supervalorizado.
Não consegui conter o sorriso.
— Venho de uma família grande. Seis filhos. Consegui sobreviver, mas não quero viver assim para sempre. A oportunidade de uma vida confortável com uma mulher agradável é melhor do que tudo o que posso esperar.
— Agradável? — questionei com as sobrancelhas arqueadas. — Só isso?
Ele achou graça.
— Gosto de você. Por ser sempre você mesma, não importa o custo disso. E certamente não considero um casamento com uma mulher inteligente, bela e poderosa como um simples acordo. Mas posso lhe oferecer os meios para um fim se você não encontrar ninguém adequado neste grupo. Para ser sincero, posso dizer que a maioria desses caras não passa de uma piada. E você pode me dar algo que nunca tive.
Fiz uma pausa para refletir. Até aquele momento, a Seleção não tinha sido nada do que eu esperava. Começara com o povo atirando comida em mim, reclamando da minha primeira eliminação e julgando meu beijo com Kile.  Embora eu só estivesse percebendo isso agora, havia algo na própriaideia de casamento que não me atraía nem um pouco. Porém, não podia deixar de pensar na possibilidade de escolher alguém apenas para agradar meu pai. Cada vez que o olhava, percebia o quão cansado estava.
Eu amava meu pai.
Mas também me amava.
E viveria comigo mesma por muito mais tempo.
— Você não precisa dizer “sim” ou “não” — Ean concluiu, me trazendo de volta à conversa. — Só digo que estarei aqui se precisar de mim.
Concordei com a cabeça.
— Não sei nem se posso me comprometer a pensar no caso — disse ao levantar. — Por ora, continuemos a cavalgada. Não é sempre que vejo Caramelo.
E nós realmente cavalgamos por bastante tempo depois daquela conversa, mas Ean não falou muito. Foi reconfortante passar alguns momentos sem o fardo de ter que puxar assunto. Ean aceitou meu silêncio com gratidão. Fiquei me perguntando se em algum momento ele se cansaria daquele tipo de vida.
Passei o resto do tempo analisando o garoto. Bonito, orgulhoso, direto. Sua autoconfiança não dependia da minha aprovação, e eu não me preocuparia em receber a aprovação dele. Poderia casar sem me sentir casada de verdade…
Ean talvez fosse um pretendente bem atraente mesmo.

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