Na manhã seguinte, Sofia acordou sobressaltada.
Passava pouco das cinco, mas estava tão desperta que se levantou na
cama.
Porque é que estava vestida? Lembrou-se, então, de tudo. Sofia subiu para
um banquinho e olhou para a prateleira superior do armário.Sim — estava lá uma fita de vídeo. Logo, não fora nenhum sonho, pelo
menos uma parte era verdade.
Não vira realmente Platão e Sócrates? Mas não queria pensar mais nisso.
Talvez a mãe tivesse razão ao afirmar que ultimamente andava com a cabeça
nas nuvens.
De qualquer modo, não conseguia dormir mais. Talvez devesse verificar
na toca se o cão tinha trazido uma nova carta. Sofia desceu sorrateiramente as
escadas, calçou as sapatilhas e saiu. No jardim tudo estava admiravelmente claro
e silencioso. Os pássaros chilreavam com tal intensidade que Sofia sorriu. Na
erva, o orvalho caía semelhante a gotas de cristal. De novo percebeu como o
mundo era uma maravilha inexplicável.
A velha sebe também estava um pouco úmida. Sofia não encontrou
nenhuma nova carta do filósofo, mas apesar disso enxugou uma raiz grossa e
sentou-se.
Lembrou-se que o Platão do vídeo lhe tinha dado algumas tarefas.
Primeiro, tinha de pensar como é que um padeiro podia fazer cinqüenta bolos
iguaizinhos.
Sofia tinha de refletir bem, visto que lhe parecia um trabalho difícil.
Quando a mãe fazia bolos, o que era raro, nunca havia dois exatamente iguais.Ela não era uma padeira profissional e podia fazer muitas coisas erradas, mas os
bolos que compravam nas lojas também nunca eram totalmente iguais. Cada
bolo recebia uma forma diferente nas mãos do padeiro.
Subitamente, Sofia sorriu com uma expressão astuta.
Lembrava-se que estivera uma vez com o pai na cidade, enquanto a mãe
fazia os biscoitos de natal. Quando regressaram a casa, toda a mesa da cozinha
estava coberta com biscoitos. Mesmo não estando todos igualmente perfeitos, de
certo modo eram todos iguais. E porque é que eram iguais? Porque a mãe tinha
usado a mesma forma para todos os biscoitos, obviamente.
Sofia estava tão contente por se ter lembrado da história dos biscoitos que
deu a primeira tarefa por terminada. Se um padeiro fazia cinqüenta bolos todos
iguais, é porque usava a mesma forma para todos. E basta!
Depois, o Platão do vídeo olhara para a câmara e perguntara por que é que
todos os cavalos são iguais. Mas isso não era verdade. Sofia diria, antes pelo
contrário, que não havia dois cavalos iguais, da mesma forma que não podia
haver dois homens iguais.
Estava quase para abandonar a tarefa, mas lembrou-se do que tinha
pensado a propósito dos biscoitos. Também não havia dois iguais, alguns eram
maiores que outros, outros estavam partidos; no entanto, era claro para toda agente que, por assim dizer, eram “completamente iguais”.
Talvez Platão quisesse perguntar por que é que um cavalo era sempre um
cavalo e não, por exemplo, uma coisa intermédia entre cavalo e porco. Porque,
apesar de alguns cavalos serem castanhos como ursos, e outros brancos como
cordeiros, todos os cavalos tinham qualquer coisa em comum. Sofia nunca vira
um cavalo com seis ou oito pernas. Mas Platão não podia querer dizer que todos
os cavalos eram iguais por terem sido moldados a partir da mesma forma.
Se fosse esse o caso, Platão tinha, de fato, colocado uma questão
complexa.
Terá o homem uma alma imortal? Sofia não se sentiu capaz de responder
a essa pergunta. Sabia apenas que um cadáver era cremado ou enterrado, e que
depois nada mais lhe acontecia. Se o homem tivesse uma alma imortal, teria que
ser constituído por duas partes diferentes: um corpo que se decompõe passado
algum tempo — e uma alma que age mais ou menos independentemente dos
processos do corpo. A sua avó dissera uma vez que, para ela, era como se apenas
o corpo envelhecesse. Interiormente, tinha permanecido sempre jovem.
A questão da “jovem” levou Sofia à última pergunta. Os homens e as
mulheres são igualmente racionais? Neste ponto, não tinha de todo a certeza.
Dependia do que Platão entendia por “racional”.Subitamente, lembrou-se daquilo que o seu professor de filosofia dissera
acerca de Sócrates. Sócrates explicara que todos os seres humanos podiam
compreender verdades filosóficas, se usassem a razão. Ele acreditava também
que um escravo podia resolver questões filosóficas com a mesma facilidade de
um aristocrata. Sofia estava convencida de que ele também teria dito que as
mulheres e os homens eram igualmente racionais.
E estando sentada, absorta nas suas reflexões, apercebeu-se subitamente
de um barulho na sebe e ouviu qualquer coisa a ofegar e a arfar como se de uma
máquina a vapor se tratasse. Pouco depois, o cão amarelo infiltrou-se na toca.
Trazia um grande envelope na boca.
— Hermes! — exclamou Sofia. — Muito obrigada!
O cão deixou cair o envelope no regaço de Sofia; ela estendeu a mão e
afagou-o no pescoço.
— O Hermes é um cão valente — dizia. O cão deitou-se e deixou-se
acariciar por Sofia. Passados alguns minutos, levantou-se e, passando com
dificuldade pela sebe, regressou pelo caminho por onde viera. Sofia seguiu-o
com o envelope na mão. Rastejou pela densa sebe e pouco depois estava fora do
jardim.
Hermes correu para o bosque e Sofia seguiu-o a alguns metros dedistância.
Por duas vezes, o cão voltou-se e rosnou, mas Sofia não se deixou
intimidar.
Agora, queria encontrar o filósofo, mesmo que tivesse de correr até
Atenas.
O cão correu com mais velocidade e chegou a uma pequena vereda
(caminho estreito).
Sofia também começou a correr mais depressa, mas, passado pouco
tempo, o cão voltou-se e ladrou como um cão de guarda. Sofia não desistiu;
aproveitou a oportunidade para se aproximar ainda mais dele.
Hermes corria à frente, pelo carreiro. Até que, Sofia teve de reconhecer
que não o podia alcançar. Ficou muito tempo parada, tentando detectar para onde
o cão se afastava. Por fim, tudo ficou silencioso.
Sofia sentou-se num tronco, junto a uma pequena clareira. Tinha na mão o
grande envelope amarelo. Abriu-o, retirou várias folhas escritas e começou a ler:“A Academia de Platão”
Que bom ver-te, Sofia!
Claro que quero dizer, em Atenas. Penso ter-me finalmente apresentado,
não achas?
E uma vez que também te apresentei Platão, podemos começar
imediatamente.
Platão (428-347 a.C.) tinha 29 anos quando Sócrates teve de beber a taça
de cicuta. Fora discípulo de Sócrates por muito tempo e seguiu atentamente o
processo instaurado contra ele. Que Atenas pudesse condenar à morte o homem
mais nobre da cidade não provocou nele apenas uma impressão indelével; isso
iria determinar a orientação de toda a sua atividade filosófica.Para Platão, a morte de Sócrates demonstrou muito claramente qual é a
contradição que pode existir entre as condições de fato numa sociedade e o que é
verdadeiro e ideal.
Platão, ao transcrever o discurso da Apologia de Sócrates, desempenhou
uma importantíssima tarefa. Aí narrou tudo o que Sócrates expôs ao tribunal.
Com certeza recordas ainda que Sócrates não escreveu nada pela sua
própria mão.
Muitos pré-socráticos haviam-no feito, mas a maior parte dos seus textos
não se conservou para a posteridade.
No que diz respeito a Platão, pensa-se que todas as suas obras principais se
conservaram. (Além da Apologia de Sócrates, escreveu um conjunto de cartas e
mais de trinta e cinco diálogos filosóficos). Se estes escritos se conservaram
deve-se ao fato de Platão ter fundado perto de Atenas a sua própria escola
filosófica, num pequeno bosque, que tinha o nome do lendário herói grego
Academo. A escola de filosofia de Platão recebeu assim o nome de Academia
(sinônimo também de universidade). (Desde então, foram abertas em todo o
mundo milhares de academias. Falamos ainda de “acadêmicos” e de “disciplinas
acadêmicas”).Na Academia de Platão lecionava-se filosofia, matemática e ginástica.
Talvez o termo “lecionar” não seja o mais adequado. Na Academia de Platão
também se usava o diálogo vivo. Não é por acaso que o diálogo tenha sido a sua
forma privilegiada de escrita.
“O eternamente verdadeiro, eternamente belo e eternamente bom”
No início deste curso de filosofia, eu disse-te que, por vezes, vale a pena
perguntar qual o projeto de um determinado filósofo. E por isso pergunto agora: o
que é que Platão queria descobrir?
Para resumir em poucas palavras:
Platão interessava-se por um lado pela relação entre aquilo que é eterno e
imutável e, por outro, por aquilo que “flui”. (Exatamente como os pré-
socráticos!).
Dissemos que tanto os sofistas como Sócrates se tinham afastado das
questões da filosofia da natureza e se tinham interessado mais pelos homens e
pela sociedade. E isso está certo; mas tanto os sofistas como Sócrates se
ocupavam também, de certa maneira, da relação que existe entre o que é eterno
e constante — e aquilo que “flui”.Preocupavam-se com esta questão quando se tratava da moral humana e
dos ideais ou virtudes da sociedade. Os sofistas achavam, grosso modo, que o
conceito de justiça e de injustiça variava de cidade-estado para cidade-estado e
de geração para geração. A questão da justiça e da injustiça seria, portanto, algo
“fluido”. Sócrates não podia aceitar isto. Acreditava em regras ou normas
eternas e intemporais para o procedimento humano. Quando usamos apenas a
nossa razão, segundo ele, podemos compreender todas essas normas imutáveis,
porque a razão humana é justamente algo eterno e imutável.
Estás a seguir-me, Sofia?
E agora vem Platão. Ele interessa-se tanto por aquilo que é eterno e
imutável na natureza — como por aquilo que na moral e na sociedade é eterno e
imutável. Sim, para Platão trata-se de uma mesma coisa. Ele procura obter uma
“realidade” própria que seja eterna e imutável. E na verdade é precisamente
para isso que temos filósofos. Para eles não se trata de eleger a mulher mais bela
do ano ou a verdura mais barata. (Por isso, eles nem sempre são populares!). Os
filósofos procuram dar pouca atenção a essas coisas frívolas e efêmeras.
Procuram mostrar o que é “verdadeiro” em si, “belo” em si, e “bom” em si.
Com isto, temos uma idéia dos contornos do projeto filosófico de Platão. A
partir de agora, consideramos uma coisa de cada vez. Vamos tentar
compreender a visão deste pensador que deixou vestígios profundos em toda a
filosofia européia posterior.“O mundo das idéias”
Empédocles e Demócrito já tinham mostrado que todos os fenômenos na
natureza “fluem”, mas que apesar disso há “algo” que nunca se transforma (as
“quatro raízes” ou os “átomos”). Platão confronta-se igualmente com esta
problemática — mas de uma forma completamente diferente.
Platão achava que tudo o que podemos tocar e sentir na natureza “flui”.
Não há, portanto, nenhum elemento eterno. Tudo o que pertence ao “mundo
sensível” é composto por uma matéria que o tempo consome. Mas ao mesmo
tempo, tudo é constituído por uma forma intemporal que é eterna e imutável.
Compreendeste?
Porque é que os cavalos são iguais, Sofia? Talvez penses que eles não o são
de todo. Mas há algo que é comum a todos os cavalos, algo que permite que
nunca tenhamos problemas em reconhecer um cavalo.Um cavalo particular “flui”, obviamente. Pode ser velho e coxo, com o
tempo ficará também doente, e morre. Mas a verdadeira “forma de cavalo” é
eterna e imutável.
Assim, o eterno e imutável não é nenhum “elemento primordial”. O eterno
e o imutável são modelos espirituais ou abstratos, a partir dos quais se formam
todos os fenômenos.
Vou ser mais preciso: os pré-socráticos tinham dado uma explicação
verdadeiramente útil para as transformações na natureza, sem ter que pressupor
que algo se “transforma” efetivamente. Na natureza há partículas minúsculas,
eternas e constantes que não entram em desagregação, segundo eles. Pois bem,
Sofia! Mas não tinham nenhuma explicação aceitável para o modo como estas
partículas minúsculas que eram elementos constituintes de um cavalo podiam
produzir quatro ou cinco séculos mais tarde um cavalo totalmente novo! Ou
talvez um elefante, ou um crocodilo. Platão quer dizer que os átomos de
Demócrito nunca se podem tornar um “crocofonte” ou um “eledilo”.
E foi precisamente este o ponto de partida das suas reflexões filosóficas.
Se já percebes o que quero dizer, podes saltar esta parte. Por precaução,
vou explicar melhor: tens uma caixa de peças de Lego e constróis um cavalo.
Depois, desmanchas o que fizeste e colocas novamente as peças na caixa.Não podes esperar ter um novo cavalo se apenas agitas a caixa. Como é
que as peças do Lego conseguiriam produzir por si mesmas um novo cavalo?
Não, tu tens de montar de novo o cavalo, Sofia. E se o consegues é porque tens
em ti uma imagem do aspecto do cavalo. O cavalo de Lego foi, portanto,
formado a partir de um modelo que se conserva inalterado de cavalo para
cavalo.
Conseguiste resolver a pergunta acerca dos cinqüenta bolos iguais?
Imaginemos agora que cais do espaço sideral para a terra e que nunca tinhas
visto uma pastelaria.
Deparas com uma pastelaria atraente — e vês, num tabuleiro, cinqüenta
biscoitos em forma de homem, exatamente iguais. Calculo que coçarias a
cabeça e te questionarias como é que podiam ser todos exatamente iguais.
É fácil de imaginar que a um falta um braço, um outro perdeu talvez um
bocado da cabeça, e o terceiro tem uma barriga demasiado gorda. Mas depois de
uma reflexão fundada chegas à conclusão de que todos os biscoitos possuem um
denominador comum. Apesar de nenhum deles ser totalmente perfeito, tens a
idéia de que têm que ter uma origem comum.
Compreendes que todos os biscoitos foram feitos a partir de uma mesma
forma.E não é tudo, Sofia: terás então o desejo de ver esta forma. Porque é óbvio
que a forma tem de ser indescritivelmente mais perfeita — e de certo modo
mais bela — do que uma das suas frágeis cópias.
Se resolveste este problema sozinha, resolveste um problema filosófico
exatamente da mesma forma que Platão. Como a maior parte dos filósofos, ele
“caiu do espaço sideral”, por assim dizer. (Ele instalou-se na parte mais alta de
um dos pêlos finos da pelagem do coelho). Ele admirou-se como todos os
fenômenos na natureza podem ser tão semelhantes entre si, e chegou então à
conclusão de que “acima” ou “por detrás” de tudo o que vemos à nossa volta há
um número limitado de formas. A estas formas chamou Platão idéias. Por detrás
de todos os cavalos, porcos e homens há a “idéia cavalo”, a “idéia porco” e a
“idéia homem”. (E por isso, a referida pastelaria pode ter, além de biscoitos em
forma de homem, biscoitos em forma de porco e de cavalo, visto que uma
pastelaria decente tem geralmente variadíssimas formas. Mas para cada tipo de
biscoito é suficiente uma única forma).
Conclusão: Platão defendia uma realidade própria por detrás do “mundo
sensível”.
A esta realidade chamava ele “o mundo das idéias”.
Encontramos aqui os “modelos” eternos e imutáveis, os “arquétipos” por
detrás dos diversos fenômenos que se nos deparam na natureza. Designamos esta
importante concepção por “teoria das idéias” de Platão.“Verdadeiro conhecimento”
Até agora, seguiste-me, cara Sofia. Mas terá Platão realmente querido
dizer isto, perguntarás. Queria ele dizer que estas formas existem numa realidade
completamente diferente?
Ele não o chegou a dizer explicitamente, mas alguns dos seus diálogos têm
de ser interpretados desta forma.
Vamos tentar seguir a sua argumentação.
Um filósofo procura, como já o dissemos, vir a compreender algo que é
eterno e imutável. Por exemplo, faria pouco sentido escrever um tratado
filosófico acerca da existência de uma determinada bola de sabão. Em primeiro
lugar, dificilmente alguém a poderia examinar bem antes de ter rebentado. Em
segundo lugar, seria provavelmente difícil vender um tratado filosófico acerca de
algo que ninguém viu e que só existiu durante poucos segundos.Platão achava que tudo o que vemos à nossa volta na natureza, sim, tudo o
que podemos agarrar e tocar pode ser comparado com a bola de sabão. Porque
nada do que existe no mundo dos sentidos dura. Tu sabes obviamente que todos os
homens e animais mais tarde ou mais cedo morrem e entram em decomposição.
Mesmo um bloco de mármore se desagrega lentamente. (A Acrópole está
a cair em ruínas, Sofia! É escandaloso, mas é assim).
Para Platão, nunca podemos ter um saber seguro acerca de algo que se
transforma.
Daquilo que pertence ao mundo sensível — e que nós podemos, portanto,
agarrar e tocar —, temos apenas opiniões incertas ou suposições. Só podemos ter
um saber verdadeiro daquilo que conhecemos com a razão.
Sofia, eu vou explicar isto melhor: um biscoito em forma de homem pode
sofrer tanto ao ser amassado, ao mofar e ao ser cozido que já não se possa dizer
exatamente o que é. Mas depois de eu ter visto vinte, trinta biscoitos — que
podem ser mais ou menos perfeitos —, posso saber com grande segurança qual é
o aspecto da forma dos bolos. Posso concluí-lo, mesmo que nunca tenha visto a
própria forma. Nunca é claro se seria melhor ver a forma a olho nu, visto que
não podemos confiar sempre nos nossos sentidos. A visão pode variar de homem
para homem.Inversamente, podemos confiar naquilo que a razão nos diz, visto que a
razão é a mesma em todos os homens.
Quando estás numa sala de aula com mais trinta alunos, e o professor
pergunta qual é a cor mais bonita do arco-íris — aí ele tem certamente muitas
respostas diferentes.
Mas se ele perguntar quanto é três vezes oito, toda a turma deveria dar a
mesma resposta. Nesse caso, é a razão que julga, e a razão é de certo modo
exatamente o contrário do opinar e do sentir. Podemos dizer que a razão é eterna
e universal, precisamente porque se pronuncia apenas acerca de realidades
eternas e universais.
Platão interessou-se muito por matemática, porque as verdades
matemáticas nunca se alteram. Assim, podemos ter um saber seguro acerca
delas.
Mas agora precisamos de um exemplo: imagina que encontras na floresta
uma pinha redonda. Talvez digas que achas que ela parece redonda — mas
Jorunn afirma que ela é um pouco achatada num dos lados. (Vocês discutem
então!). Não podem ter um conhecimento seguro acerca do que vêm com os
olhos, mas podem saber com toda a segurança que a soma dos ângulos num
círculo perfaz 360. Vocês estão a falar de um círculo “ideal” que não existe na
natureza, mas que vêem muito claramente com a vossa visão interior. (Vocês
falam sobre a forma escondida do bolo — e não sobre qualquer biscoito em cima
da mesa da cozinha).Breve resumo: acerca daquilo que percebemos ou sentimos podemos ter
apenas opiniões incertas. Mas acerca daquilo que conhecemos com a razão,
podemos atingir um conhecimento seguro. A soma dos ângulos num triângulo
perfaz para toda a eternidade. Do mesmo modo, a “idéia” de que todos os
cavalos caminham sobre quatro patas será válida mesmo que todos os cavalos do
mundo sensível ficassem coxos.
“Uma alma imortal”
Vimos que, segundo Platão, a realidade está dividida em duas partes.
Uma parte é “o mundo sensível” — de que só podemos atingir um
conhecimento impreciso e imperfeito, e onde usamos os nossos cinco
(imprecisos e imperfeitos) sentidos. A característica do mundo dos sentidos é que
“tudo flui” e conseqüentemente nada possui estabilidade.
Nada é no mundo dos sentidos, existe apenas um conjunto de coisas que
nascem e perecem. A outra parte é “o mundo das idéias” — de que podemosalcançar um saber certo usando a razão. Este mundo das idéias não pode ser
conhecido através dos sentidos. Em compensação, as idéias (ou formas) são
eternas e imutáveis.
Conseqüentemente, para Platão, o homem também é um ser dividido em
duas partes. Temos um corpo que “flui”. Ele está indissoluvelmente ligado ao
mundo sensível e sofre o mesmo destino que o sensível (por exemplo, uma bola
de sabão).
Todos os nossos sentidos estão ligados ao corpo e são de pouca confiança.
Mas nós possuímos também uma “alma imortal” — ela é a sede da razão. Uma
vez que a alma não é material, pode observar o mundo das idéias.
Bem, já disse quase tudo.
Mas há mais, Sofia: HÁ MAIS!
Para Platão, a alma já existia antes de se ter estabelecido no nosso corpo:
antigamente, a alma estava no mundo das idéias. (Estava junto às formas dos
biscoitos em cima do armário). Mas logo que a alma acorda num corpo humano,
esquece-se das idéias perfeitas. Inicia-se então um processo espantoso: quando o
homem se apercebe das formas na natureza, emerge progressivamente na alma
uma vaga recordação. O homem vê um cavalo — mas um cavalo imperfeito
(sim, um cavalo em biscoito!), e isso é o suficiente para despertar na alma umarecordação vaga do cavalo perfeito que a alma viu outrora no mundo das idéias.
Com isto, surge igualmente uma saudade, um desejo da verdadeira sede da
alma. Platão chamava a este desejo Eros — ou seja— amor.
A alma sente, portanto, um “desejo amoroso” da sua verdadeira origem.
A partir daí, vê o corpo e tudo o que é sensível como imperfeito e insignificante.
A alma deseja voar “de volta” ao mundo das idéias nas asas do amor.
Desejaria ser libertada da prisão do corpo.
Devo sublinhar que Platão descreve aqui o percurso ideal. Com efeito,
nem todos os homens permitem que a sua alma inicie a viagem de regresso ao
mundo das idéias.
A maior parte dos homens fixa-se nos “reflexos” das idéias no mundo
sensível. Vêem um cavalo — e outro. Mas não vêem aquilo de que todos os
cavalos são apenas cópias.
(Entram de repente na cozinha e atiram-se aos biscoitos sem perguntar de
onde é que vêm). Platão descreve o percurso dos filósofos.Podemos ler a sua filosofia como descrição da atividade de um filósofo.
Quando vês uma sombra, Sofia, pensas também que há algo que está a fazer
sombra. Vês a sombra de um animal. Talvez seja um cavalo, pensas tu, mas não
consegues ter a certeza absoluta. Então, voltas-te e vês o verdadeiro animal —
que é obviamente de longe mais bonito e nítido nos contornos do que a sua
inconstante sombra. POR ISSO, SEGUNDO PLATÃO, TODOS OS
FENÔMENOS DA NATUREZA SÃO MERAS SOMBRAS DAS FORMAS OU
IDÉIAS ETERNAS. Porém, a maioria das pessoas está satisfeita com a sua vida
entre as sombras.
Não pensam que há algo que provoca as sombras. Acham que as sombras
são tudo o que existe — e por isso não tomam as sombras como sombras. Deste
modo, esquecem também a imortalidade das suas almas.
“A saída da escuridão da caverna”
Platão conta uma parábola que ilustra precisamente esta reflexão.
Denominamo-la a parábola da caverna. Vou contá-la com as minhas próprias
palavras. Imagina homens que vivem numa caverna subterrânea. Estão virados
de costas para a entrada, presos com correntes, pelas mãos e pelos pés; por isso
só podem olhar para a parede da caverna. Por detrás deles há um muro alto, e
atrás desse muro passam por sua vez vultos humanos que levam diversos objetos
por cima do muro. Uma vez que atrás desses objetos arde uma fogueira, eles
provocam sombras trêmulas na parede da caverna. A única coisa que os homens
da caverna podem ver é, portanto, este “teatro de sombras”. Estão ali desde quenasceram e para eles as sombras são tudo o que existe.
Imagina agora que um destes habitantes da caverna consegue libertar-se
da prisão. Primeiro, questiona-se de onde é que vêm estas imagens na parede da
caverna. O que é que achas que sucede quando ele se volta para as figuras que
são levadas por cima do muro? De início, fica ofuscado pela luz brilhante. A
visão dos objetos com contorno nítido ofusca-o — até então, ele vira apenas as
suas sombras. Se pudesse subir pelo muro e passar o fogo até sair da caverna,
ficaria ainda mais encandeado. Mas depois de ter esfregado os olhos veria
também como tudo é belo.
Pela primeira vez, veria cores e contornos nítidos.
Veria animais e flores verdadeiros — dos quais as figuras na caverna
eram cópias. Mas nesse momento, perguntar-se-ia de onde é que os animais e as
plantas vêm. Vê o sol no céu e compreende que o sol dá vida às flores e aos
animais na natureza, da mesma forma que o fogo da caverna fazia com que ele
pudesse ver as sombras.
O feliz habitante da caverna poderia sair a correr para a natureza e
alegrar-se com a sua liberdade recém adquirida. Mas ele pensa em todos aqueles
que ainda estão na caverna. Por isso, regressa. Logo que chega lá, tenta explicar
aos outros habitantes da caverna que as sombras na parede são apenas cópias
trêmulas de coisas verdadeiras, mas ninguém acredita nele. Eles apontam para a
parede da caverna e afirmam que o que aí vêem é tudo o que existe. Por fim,
matam-no.Aquilo que Platão descreve na parábola da caverna é o percurso do
filósofo, desde as opiniões confusas até às idéias reais por detrás da natureza.
Pensa também em Sócrates, que os “habitantes da caverna” assassinaram por
destruir as opiniões habituais e por lhes querer mostrar o caminho para o
verdadeiro conhecimento. Desta forma, a parábola da caverna torna-se uma
imagem da coragem e da responsabilidade pedagógica do filósofo.
Para Platão, a relação entre a escuridão da caverna e a natureza lá fora
corresponde à relação entre os objetos da natureza e o mundo das idéias. Ele não
queria dizer que a natureza era escura e triste, mas que ela é escura e triste em
comparação com a claridade das idéias.
A fotografia de uma moça bonita também não é sombria e triste, pelo
contrário, mas é apenas uma fotografia.
“O Estado dos filósofos”
Encontramos a parábola da caverna de Platão no diálogo “A República”.
Platão descreve nessa obra também o Estado ideal, isto é, ele imagina umEstado-modelo — ou aquilo que designamos por “Estado utópico”.
Resumidamente, podemos dizer que, para Platão, o Estado deve ser governado
por filósofos. Toma como ponto de partida o homem individual.
Segundo Platão, o corpo humano é constituído por três partes, a saber: a
cabeça, o peito e o abdômen. A cada uma destas partes corresponde uma
faculdade. À cabeça corresponde a razão, ao peito a vontade, ao abdômen o
prazer ou a concupiscência. A cada uma destas faculdades pertence ainda um
ideal ou uma virtude. A razão deve procurar a sabedoria, a vontade deve mostrar
coragem, e a concupiscência deve ser refreada, para que o homem possua
temperança. Só quando as três partes atuam em consonância temos um homem
harmonioso ou íntegro. Na escola, as crianças têm de aprender primeiro a
refrear a sua concupiscência, depois é desenvolvida a coragem, e por fim devem
desenvolver a razão e adquirir a sabedoria.
Platão imagina um Estado que é organizado exatamente como um
homem. Assim como o corpo possui “cabeça”, “peito” e “abdômen”, o Estado
possui soberanos, guardiões (ou soldados) e os comerciantes (grupo ao qual
pertencem, além dos comerciantes, os artesãos e os camponeses). Torna-se
claro que Platão toma como modelo a ciência médica grega. Assim como um
homem são e harmonioso apresenta equilíbrio e temperança, aquilo que
caracteriza um Estado justo é o fato de cada um conhecer o seu lugar no todo.
Tal como a filosofia de Platão em geral, também a sua filosofia política está
impregnada de racionalismo. Decisivo para a criação de um bom Estado é ele
ser dirigido com razão.
Tal como a cabeça dirige o corpo, são os filósofos que têm de governar a
sociedade. Faço agora uma apresentação resumida da relação entre os três
componentes do homem e do Estado:
Homem Estado
Corpo Alma
Cabeça Razão
Peito Vontade
Abdômen Concupiscência
Virtude Estado
Sabedoria SoberanoCoragem Guardiões
Temperança Artesãos
O Estado ideal de Platão pode fazer lembrar o antigo sistema indiano de
castas, onde cada um tinha a sua função específica para o bem do todo. Desde o
tempo de Platão e ainda antes — o sistema indiano de castas conhece
exatamente esta tripartição entre a casta governante (ou a casta dos sacerdotes),
a casta guerreira e a casta dos artesãos.
Hoje diríamos talvez que o Estado de Platão é um Estado totalitário.
Devemos reparar que ele era da opinião de que as mulheres poderiam governar
o Estado tal como os homens, precisamente porque os soberanos devem
governar a cidade-estado em função da sua razão. Segundo Platão, as mulheres
tinham tanta racionalidade como os homens, se recebessem a mesma formação,
e se fossem ainda libertadas do cuidado das crianças e das tarefas domésticas.
Platão queria abolir nos soberanos e nos seus guardiões a família e a propriedade
privada. A formação das crianças era demasiado importante para ser deixada
aos indivíduos. A educação das crianças tinha de estar a cargo do Estado. (Platão
foi o primeiro filósofo que se pronunciou a favor de jardins infantis e escolas
públicas).Depois de ter tido algumas desilusões políticas, Platão escreveu o diálogo
“As Leis”. Descreve nele o “Estado de lei” como o segundo melhor Estado e
introduz de novo a propriedade privada e os laços familiares. Desta forma, a
liberdade das mulheres é restringida. Mas ele diz também que um Estado que não
educa e forma mulheres é como um homem que apenas exercita o seu braço
direito.
Podemos basicamente dizer que Platão tinha uma opinião positiva das
mulheres — pelo menos para o seu tempo. No diálogo “O Banquete” é uma
mulher, Diotima, que revela a Sócrates o seu saber filosófico.
Isto era Platão, Sofia.
Desde há mais de dois mil anos, os homens discutem e criticam a sua
singular teoria das idéias. O primeiro foi seu discípulo na Academia. Chamava-se
“Aristóteles” — o terceiro grande filósofo de Atenas. Mas não digo mais nada
por hoje!
Enquanto Sofia estivera sentada no tronco, o sol elevara-se a oriente sobre
a colina. Espreitara por cima do horizonte precisamente no momento em que
estava a ler sobre o filósofo que saíra da caverna e piscara os olhos ao ver a luz
brilhante no exterior.
Ela mesma tinha a sensação de sair de uma gruta subterrânea. Sofiajulgava ver a natureza de um modo completamente novo depois de ter lido aquilo
sobre Platão. Tinha a sensação de ter sido cega às cores. Vira talvez sombras,
mas não as idéias claras...
Não tinha a certeza de que Platão tivesse razão em tudo o que afirmava
sobre os arquétipos eternos, mas pareceu-lhe muito bela a idéia de que todas as
coisas vivas eram apenas uma cópia imperfeita da forma eterna no mundo das
idéias. Afinal, era verdade que todas as flores e árvores, homens e animais eram
“imperfeitos”.
Tudo o que via à sua volta era tão belo e vivo que Sofia pensou que tinha de
esfregar os olhos. Mas nada do que via era constante. No entanto, daí a cem anos
haveria ali as mesmas flores e animais. Mesmo que cada animal e cada flor
morresse e fosse esquecido, algo “faria lembrar” o aspecto de tudo.
Sofia admirava esta obra maravilhosa quando, subitamente, um esquilo
saltou para o tronco de um pinheiro, rodopiou e desapareceu por entre os ramos.
Já te vi por aqui, pensou Sofia. Sabia que provavelmente não tinha visto aquele
esquilo — ela vira, por assim dizer, a mesma “forma”. Porque é que Platão não
havia de ter razão ao dizer que ela vira outrora no mundo das idéias o “esquilo”
eterno — muito antes de a sua alma se ter estabelecido num corpo?
Seria verdade que ela já vivera antes? Teria a sua alma existido antes de
ter recebido um corpo que tinha agora de arrastar consigo? Seria verdade que ela
tivesse em si um grão de ouro — uma jóia que o tempo não consumia, uma alma
que viveria depois de o seu corpo envelhecer e morrer?...

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