Cento e trinta e seis dias depois

DUAS SEMANAS DEPOIS, eu ainda não tinha terminado o trabalho
final do Velho, e faltavam apenas 24 horas para o fim do semestre. Eu estava
voltando de uma prova, uma aguerrida, porém (eu esperava) bem-sucedida
batalha com o Pré-Cálculo que me daria o B que eu tanto desejava. Lá fora o
tempo estava bastante quente, como ela. Eu me sentia bem. No dia seguinte,
meus pais viriam buscar minhas coisas, assistiríamos à cerimônia de formatura,
depois voltaríamos para a Flórida. O Coronel voltaria para a casa da mãe para
ver a soja crescer, mas eu podia fazer interurbanos, então nos falaríamos
bastante. Takumi passaria as férias no Japão, e Lara voltaria para casa
novamente numa limusine verde. Eu estava pensando que não era tão ruim não
saber onde Alasca estava ou para onde estaria indo naquela noite, quando abri a
porta do quarto e vi uma folha de papel dobrado no piso de linóleo. Era um papel
de carta verde-limão. Em cima, lia-se em caligrafia:
Da mesa de... Takumi Hikohito
Gordo/ Coronel,
Peço desculpas por não lhes ter contato antes. Não vou ficar para a
formatura. Viajo para o Japão amanhã de manhã. Por muito tempo, fiquei
furioso com vocês. Fiquei magoado por me deixarem de fora de todas as
coisas, então guardei para mim o que eu sabia. No entanto, mesmo quando
já não estava furioso, não lhes disse nada, nem sei por quê. O Gordo tinha
aquele beijo, eu acho. Eu tinha esse segredo.
Vocês devem ter deduzido, mas a verdade é que eu a vi naquela noite. Tinha
ficado acordado até tarde com a Lara e mais algumas pessoas, e estava
quase caindo no sono quando ouvi seu choro pela janela dos fundos do meu
quarto. Devia ser umas 3h 15 da madrugada. Fui lá fora, e ela estava
correndo pelo campo de futebol. Tentei conversar, mas ela estava com
pressa. Fazia oito anos que sua mãe tinha morrido. Ela costumava levar
flores ao túmulo nos aniversários de morte, mas, naquele ano, tinha
esquecido. Estava procurando por flores, mas era cedo demais – estava frio
demais. Foi assim que eu descobri sobre o dia 10 de janeiro. Mas continuo
sem saber se foi suicídio.
Ela estava tão triste. Eu não sabia o que dizer, não sabia o que fazer. Acho
que ela contava comigo para ser a pessoa que sempre diria e faria a coisacerta para ajudá-la, mas não consegui. Pensei que ela estivesse
procurando flores. Não sabia que pretendia sair. Ela estava bêbada, bêbada
de cair no chão. Não pensei que fosse dirigir ou algo assim. Pensei que
fosse chorar até dormir e que fosse visitar o túmulo da mãe no dia seguinte
ou algo assim. Ela saiu caminhando, então ouvi o motor de carro. Não sei no
que eu estava pensando.
Então acho que eu também a deixei ir. Sinto muito. Sei que vocês a amavam.
Era difícil não amá-la.
Takumi
Saí correndo do quarto, como se nunca tivesse fumado um cigarro,
como na Noite do Celeiro com o Takumi. Atravessei o círculo dos dormitórios,
mas ele tinha ido embora. A cama era puro vinil; a escrivaninha estava vazia;
uma moldura de poeira onde o estéreo costumava ficar. Ele tinha ido embora, e
eu não pude lhe dizer o que acabara de descobrir: que eu o perdoava, que ela nos
perdoava, que tínhamos de perdoar para sobreviver no labirinto. Tantos de nós
teríamos de conviver com coisas feitas e deixadas de fazer naquele dia. Coisas
que terminaram mal, coisas que pareceram normais na hora, porque não
tínhamos como prever o futuro. Se ao menos conseguíssemos enxergar a infinita
cadeia de conseqüências que resulta das nossas pequenas decisões. Mas só
percebemos tarde demais, quando perceber é inútil.
A caminho do quarto para mostrar o bilhete para o Coronel, percebi que
jamais saberia. Jamais a conheceria suficientemente bem para saber se passara
em sua cabeça naqueles últimos instantes, jamais saberia se ela tinha nos deixado
de propósito. Mas o fato de não saber não me impediria de me importar. Eu
sempre amaria Alasca Young, minha vizinha pervertida, com todo o meu
pervertido coração.
Entrei no Quarto 43, mas o Coronel não estava lá, então deixei o bilhete
no beliche de cima, sentei-me ao computador e escrevi minha saída do labirinto.
Antes de vir para cá, pensei por um bom tempo que para sair do labirinto
fosse necessário fingir que ele não existia, construir um mundo pequeno, porém
autossuficiente num rincão longínquo desse infinito labirinto e fingir que eu não
estava perdido, mas em casa. Só que isso tinha me conduzido a uma vida
solitária, tendo por companhia unicamente as últimas palavras dos já-mortos.
Então vim para cá em busca de um Grande Talvez, de amigos verdadeiros e de
uma vida maior do que a minha vidinha. Mas estraguei tudo, o Coronel estragou
tudo, Takumi estragou tudo, e ela escorreu por entre nossos dedos. E não adianta
embelezar a verdade: Ela merecia amigos melhores.
Depois que estragou tudo, tantos anos atrás, apenas uma garotinhaimobilizada pelo terror, Alasca desmoronou em seu próprio enigma. Eu poderia
ter tomado o mesmo rumo, mas sabia onde aquilo ia dar. Então continuo
acreditando num Grande Talvez e sou capaz de acreditar nele apesar de tê-la
perdido.
Pois, sim, vou esquecê-la. Aquilo que é construído desmorona
imperceptivelmente devagar. Vou esquecê-la, mas ela perdoará meu
esquecimento, assim como eu a perdôo por ter se esquecido de mim, do Coronel
e de todo mundo, lembrando-se apenas de si mesma e de sua mãe naqueles
últimos minutos que passou como pessoa. Hoje sei que ela me perdoa por ter sido
burro e medroso, por ter tomado uma atitude burra e medrosa. Sei que ela me
perdoa, assim como sua mãe também a perdoa. Eis por que sei disso:
Pensei, no começo, que ela fosse apenas um cadáver. Apenas escuridão.
Apenas um corpo a ser comido pelos vermes. Pensei muito nela assim, como a
refeição de algum bicho. O Que ela fora – olhos verdes, um meio sorriso, as
curvas suaves da perna – em breve seria um nada, apenas ossos que eu não tinha
visto. Pensei no lento processo de tornar-se esqueleto, depois fóssil, depois
carvão, e, dali a milhares de anos, ser extraído pelas pessoas do futuro, que
aqueceriam suas casas com ela e a transformariam em fumaça, ondulando
numa chaminé, cobrindo a atmosfera. Às vezes, ainda acho que a “outra vida” é
algo que inventamos para apaziguar a dor da perda, para tornar nosso tempo no
labirinto suportável. Talvez ela fosse apenas matéria, e a matéria se recicla.
Mas, para ser sincero, não acredito que ela fosse só matéria. O resto dela
também precisa ser reciclado. Hoje, acredito que somos mais do que a soma das
nossas partes. Se pegássemos seu código genético, suas experiências de vida, seus
relacionamentos com outras pessoas e os enxertássemos num corpo do mesmo
tamanho e com as mesmas proporções, ainda assim não teríamos outra Alasca.
Existe algo mais. Uma parte que é maior do que a soma das suas partes
cognoscíveis. E essa parte tem de ir para algum lugar, pois não pode ser
destruída.
Embora ninguém possa me acusar de ser um grande estudioso das
ciências exatas, se tem uma coisa que aprendi nas aulas de Física é que a energia
não se cria nem se destrói. E, se Alasca realmente tirou sua própria vida, esse é o
tipo de esperança que eu gostaria de lhe ter dado. Esquecer e abandonar a mãe,
os amigos, as próprias expectativas – eram coisas horríveis, mas ela não
precisava ter se metido em si mesma e se autodestruído. Somos capazes de
sobreviver a essas coisas horríveis, pois somos tão indestrutíveis quanto pensamos
ser. Quando os adultos dizem: “Os adolescentes se acham invencíveis”, com
aquele sorriso malicioso e idiota estampado na cara, eles não sabem quanto estão
certos. Não devemos perder a esperança, pois jamais seremos
irremediavelmente feridos. Pensamos que somos invencíveis porque realmente
somos. Não nascemos, nem morremos. Como toda energia, nós simplesmentemudamos de forma, de tamanho e de manifestação. Os adultos se esquecem
disso quando envelhecem. Ficam com medo de perder e de fracassar. Mas essa
parte que é maior do que a soma das partes não tem começo e não tem fim, e,
portanto, não pode falhar.
Eu sei que ela me perdoa, assim como eu a perdôo. As últimas palavras
de Thomas Edson foram: “O outro lado é muito bonito.” Eu não sei onde fica o
outro lado, mas acredito que seja em algum lugar e espero que seja bonito.

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