Quarenta e seis dias depois

EU NÃO QUERIA FALAR COM A LARA, mas, no almoço do dia
seguinte, Takumi lançou mão do argumento mais forte para me fazer sentir
culpado. “O que a Alasca ia pensar disso?”, ele perguntou, olhando para Lara.
Ela estava sentada a três mesas de distância com a colega de quarto, Katie, que
estava contando uma história, e sorria toda vez que Katie ria das próprias piadas.
Levou uma garfada de milho enlatado a boca e pressionou contra o palato,
movendo o maxilar para triturá-lo, a cabeça baixa enquanto comia do garfo –
era tão discreta.
“Ela poderia reclamar comigo”, eu disse para o Takumi.
Takumi balançou a cabeça. E, com a boca aberta, cheia de purê de
batata, disse: “Você precisa fazer isso”. Engoliu. “Deixa eu fazer uma pergunta
para você, Gordo. Quando você estiver velho e grisalho, com os netinhos
sentados no colo, e eles se virarem para você e disserem: “Vovozinho, como foi
seu primeiro boquete?”, você vai querer dizer que foi uma garota que você
ignorou pelo resto do Ensino médio? Não!” Sorriu. “Você vai querer dizer: ‘Foi
com minha querida amiga Lara Buterskaya. Uma garota adorável. Muito mais
bonita que a vovó.” Eu ri. Está bem, eu precisava falar com a Lara.
Depois da aula, fui até o seu quarto e bati na porta. Ela veio atender e
ficou me olhando com quem diz: O que foi? O que foi agora? Você já fez todo o
estrago que podia fazer, Gordo. Eu olhei através dela, para o quarto no qual só
entrara uma vez,onde tinha aprendido que, com beijo ou sem beijo, não
conseguia me comunicar com ela – e, antes que o silêncio se tornasse
desconfortável demais, falei. “Desculpa”, eu disse.
“Desculpa pelo que?”, ela perguntou, ainda olhando em minha direção,
mas não para mim.
“Por ter ignorado você. Por tudo”, eu disse.
“Ninguém disse que você precisava ser meu namorado”. Ela estava tão
bonita, os olhos grandes piscando depressa, as faces suaves e roliças. No entanto,
toda aquela redondeza só fazia me lembrar do rosto fino e das bochechas
salientes da Alasca. Mas eu podia viver com isso - além do mais, era preciso.
“Poderíamos ser só amigos”, ela disse.
“Eu sei. Eu estraguei tudo. Sinto muito.”
“Não aceite as desculpas desse babaca!”, Katie gritou de dentro do
quarto.
“Eu perdoo você”, Lara sorriu e me abraçou, envolvendo firmemente
minha cintura. Passei os braços por cima de seus ombros e senti o cheiro de
violeta de seus cabelos.
“Mas eu não!”, Katie disse, aparecendo no vão da porta. E, embora eu eela não fossemos muito próximos, ela se sentiu no direito de me dar uma
joelhada no saco. Depois sorriu e, enquanto eu me curvava numa mesura
forçada, disse: “Agora está perdoado”.
Lara e eu saímos para caminhar pelo lago – sans Katie – e conversamos.
Conversamos – sobre Alasca e sobre o último mês, sobre o fato de ela ter sentido
falta tanto da Alasca quanto de mim, enquanto eu só sentia falta da Alasca (e ela
estava certa). Contei-lhe toda a verdade que podia, desde as bombinhas até a
Delegacia de Polícia de Pelham e as tulipas.
“Eu amava a Alasca”, eu disse, e Lara disse que também a amava,
então me expliquei, “Eu sei, mas foi esse o motivo. Eu amava a Alasca, e, depois
que ela morreu, não consegui pensar em outra coisa. Parecia desonesto, sabe?
Como uma traição”.
“Não é um bom motivo”, ela disse.
“Eu sei”.
Ela sorriu suavemente. “Ótimo. Melhor assim. Pelo menos você
admite”. Eu sabia que não conseguia apagar esse ressentimento, mas estávamos
conversando.
Enquanto a escuridão se derramava pela noite, as rãs coaxavam e uns
poucos insetos recém-ressuscitados zumbiam pelo campus, nós quatro - Takumi,
Lara, o Coronel e eu - caminhamos sob a luz fria e cinzenta da lua cheia até o
buraco de fumo.
“Coronel, por que vocês chamam esse lugar de Buraco do Fumo?”, Lara
perguntou. “Parece mais um túnel”.
“É como um buraco de pesca”, o Coronel disse. “Tipo, se nós
pescássemos, pescaríamos aqui. Mas nós fumamos. Sei lá. Acho que foi Alasca
que deu esse nome”. O Coronel puxou um cigarro do maço e o jogou na água.
“Mas que diabos?”, perguntei.
“Para ela”, ele disse.
Abri um meio sorriso e repeti o gesto, jogando um dos meus cigarros na
água. Dei um para o Takumi e outro para a Lara, e eles fizeram o mesmo. Os
cigarros balançaram e dançaram no regato por um momento, depois foram
levados pela corrente e sumiram de vista.
Eu não era religioso, mas gostava de rituais. Gostava da idéia de poder
ligar uma ação a uma lembrança. Na China, o Velho dissera, havia dias
reservados para limpar os túmulos, e as pessoas faziam oferendas para os
mortos. Imaginei que Alasca iria querer um cigarro, então me pareceu que o
Coronel tinha dado inicio lentamente a um excelente ritual.
Ele cuspiu no regato e quebrou o silêncio. “Engraçado, isso de falar com
os fantasmas”, disse. “Não dá para saber se você esta inventando as respostas ou
se eles estão mesmo falando com você.”
“Acho que devemos fazer uma lista”,Takumi disse, procurando evitarquaisquer conversas mais introspectivas. “Que evidências apontam para o
suicídio?”. O Coronel puxou o caderno que estava sempre com ele.
“Ela não pisou no freio”, eu disse. O Coronel anotou depressa.
Ela estava bastante chateada com alguma coisa, se bem que ela já
estivera chateada outras vezes e nem por isso cometera suicídio. Imaginamos
que as flores seriam uma espécie de memorial para ela mesma - como um
arranjo fúnebre ou algo assim. Mas isso não nos parecia Alasca. Ela era
enigmática, é verdade, mas quem planeja o suicídio pensando em flores,
provavelmente, também planeja o modo como vai morrer, e Alasca não tinha
como saber que um carro de policia estaria na 1-65 naquele exato momento.
E as evidências que apontavam para um acidente?
“Ela realmente estava muito bêbada, talvez estivesse pensando que não
ia bater na viatura, mas não sei como”, Takumi disse.
“Ela pode ter cochilado”, Lara tentou ajudar.
“É, nós pensamos nessa possibilidade”, eu disse. “Mas acho que, se ela
tivesse cochilado, não teria seguido uma linha reta.”
“Não consigo pensar numa solução que não ponha nossas vidas em
risco”, o Coronel disse desanimado. “Mas ela não apresentava sinais de risco de
suicídio. Tipo, ela não falava sobre se matar nem se desfazia de seus pertences e
esse tipo de coisa.”
“Com isso, são duas. Bêbada e sem planos para morrer”, Takumi disse.
Aquilo não estava nos levando a lugar nenhum. Apenas uma dança diferente
com as mesmas perguntas. Não precisávamos de mais raciocínio. Precisávamos
de mais provas.
“Precisamos descobrir aonde ela estava indo”, o Coronel disse.
“As últimas pessoas com quem ela conversou foram eu, você e o Jake”,
eu lhe disse. “E nós não sabemos. Então como vamos descobrir?”.
Takumi olhou para o coronel e soltou um suspiro. “Acho que isso não vai
nos ajudar em nada, saber para onde ela estava indo. Acho que só tornaria as
coisas mais difíceis para todos nós. Tenho um mau pressentimento.”
“Certo, mas eu quero saber”, Lara disse, e foi então que eu compreendi
o que Takumi quisera dizer naquele dia em que tomamos banho juntos - eu podia
tê-lá beijado, mas, de fato, não exercia um monopólio sobre Alasca; o Coronel e
eu não éramos os únicos que se importavam com ela, não estávamos sozinhos na
busca dos “comos” e dos “por quês” de sua morte.
“Bem, seja como for”, disse o Coronel, estamos num beco sem saída.
Um de vocês terá de pensar numa solução. “Porque minhas ferramentas
investigativas já se esgotaram”.
Ele bateu a ponta do cigarro em cima da água, levantou-se e foi embora.
Nós o seguimos. Mesmo na derrota, ele continuava sendo o Coronel.

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