Caixa de Pássaros - Capítulo 10

Faz duas semanas desde que Malorie foi morar na casa. Os moradores vivem quase unicamente da comida enlatada da despensa, além da pequena quantidade de carne congelada que está guardada no freezer. Toda manhã, Malorie fica aliviada ao ver que ainda há eletricidade. O rádio é a fonte de notícias, mas o único locutor que continua vivo, Rodney Barrett, não tem nenhuma novidade para contar. Em vez disso, ele divaga. Fica irritado. Xinga.
Os colegas de casa até já o ouviram dormir ao vivo. Mas, apesar de tudo isso, Malorie entende por que continuam a ouvi-lo. Mesmo que a voz esteja baixinha, ao fundo, ou preencha toda a sala de jantar, onde o rádio fica, ele é a última ligação que têm com o mundo exterior.
Malorie já se sente presa em um cofre. A claustrofobia é assustadora e pesa nela e no bebê.
No entanto, essa noite seus companheiros de casa vão dar uma espécie de festa.
Os seis estão reunidos em torno da mesa de jantar. Além da comida enlatada, do papel higiênico, das baterias, das velas, dos cobertores e das ferramentas armazenados no porão, há algumas garrafas de rum — que são um bom acompanhamento para a maconha trazida por Felix (que, envergonhado, admitiu que estava esperando mais uma casa “hippie” do que o grupo bem organizado que encontrou ao chegar). Malorie, por respeito à gravidez, é a única que não compartilha da bebida e do fumo. Mesmo assim, certos humores são contagiantes, e, enquanto Rodney Barrett sai da rotina e põe uma música para tocar, Malorie consegue sorrir e, às vezes, até rir, apesar dos horrores inimagináveis que viraram parte de sua rotina.
Há um piano na sala de jantar. Assim como a pilha de livros de humor ao lado da penteadeira em seu quarto, o piano parece uma reminiscência de outra época, quase fora de lugar.
Nesse momento, Tom está tocando piano.
— Em que tom é essa música? — grita ele, suando, para a outra ponta da sala, onde Felix está sentado à mesa. — Você conhece os tons?
Felix sorri e balança a cabeça.
— Como é que vou saber? Mas posso cantar com você daqui, Tom.
— Por favor, não faça isso — pede Don, bebendo rum de uma taça, sorrindo.
— Não, não — explica Felix, rindo. — Sou bom de verdade!
Felix tropeça ao se levantar. Ele se junta a Tom no piano. Juntos, os dois cantam “It’s De- Lovely”. O rádio está apoiado num aparador espelhado. A música de Rodney Barrett briga baixinho com a de Cole Porter.
— Como você está, Malorie? — pergunta Don, sentado na outra ponta da mesa. — Está gostando daqui?
— Estou bem — responde ela. — Penso muito no bebê.
Don sorri. E quando ele faz isso, Malorie vê certa tristeza em seu rosto. Ela sabe que Don também perdeu uma irmã. Todos os seus companheiros de casa sofreram perdas devastadoras.
Os pais de Cheryl, com medo, foram para o sul de carro. Ela não fala com eles desde então.
Felix espera conseguir notícias dos irmãos toda vez que faz um telefonema aleatório. Jules costuma falar da noiva, Sydney, que achou na sarjeta, perto do prédio onde moravam, antes de responder ao mesmo anúncio que Malorie encontrou. O pescoço dela havia sido cortado. Mas Malorie acha que a história de Tom é a pior. Se é que essa palavra ainda faz sentido.
Naquele momento, observando-o tocar piano, Malorie sofre pelo amigo.
Por um instante, quando “It’s De-Lovely” termina, eles conseguem ouvir o rádio de novo. A música que Rodney Barrett colocou para tocar também chega ao fim. Então ele começa a falar.
— Escutem, escutem — pede Cheryl.
Ela atravessa a sala até o local onde fica o rádio. Agacha-se diante dele e aumenta o volume.
— Ele parece mais deprimido do que de costume.
Tom ignora o rádio. Suando, bebendo rum, batuca as primeiras notas de “I’ve Got Rhythm”, de Gershwin. Don se vira para ver do que Cheryl está falando. Jules, sentado no chão, encostado na parede e fazendo carinho em Victor, vira a cabeça lentamente para o rádio.
“Criaturas”, diz Rodney Barrett. A voz dele está arrastada. “O que vocês tiraram de nós? O que estão fazendo aqui? Têm algum objetivo?”
Don se levanta e se junta a Cheryl ao lado do rádio. Tom para de tocar.
— Eu nunca ouvi esse cara falar diretamente com as criaturas — comenta, do banco do piano.
“Perdemos mães, pais, irmãs, irmãos”, lembra Rodney Barrett. “Perdemos mulheres e maridos, amantes e amigos. Mas nada dói mais do que as crianças que tiraram de nós. Como ousam pedir a uma criança que olhe para vocês?”
Malorie lança um olhar para Tom. Ele está ouvindo. Tem os olhos distantes. Ela se levanta e vai até ele.
— Ele já ficou baixo-astral antes — afirma Cheryl sobre Rodney Barrett. — Mas nunca tanto assim.
— É — concorda Don. — Ele parece mais bêbado do que a gente.
— Tom — diz Malorie, sentando-se ao lado do amigo ao piano.
— Ele vai se matar — afirma Don, de repente.
Malorie olha para Don, na intenção de pedir que se cale, depois ouve a mesma coisa que ele ouviu. O desamparo completo na voz de Rodney Barrett.
“Hoje eu vou trapacear no jogo de vocês”, afirma o locutor. “Vou tirar a única coisa que vocês ainda podem tirar de mim.”
— Ai, meu Deus — exclama Cheryl.
O rádio fica em silêncio.
— Desligue isso, Cheryl — pede Jules. — Desligue!
Enquanto ela estende a mão, o som de um tiro ressoa nos alto-falantes.
Cheryl grita. Victor late.
— Que merda foi essa que acabou de acontecer? — pergunta Felix, encarando o rádio sem entender.
— Ele se matou — diz Jules, impassível. — Não consigo acreditar nisso.
Silêncio.
Tom se levanta do banco do piano e desliga o rádio. Felix toma mais um gole de sua bebida. Jules está apoiado sobre um dos joelhos, acalmando Victor.
Então, de repente, como se fosse um eco do tiro, alguém bate na porta.
Logo em seguida, há uma segunda batida.
Felix se aproxima da porta e Don agarra o braço dele.
— Não abra a porta assim, cara. Pelo amor de Deus. O que deu em você?
— Eu não ia abrir, cara! — responde Felix, puxando seu braço de volta.
As batidas recomeçam. A voz é de uma mulher.
— Olá?
Os moradores da casa ficam parados, em silêncio.
— Alguém responda — pede Malorie, levantando-se do piano para fazer isso. Mas Tom é mais rápido que ela.
— Oi! — grita ele. — Estamos aqui. Quem é você?
— Olympia! Meu nome é Olympia! Me deixem entrar!
Tom faz uma pausa. Parece estar bêbado.
— Você está sozinha? — pergunta.
— Estou!
— Com os olhos fechados?
— Sim, meus olhos estão fechados. Estou com muito medo. Por favor, me deixem entrar!
Tom olha para Don.
— Alguém vá pegar os cabos de vassoura — pede.
Jules sai para pegá-los.
— Não acho que a gente possa aceitar mais bocas para alimentar — afirma Don.
— Você é maluco — diz Felix. — Tem uma mulher lá fora...
— Eu sei o que está acontecendo, Felix — responde Don, irritado. — Só que não podemos abrigar o país inteiro.
— Mas ela está lá fora agora — argumenta Felix.
— E a gente está bêbado — retruca Don.
— Por favor, Don — insiste Tom.
— Não me transforme em vilão — pede Don. — Você sabe tão bem quanto eu quantas latas exatamente temos no porão.
— Olá? — grita a mulher de novo.
— Espere aí! — responde Tom.
Tom e Don se encaram. Jules entra no hall. Ele entrega uma das vassouras para Tom.
— Façam o que quiserem, pessoal — afirma Don. — Mas vamos morrer de fome mais cedo por causa disso.
Tom se vira para a porta da frente.
— Fechem os olhos, gente.
Malorie ouve os sapatos do amigo atravessarem o piso de madeira do hall.
— Olympia? — grita Tom.
— Oi!
— Vou abrir a porta agora. Quando eu fizer isso, assim que você ouvir que está aberta, entre o mais rápido que puder. Entendeu?
— Entendi!
Malorie ouve a porta da frente se abrir. Há uma comoção. Ela imagina Tom puxando a mulher para dentro como os outros fizeram com ela duas semanas antes. Então a porta bate, se fechando.
— Continuem de olhos fechados! — pede Tom. — Vou fazer uma revista. Para garantir que nada entrou com você.
Malorie ouve o cabo de vassoura bater nas paredes, no chão, no teto e na porta da frente.
— Está bem — diz ele, por fim. — Vamos abrir os olhos.
Ao abrir os seus, Malorie vê uma moça muito bonita, pálida, de cabelos negros, ao lado de Tom.
— Obrigada — diz ela, ofegante.
Tom começa a fazer uma pergunta, mas Malorie o interrompe:
— Você está grávida? — pergunta a Olympia.
Olympia olha para a própria barriga. Tremendo, ergue o olhar, assentindo.
— Estou de quatro meses — responde.
— Incrível! — exclama Malorie, se aproximando. — Igual a mim.
— Porra — xinga Don.
— Sou vizinha de vocês — explica Olympia. — Desculpe por assustá-los assim. Meu marido é da aeronáutica. Não recebo notícias dele há semanas. Talvez esteja morto. Ouvi vocês. O piano. Levei um tempo para criar coragem e vir até aqui. Normalmente, traria cupcakes.
Apesar da história horrível que todos na sala acabaram de ouvir, a inocência de Olympia rompe a escuridão.
— Estamos felizes por ter você aqui — diz Tom, mas Malorie pode ouvir em sua voz a exaustão e a pressão por ter que cuidar de duas grávidas. — Entre.
Eles conduzem Olympia pelo corredor até a sala de estar. Ao pé da escada, ela leva um susto e aponta para uma foto pendurada na parede.
— Ah! — exclama. — Este homem está aqui?
— Não — explica Tom. — Não está mais. Você deve conhecer George. Ele era dono desta casa.
Olympia assente.
— É, já vi esse cara várias vezes.
Os moradores da casa se reúnem na sala de estar. Tom se senta com Olympia no sofá.
Malorie ouve em silêncio enquanto ele, sombrio, pergunta à mulher sobre os objetos da casa dela. O que ela tem. O que deixou para trás.
O que podem usar ali.

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