Comum
Sei que não sou um garoto de dez anos comum. Quer dizer, é claro que faço coisas comuns. Tomo sorvete. Ando de bicicleta. Jogo bola. Tenho um Xbox. Essas coisas me fazem ser comum. Por dentro. Mas sei que as crianças comuns não fazem outras crianças comuns saírem correndo e gritando do parquinho. Sei que os outros não ficam encarando as crianças comuns aonde quer que elas vão. Se eu encontrasse uma lâmpada mágica e pudesse fazer um desejo, pediria para ter um rosto comum, em que ninguém nunca prestasse atenção. Pediria para poder andar na rua sem que as pessoas me vissem e depois fingissem olhar para o outro lado. Sabe o que eu acho? A única razão de eu não ser comum é que ninguém além de mim me enxerga dessa forma. Mas agora meio que já me acostumei com minha aparência. Sei fingir que não vejo as caretas que as pessoas fazem. Nós todos ficamos muito bons nisso: eu, mamãe e papai, a Via. Na verdade, retiro o que disse: a Via não é tão boa. Às vezes ela fica muito irritada quando fazem algo grosseiro. Por exemplo, naquela vez no parquinho, quando uns garotos mais velhos fizeram alguns barulhos. Nem sei que barulhos eram, porque eu mesmo não ouvi, mas a Via escutou e simplesmente começou a gritar com eles. Esse é o jeito dela. Eu não sou assim. Ela não acha que eu seja comum. Diz que acha, mas, se eu fosse comum, ela não precisaria me proteger tanto. Mamãe e papai também não me acham comum. Eles me acham extraordinário. Talvez a única pessoa no mundo que percebe o quanto sou comum seja eu. Aliás, meu nome é August. Não vou descrever minha aparência. Não importa o que você esteja pensando, porque provavelmente é pior.
Por que eu não ia à escola
Na semana que vem vou começar o quinto ano. Como nunca estudei em um colégio de verdade, meio que estou total e completamente apavorado. As pessoas acham que não fui à escola por causa da minha aparência, mas não é isso. É por causa de todas as vezes em que fui operado. Vinte e sete desde que nasci. As mais importantes aconteceram antes de eu ter quatro anos, por isso não lembro. Mas desde então passei por duas ou três cirurgias a cada ano (algumas grandes, outras menores), e, como sou pequeno para a minha idade e tenho outros problemas misteriosos que os médicos nunca conseguiram entender, eu ficava doente o tempo todo. Foi por isso que meus pais decidiram que seria melhor eu não ir para a escola. Mas estou bem mais forte agora. Minha última cirurgia foi oito meses atrás e provavelmente não precisarei de outra pelos próximos anos. A mamãe me dá aulas em casa. Ela era ilustradora de livros infantis e desenha fadas e sereias lindas. Uma vez tentou desenhar um Darth Vader para mim, mas ficou parecendo um robô estranho com formato de cogumelo. Há muito tempo não a vejo desenhar nada. Acho que está ocupada demais cuidando de mim e da Via. Não posso dizer que eu sempre quis ir à escola, porque isso não seria exatamente verdade. Eu queria ir, mas só se pudesse ser como todas as outras crianças. Ter muitos amigos, sair depois da aula, coisas desse tipo. Tenho alguns amigos de verdade agora. O Christopher é meu melhor amigo, e depois vêm o Zachary e o Alex. A gente se conhece desde bebês. E, como eles já me conheceram como sou, estão acostumados. Quando a gente era pequeno, brincava junto o tempo todo, mas depois o Christopher se mudou para Bridgeport, em Connecticut. Fica a mais de uma hora de onde eu moro, em North River Heights, na ponta de cima de Manhattan. E o Zachary e o Alex começaram a ir à escola. É estranho: embora o Christopher tenha se mudado para longe, ainda o vejo mais do que vejo o Zachary e o Alex. Eles têm um monte de amigos novos agora. Mas quando nos esbarramos na rua eles ainda são legais comigo e sempre dizem oi. Tenho outros amigos também, mas não tão legais quanto o Christopher, o Zach e o Alex. Por exemplo, o Zach e o Alex sempre me convidavam para as festas de aniversário deles quando a gente era pequeno, mas o Joel, o Eamonn e o Gabe nunca fizeram isso. A Emma me convidou uma vez, mas não a vejo há muito tempo. E, é claro, sempre vou nas festas do Christopher. Talvez eu esteja exagerando com esse negócio de festas de aniversário.
Como eu nasci
Gosto quando a mamãe conta essa história porque ela me faz rir muito. Não é engraçada como uma piada, mas, quando a mamãe conta, a Via e eu simplesmente caímos na gargalhada. Então, quando eu estava na barriga da minha mãe, ninguém fazia a menor ideia de que eu seria desse jeito. A Via tinha nascido quatro anos antes e tudo tinha sido tão “mamão com açúcar” (como a mamãe diz), que não havia razão para fazer exames especiais. Uns dois meses antes de eu nascer, os médicos perceberam que havia algo errado com meu rosto, mas não acharam que fosse muito ruim. Disseram para os meus pais que eu tinha lábio leporino e algumas outras coisas. Chamaram de “pequenas anomalias”. Duas enfermeiras estavam na sala de parto na noite em que nasci. Uma era muito doce e boazinha. A outra, segundo a mamãe, não parecia ser nem um pouco assim. Tinha braços muito grandes (aqui começa a parte engraçada) e ficava soltando puns. Tipo, ela dava cubos de gelo para a minha mãe e soltava um pum. Media a pressão e soltava outro pum. A mamãe diz que era inacreditável, porque a enfermeira nem ficava sem graça! Além disso, o obstetra dela não estava de plantão naquela noite, então ela acabou nas mãos de um residente mal-humorado que ela e o papai apelidaram de Doogie, por causa de um velho programa de TV ou algo do tipo (não chamavam o médico assim na frente dele). Mas a mamãe diz que, embora todo mundo na sala estivesse meio irritado, papai a fez rir a noite toda. Quando saí da barriga da minha mãe, ela disse que todo mundo no quarto ficou muito quieto. Ela nem conseguiu me ver, porque a enfermeira boazinha saiu correndo comigo. O papai foi atrás com tanta pressa que deixou cair a filmadora, que ficou em pedacinhos. Então a mamãe ficou muito chateada e tentou levantar para ver aonde eles tinham ido, mas a enfermeira que soltava pum a segurou na cama com seus braços grandões. As duas estavam quase brigando, porque minha mãe estava histérica e a enfermeira que soltava pum não parava de gritar para ela ficar calma, e então as duas começaram a gritar chamando o médico. Mas, adivinhe só? Ele tinha desmaiado! Estava caído no chão! Quando a enfermeira do pum o viu desmaiado, começou a cutucá-lo com o pé, tentando acordá-lo, sem parar de gritar: “Que tipo de médico você é? Que tipo de médico você é? Acorde! Acorde!” Aí, de repente, ela soltou o maior, mais barulhento e mais fedorento pum da história dos puns. A mamãe acha que, na verdade, foi o pum que acordou o médico. Quando ela conta essa história, representa todos os papéis — faz até os barulhos dos puns — e é tão, tão, tão engraçado! Minha mãe diz que a enfermeira que soltava pum era, na verdade, uma moça muito legal. Ficou com ela o tempo todo. Não saiu do seu lado nem depois que o papai voltou e os médicos contaram para eles da gravidade da minha doença. Mamãe se lembra perfeitamente das palavras que a enfermeira sussurrou em seu ouvido quando o médico disse que era provável que eu não sobrevivesse àquela noite. “Todo o que é nascido de Deus vence o mundo.” No dia seguinte, depois que eu tinha sobrevivido àquela noite, foi a mesma enfermeira que segurou a mão da minha mãe quando a levaram para me ver pela primeira vez. A mamãe fala que, àquela altura, haviam lhe falado tudo sobre mim. Ela já tinha se preparado para me ver. Mas diz que, quando olhou para o meu rosto minúsculo e deformado pela primeira vez, só o que notou foi como meus olhos eram bonitos. Aliás, a mamãe é linda. O papai é bonito também. A Via é bem bonita. Caso você esteja se perguntando.
A casa do Christopher
Fiquei muito chateado quando o Christopher se mudou, três
anos atrás. A gente tinha uns sete
anos na época e passava horas brincando com nossos bonecos
de Star Wars e lutando com os
sabres de luz. Sinto falta disso.
Na primavera passada fomos até a casa dele em Bridgeport.
Nós estávamos procurando
biscoitos na cozinha quando ouvi a mamãe conversando com a
Lisa, a mãe do Christopher,
sobre eu começar a ir à escola em setembro. Eu nunca, nunca
a tinha ouvido falar de escola
antes.
— Do que está falando? — perguntei.
Ela pareceu surpresa, como se não fosse para eu ter escutado
aquilo.
— Você deveria contar para ele no que está pensando, Isabel
— sugeriu o papai, que estava
do outro lado da sala, conversando com o pai do Christopher.
— É melhor falarmos sobre isso depois — disse a mamãe.
— Não. Eu quero saber do que você estava falando —
retruquei.
— Você não acha que está pronto para ir à escola, Auggie? —
perguntou a mamãe.
— Não — respondi.
— Eu também não — concordou papai.
— Então é isso. Assunto encerrado — concluí, dando de
ombros, e sentei no colo dela,
como se fosse um bebê.
— Só acho que você precisa aprender mais do que eu posso
ensinar — justificou-se a
mamãe. — Quer dizer... Ah, Auggie, você sabe como sou péssima
com frações!
— Que escola? — perguntei, já com vontade de chorar.
— Beecher Prep. Bem do lado de casa.
— Uau! É uma ótima escola, Auggie — disse a Lisa, dando um
tapinha no meu joelho.
— Por que não a escola da Via? — eu quis saber.
— É grande demais — explicou a mamãe. — Acho que não seria o
melhor para você.
— Não quero ir — falei.
Admito: eu fiz uma voz igual a de um bebezinho.
— Você não tem que fazer nada que não queira — disse o
papai, chegando perto e me
tirando da mamãe. Ele sentou no outro lado do sofá, comigo
no colo. — Não vamos obrigá-lo
a fazer nada que não queira.
— Mas seria bom para ele, Nate — insistiu a mamãe.
— Não se ele não quiser ir — rebateu o papai, olhando para
mim. — Não se ele não estiver
preparado.
Vi a mamãe olhar para a Lisa, que esticou o braço e apertou
a mão dela.
— Vocês vão dar um jeito — disse ela para a minha mãe. —
Sempre deram.
— Vamos conversar sobre isso depois, certo? — falou a mamãe.
Dava para ver que ela e o papai iam brigar por causa
daquilo. Eu queria que ele ganhasse a
briga, mas parte de mim sabia que a mamãe estava certa. E a
verdade é que ela era mesmo
péssima em frações.
Voltando para casa
Foi uma longa viagem de volta para casa. Dormi no banco
traseiro como sempre faço, com a
cabeça no colo da Via como se fosse um travesseiro e uma
toalha enrolada no cinto de
segurança para eu não babar minha irmã toda. A Via dormiu
também, e a mamãe e o papai
ficaram conversando baixinho sobre coisas de adulto que não
me interessavam.
Não sei por quanto tempo eu dormi, mas quando acordei vi a
lua cheia pela janela do carro.
A noite estava clara, e seguíamos por uma autoestrada
lotada. Então ouvi a mamãe e o papai
falando de mim.
— Não podemos continuar a protegê-lo — sussurrou ela para o
papai, que estava dirigindo.
— Não podemos fingir que ele vai acordar amanhã e esta não
será mais a realidade dele,
Nate, porque vai ser. E precisamos ajudá-lo a lidar com
isso. Não podemos continuar
evitando situações que...
— Então vamos mandá-lo para a escola como um cordeiro indo
para o abate... — rebateu o
papai, zangado, mas sem terminar a frase porque me viu
olhando pelo retrovisor.
— O que é um cordeiro indo para o abate? — perguntei,
sonolento.
— Volte a dormir, Auggie — disse o papai baixinho.
— Todo mundo vai ficar olhando para mim na escola — falei,
começando a chorar.
— Querido — disse a mamãe. Ela se virou para trás no banco
do carona e segurou minha
mão. — Você sabe que, se não quiser, não tem que fazer isso.
Mas conversamos com o diretor
da escola sobre você e ele quer muito conhecê-lo.
— O que vocês disseram sobre mim?
— Falamos de como você é divertido, gentil e inteligente.
Quando contei que você leu O
cavaleiro do dragão aos seis anos, ele disse: “Uau! Tenho
que conhecer esse garoto.”
— Você disse mais alguma coisa? — perguntei.
Mamãe sorriu e seu sorriso foi como um abraço.
— Falei de todas as suas cirurgias e de como você é
corajoso.
— Então ele sabe como eu sou?
— Bem, levamos fotos do último verão em Montauk — disse o
papai. — Mostramos fotos
de toda a família. E aquela ótima, que tiramos de você
segurando aquele linguado no barco!
— Você foi à escola também?
Devo confessar que fiquei um pouco desapontado por saber que
ele tinha feito parte
daquilo.
— Sim. Nós dois conversamos com ele — falou o papai. — É um
homem muito bom.
— Você ia gostar dele — acrescentou a mamãe.
De repente senti que eles estavam do mesmo lado.
— Esperem. Quando vocês se encontraram com ele?
— Ele nos levou em um passeio pela escola no ano passado —
respondeu a mamãe.
— Ano passado? — perguntei. — Então faz um ano inteiro que
vocês vêm pensando nisso e
não me disseram nada?
— Nem sabíamos se você seria aceito, Auggie — falou ela. — É
difícil entrar nessa escola.
Há um longo processo de admissão. Não vi sentido em lhe
contar e deixá-lo todo animado sem
necessidade.
— Mas você está certo, Auggie. Devíamos ter lhe contado no
mês passado, quando
soubemos que você foi aprovado — disse o papai.
— Pensando bem — completou ela com um suspiro —, é,
devíamos.
— Aquela moça que foi lá em casa naquela vez tinha alguma
coisa a ver com isso? —
perguntei. — Aquela que me passou um teste?
— Na verdade, tinha — confessou a mamãe, parecendo culpada.
— Você disse que era um teste de QI.
— Eu sei, mas, bom, aquela foi uma mentirinha do bem —
respondeu ela. — Era um teste
que precisava fazer para entrar na escola. Aliás, você se
saiu muito bem.
— Então você mentiu — falei.
— Uma mentira do bem, mas, menti. Desculpe-me — repetiu
mamãe.
Ela tentou sorrir, mas como não sorri de volta ela se virou
e olhou para a frente.
— O que é um cordeiro indo para o abate? — perguntei de
novo.
Mamãe suspirou e lançou o olhar para papai.
— Eu não devia ter dito isso — falou ele, olhando para mim
pelo retrovisor. — Não é
verdade. A questão é: mamãe e eu amamos tanto você que
queremos protegê-lo de todas as
formas que pudermos. Só que às vezes queremos fazer isso de
jeitos diferentes.
— Não quero ir para a escola — declarei, cruzando os braços.
— Seria bom para você, Auggie — disse a mamãe.
— Talvez no ano que vem — sugeri, olhando pela janela.
— Este ano seria melhor, filho — insistiu ela. — Sabe por
quê? Porque você vai entrar para
o quinto ano, e muitas crianças vão ter mudado de escola.
Vai ser diferente para todo mundo.
Você não seria o único aluno novo.
— Vou ser o único aluno que é como eu sou — rebati.
— Não estou dizendo que não vá ser um grande desafio, porque
você sabe que isso não é
verdade. Mas vai ser bom, Auggie. Você vai fazer muitos
amigos. E vai aprender coisas que
eu jamais conseguiria lhe ensinar. — Ela virou para trás de
novo e olhou para mim. —
Quando fizemos o passeio, sabe o que vimos no laboratório de
ciências? Um pintinho saindo
do ovo. Foi tão fofo! Auggie, ele me fez lembrar um pouco de
você quando era bebê... com
esses seus grandes olhos castanhos...
Em geral, adoro que eles falem sobre quando eu era bebê. Às
vezes tenho vontade de me
encolher todinho e deixar que me abracem e me beijem
inteiro. Sinto saudades de ser um bebê
e de não saber das coisas. Mas eu não estava a fim disso
naquela hora.
— Não quero ir — falei.
— E se você pelo menos se encontrasse com o Sr. Buzanfa
antes de decidir? — sugeriu
mamãe.
— Sr. Buzanfa? — perguntei.
— É o diretor — explicou ela.
— Sr. Buzanfa? — repeti.
— Eu sei! — disse o papai, sorrindo e olhando para mim pelo
retrovisor. — Você acredita
nesse nome, Auggie? Quer dizer, quem nesse mundo iria
concordar em ter um nome como Sr.
Buzanfa?
Sorri, mesmo não querendo que eles vissem. O papai era a
única pessoa no mundo capaz de
me fazer rir até quando eu não queria. Ele sempre fazia todo
mundo rir.
— Sabe, Auggie, você deveria ir para essa escola só para
ouvir o nome dele pelo altofalante!
— continuou ele, animado. — Já pensou como seria engraçado?
Alô, alô? Chamando
o Sr. Buzanfa! — Ele começou a imitar a voz de uma velhinha.
— Olá, Sr. Buzanfa! Bateram
na traseira no seu carro de novo? Quem foi o bundão que fez
isso? O senhor não pode fazer
nádegas?
Comecei a rir, não que fosse tão engraçado assim, mas porque
não estava mais com
disposição para ficar zangado.
— Mas poderia ser pior! — continuou o papai, voltando a
falar com sua voz normal. — Sua
mãe e eu tivemos uma professora na faculdade que se chamava
Srta. Bum.
Agora a mamãe também estava rindo.
— É sério? — perguntei.
— Roberta Bum — disse a mamãe, levantando a mão, como quem
faz um juramento. —
Bobbie Bum.
— A Srta. Bum tinha duas bandas — brincou o papai.
— Nate!
— O que foi? Só estou dizendo que ela tocava em duas bandas
de música!
Mamãe riu e balançou a cabeça.
— Ah, já sei! — falou o papai, muito animado. — Vamos
arranjar um encontro entre eles!
Já pensou? Srta. Bum, este é o Sr. Buzanfa. Sr. Buzanfa,
esta é a Srta. Bum. Eles poderiam se
casar e ter um monte de Bunzinhos.
— Coitado do Sr. Buzanfa — comentou a mamãe. — Auggie ainda
nem o conheceu, Nate!
— Quem é Sr. Buzanfa? — perguntou a Via, um pouco grogue
depois de acordar.
— É o diretor da minha escola nova — respondi.
Chamando o Sr. Buzanfa
Eu teria ficado mais nervoso em relação a encontrar o Sr. Buzanfa
se soubesse que também
iria conhecer algumas crianças da escola nova. Mas eu não
sabia, então estava meio contente.
Não conseguia parar de pensar em todas as piadas que o papai
tinha feito com o nome do
homem. Quando a mamãe e eu chegamos à Beecher Prep, algumas
semanas antes do início das
aulas, e vi o Sr. Buzanfa nos esperando de pé no portão,
comecei a rir imediatamente. Mas ele
não tinha nada a ver com o que eu imaginara. Achei que teria
um bumbum enorme, mas não.
Na verdade, era um cara bem normal. Alto e magro. Velho, mas
não muito. Parecia legal.
Apertou primeiro a mão da minha mãe.
— Oi, Sr. Buzanfa, que bom vê-lo outra vez — disse a mamãe.
— Este é meu filho, August.
Ele olhou bem para mim, sorriu e assentiu. Estendeu a mão
para que eu a apertasse.
— Oi, August — falou em um tom completamente normal. — É um
prazer conhecer você.
— Oi — murmurei, dando um aperto de mão fraco enquanto
olhava para os pés dele, que
estava de tênis Adidas vermelho.
— Então — disse o Sr. Buzanfa, ajoelhando-se na minha
frente, de modo que eu pudesse
olhar para ele, e não para seus tênis. — Seus pais falaram
muito sobre você.
— O que eles disseram? — perguntei.
— Desculpe, o quê?
— Querido, você tem que falar mais alto — disse a mamãe.
— Tipo o quê? — falei, tentando não resmungar.
Reconheço que tenho o péssimo hábito de fazer isso.
— Bem, que você gosta de ler — respondeu o Sr. Buzanfa — e
que é um ótimo artista. —
Ele tinha olhos azuis e cílios brancos. — E que gosta de ciências,
certo?
— É. — Fiz que sim.
— Tem algumas matérias eletivas de ciências ótimas aqui na
Beecher — informou ele. —
Quem sabe você não pode fazer uma delas?
— É — respondi, mesmo sem saber o que era uma matéria
eletiva.
— Então, pronto para um passeio pela escola?
— Quer dizer que vamos fazer isso agora? — perguntei.
— Você achou que íamos ao cinema? — disse ele, sorrindo
enquanto se levantava.
— Você não me contou que faríamos um passeio — reclamei para
a mamãe.
— Auggie... — começou ela.
— Vai ser legal, August — falou o Sr. Buzanfa, estendendo a
mão para mim. — Eu prometo.
Acho que ele queria que eu segurasse sua mão, mas em vez
disso peguei a da minha mãe. O
Sr. Buzanfa sorriu e começou a andar em direção ao portão.
A mamãe apertou minha mão de leve, mas não sei se aquilo
significava “eu amo você” ou
“desculpe”. Provavelmente era um pouco de cada.
A única escola na qual eu já tinha entrado era a da Via,
quando ia com a mamãe e o papai
ver as apresentações da minha irmã nos concertos de primavera
e coisas assim. A Beecher era
muito diferente. Era menor. Tinha cheiro de hospital.
A gentil Sra. Garcia
Seguimos o Sr. Buzanfa por alguns corredores. Não tinha
muita gente, e os poucos que
estavam por lá nem pareceram me notar, mas talvez não tenham
me visto mesmo. Eu estava
meio escondido atrás da mamãe. Sei que isso parece um tanto
infantil da minha parte, mas eu
não estava me sentindo muito corajoso naquele momento.
Chegamos a uma sala pequena, com as palavras ESCRITÓRIO DO
DIRETOR DO ENSINO
FUNDAMENTAL II escritas na porta. Lá dentro havia uma
senhora, que parecia legal, sentada
atrás de uma mesa.
— Esta é a Sra. Garcia — disse o Sr. Buzanfa.
A senhora sorriu para a mamãe, tirou os óculos e se
levantou. Minha mãe apertou a mão
dela e disse:
— Isabel Pullman. É um prazer conhecê-la.
— E este é o August — falou o Sr. Buzanfa.
Mamãe chegou um pouquinho para o lado e eu dei um passo à
frente. Então aconteceu o que
eu já tinha visto um milhão de vezes. Quando levantei o
rosto, os olhos da Sra. Garcia se
desviaram por um segundo. Foi tão rápido que ninguém mais
notou, porque o restante da
expressão dela continuou exatamente igual. Ela abriu um
sorriso muito animado.
— Muito prazer em conhecê-lo, August — falou, estendendo a
mão para me cumprimentar.
— Oi — respondi baixinho, apertando a mão dela.
Não queria olhá-la no rosto, por isso continuei concentrado
em seus óculos, que estavam
presos a uma corrente pendurada no pescoço.
— Uau! Que aperto de mão forte! — disse a Sra. Garcia, que
tinha a mão bem quentinha.
— O aperto de mão dele é matador — concordou o Sr. Buzanfa,
e todos riram, mas eu não
entendi por quê.
— Você pode me chamar de Sra. G. — disse a Sra. Garcia. Acho
que falava comigo, mas eu
estava olhando todas as coisas que havia em sua mesa. — É
assim que todo mundo me chama.
“Sra. G., esqueci a combinação do armário.” “Sra. G., vou
precisar chegar atrasado.” “Sra.
G., quero trocar minha eletiva.”
— Na verdade, é a Sra. G. quem manda na escola — falou o Sr.
Buzanfa, mais uma vez
fazendo todos os adultos rirem.
— Chego todos os dias às sete e meia — disse a Sra. Garcia,
ainda olhando para mim
enquanto eu mantinha os olhos fixos nas suas sandálias
marrons com florzinhas roxas nas
fivelas. — Então, se você precisar de qualquer coisa,
August, é só falar comigo. E pode me
perguntar qualquer coisa mesmo.
— Tudo bem — resmunguei.
— Ah, que bebê fofo — disse a mamãe, apontando para uma das
fotos no quadro de avisos
da Sra. Garcia. — É seu?
— Não, meu Deus! — respondeu a mulher, abrindo um sorriso
completamente diferente do
sorriso animado. — Ganhei o dia com essa! É meu neto.
— Que fofinho! — disse a mamãe, balançando a cabeça. —
Quanto tempo ele tem?
— Nessa foto tinha cinco meses, acho. Mas agora está grande.
Tem quase oito anos!
— Uau! — exclamou a mamãe, assentindo e sorrindo. — Bem, ele
é lindo.
— Obrigada — disse a Sra. Garcia, balançando a cabeça como
se fosse dizer mais alguma
coisa sobre o neto. Mas, de repente, seu sorriso diminuiu um
pouco. — Nós vamos cuidar
muito bem de August — falou para a mamãe, apertando de leve
sua mão.
Olhei para o rosto da minha mãe e então percebi que ela
estava tão nervosa quanto eu. Acho
que eu gostava da Sra. Garcia — quando ela não estava com
aquele sorriso animado.
Jack Will, Julian e Charlotte
O Sr. Buzanfa entrou em uma pequena sala depois da mesa da
Sra. Garcia, fechou a porta do
escritório e se sentou atrás da grande escrivaninha sem
parar de falar, mas eu não estava
prestando muita atenção. Olhava tudo o que havia na mesa
dele. Eram coisas legais, como um
globo que flutuava no ar e um tipo de cubo mágico feito de
pequenos espelhos. Gostei muito
do escritório dele. Gostei do fato de haver todos aqueles
desenhos e pinturas de alunos nas
paredes, emoldurados e organizados como se fossem
importantes.
A mamãe se sentou em uma cadeira em frente à mesa do Sr.
Buzanfa e, apesar de ter outra
cadeira ali, decidi ficar em pé ao lado dela.
— Por que tem sua própria sala e a Sra. G., não? —
perguntei.
— Você quer dizer por que eu tenho um escritório? — indagou o
Sr. Buzanfa.
— Você disse que é ela quem manda na escola — falei.
— Ah! Bem, eu estava brincando. A Sra. G. é minha
assistente.
— O Sr. Buzanfa é o diretor do ensino fundamental II —
explicou a mamãe.
— As pessoas chamam você de Sr. B.? — perguntei, e isso o
fez sorrir.
— Na verdade, não — disse o Sr. Buzanfa, balançando a
cabeça. — Ninguém me chama de
Sr. B., embora eu tenha a impressão de que sou chamado de
muitas outras coisas que não sei.
Vamos encarar os fatos: não é muito fácil conviver com um
nome como o meu, se é que você
me entende.
Tenho que admitir que eu ri, porque entendia completamente.
— Minha mãe e meu pai tiveram uma professora que se chamava
Srta. Bum — contei.
— Auggie! — repreendeu-me a mamãe, mas o Sr. Buzanfa riu.
— Isso, sim, é bem ruim — disse ele, balançando a cabeça. —
Acho que não tenho mais do
que me queixar. Então, August, o que pensei que poderíamos
fazer hoje...
— Aquilo é uma abóbora? — perguntei, apontando para uma
pintura emoldurada atrás da
mesa do Sr. Buzanfa.
— Auggie, querido, não interrompa — falou a mamãe.
— Você gostou? — perguntou o Sr. Buzanfa, se virando e
olhando para a pintura. —
Também gosto. Eu também achava que era uma abóbora, até o
aluno que me deu o desenho
explicar que não, que é... você está preparado?... um
retrato meu! Agora, August, eu lhe
pergunto: realmente me pareço tanto assim com uma abóbora?
— Não! — respondi, embora estivesse pensando que na verdade
parecia.
Alguma coisa no modo como as bochechas dele estufavam quando
ele sorria lembrava uma
lanterna de Halloween. Assim que pensei nisso, achei a ideia
engraçada, então comecei a rir
um pouco. Balancei a cabeça e cobri a boca com uma das mãos.
O Sr. Buzanfa sorriu, como se pudesse ler a minha mente.
Eu ia dizer mais alguma coisa, mas de repente ouvi outras
vozes do lado de fora do
escritório. Vozes de crianças. Não estou exagerando: meu
coração disparou como se eu
tivesse participado da corrida mais longa do mundo. Minha
vontade de rir passou na mesma
hora.
A questão é que, quando eu era pequeno, nunca me incomodava
em conhecer outras crianças
porque todas elas também eram pequenas. O legal de crianças
pequenas é que elas não dizem
coisas para tentar magoar você e, mesmo que às vezes façam
isso, não sabem o que estão
falando. Quando elas crescem, por outro lado... sabem muito
bem o que estão dizendo. E isso,
definitivamente, não é divertido para mim. Um dos motivos
para eu ter deixado meu cabelo
crescer no ano passado é que gosto do modo como a franja cobre
meus olhos: isso me ajuda a
tampar as coisas que não quero ver.
A Sra. Garcia bateu na porta, colocou a cabeça no vão
entreaberto e avisou:
— Eles estão aqui, Sr. Buzanfa.
— Quem está aqui? — perguntei.
— Obrigado — disse o Sr. Buzanfa à Sra. Garcia. — August,
achei que seria uma boa ideia
você conhecer alguns alunos que estarão na sua turma este
ano. Eles podem andar com você
pela escola e fazer um reconhecimento da área, por assim
dizer.
— Não quero conhecer ninguém — falei para a mamãe.
De repente o Sr. Buzanfa parou bem na minha frente, com as
mãos nos meus ombros. Ele se
inclinou e sussurrou no meu ouvido:
— Vai dar tudo certo, August. Eles são legais. Eu juro.
— Você vai ficar bem, Auggie — murmurou mamãe, querendo
muito acreditar no que dizia.
Antes que ela pudesse falar mais alguma coisa, o Sr. Buzanfa
abriu a porta do escritório.
— Entrem, crianças.
Então dois garotos e uma menina entraram. Nenhum deles olhou
para mim ou para a mamãe:
ficaram parados na entrada, olhando diretamente para o Sr.
Buzanfa, como se a vida deles
dependesse disso.
— Muito obrigado por terem vindo, meninos. Sobretudo
considerando que as aulas só
começam no mês que vem! — falou o diretor. — O verão foi
bom?
Eles assentiram, mas ninguém falou nada.
— Ótimo. Então, crianças, eu gostaria que vocês conhecessem
o August, que vai estudar
aqui este ano. August, esses alunos estão na Beecher Prep
desde o jardim de infância. Na
época, é claro, estudavam no prédio dos pequenos, mas já
conhecem bem o programa do
ensino fundamental. E, como vocês estarão na mesma turma,
achei que seria bom que se
conhecessem um pouco antes de as aulas começarem. Certo?
Então, crianças, este é o August.
August, este é o Jack Will.
Jack Will olhou para mim e estendeu a mão. Quando eu a
apertei, ele abriu um sorrisinho e
disse:
— Oi.
Depois olhou para baixo muito depressa.
— Este é o Julian — falou o Sr. Buzanfa.
— Oi — disse o garoto e depois fez exatamente a mesma coisa
que o Jack Will: pegou
minha mão, deu um sorriso forçado e olhou para baixo
depressa.
— E a Charlotte — completou o Sr. Buzanfa.
Charlotte tinha os cabelos mais louros que eu já tinha
visto. Ela não apertou minha mão. Em
vez disso fez um aceno rápido e sorriu.
— Oi, August. É um prazer conhecer você — cumprimentou.
— Oi — falei, olhando para baixo.
Ela usava Crocs verde-limão.
— Então — disse o Sr. Buzanfa, juntando as mãos gentilmente,
como se batesse palmas bem
devagar. — O que acho que poderiam fazer é dar um pequeno
passeio pela escola com o
August. Por que não começam pelo terceiro andar? A sala de
vocês será a 301. Eu acho. Sra.
G...
— Sala 301! — gritou a Sra. G. do lado de fora do
escritório.
— Sala 301 — repetiu o diretor, assentindo. — Em seguida
podem mostrar ao August o
laboratório de ciências e a sala de informática. Depois
desçam até a biblioteca e o auditório,
no segundo andar. E levem-no ao refeitório, é claro.
— Podemos levá-lo à sala de música? — perguntou o Julian.
— Boa ideia. Podem, sim — concordou o Sr. Buzanfa. — August,
você toca algum
instrumento?
— Não — respondi.
Música não era minha matéria favorita, levando-se em conta
que não tenho orelhas. Bem, eu
tenho, mas elas não parecem orelhas normais.
— Bem, talvez você goste de ver a sala de música mesmo assim
— falou o Sr. Buzanfa. —
Temos uma bela coleção de instrumentos de percussão.
— August, você não queria aprender a tocar bateria? —
perguntou a mamãe.
Ela tentou fazer com que eu a olhasse, mas meus olhos
estavam cobertos pela franja e
miravam fixamente um chiclete velho colado na parte de baixo
da mesa do Sr. Buzanfa.
— Ótimo! Muito bem, então por que vocês não vão em frente? —
sugeriu o Sr. Buzanfa. —
Estejam de volta em... — ele olhou para a mamãe — ... meia
hora, o.k.?
Acho que a mamãe assentiu.
— Tudo bem por você, August? — perguntou ele, mas eu não
respondi.
— Tudo bem, August? — repetiu a mamãe.
Dessa vez olhei para ela. Queria que ela notasse como eu
estava zangado. Mas então vi seu
rosto e apenas concordei. Ela parecia mais assustada que eu.
As outras crianças estavam saindo, e fui atrás delas.
— Vejo você daqui a pouco — disse a mamãe.
Sua voz pareceu um pouco mais alta que o normal. Não
respondi.
O grande passeio
Jack Will, Julian, Charlotte e eu seguimos por um corredor
comprido até chegarmos a uma
escada bem larga. Ninguém disse nenhuma palavra enquanto
subíamos até o terceiro andar.
Quando chegamos, entramos em um corredor pequeno e cheio de
portas. O Julian abriu a
que tinha o número 301.
— Esta é a nossa sala — falou ele, parado em frente à porta
entreaberta. — Nossa
professora da orientação será a Srta. Petosa. Dizem que ela
é legal, pelo menos na aula de
orientação, mas ouvi que é bem rigorosa quando ensina
matemática.
— Não é verdade — discordou a Charlotte. — Minha irmã teve
aulas com ela no ano
passado e disse que ela é muito boazinha.
— Não foi o que eu ouvi por aí — insistiu o Julian —, mas
tanto faz. — Ele fechou a sala e
voltou a andar pelo corredor. — Aqui é o laboratório de
ciências. — Do mesmo modo como
fizera dois segundos antes, ele ficou em frente à porta
entreaberta e começou a falar. Não
olhou para mim nem uma vez, o que não era problema, porque
eu também não estava olhando
para ele. — Não dá para saber quem vai ser o professor de
ciências até o primeiro dia de
aula, mas o melhor é o Sr. Haller. Ele era do ensino
fundamental I. Tocava uma tuba gigante
nas aulas.
— Era um barítono — corrigiu-o a Charlotte.
— Era uma tuba! — repetiu o Julian, fechando a porta.
— Cara, deixe o garoto entrar e dar uma olhada — disse o
Jack Will, empurrando o Julian e
abrindo a porta de novo.
— Entre, se quiser — falou o Julian.
Foi a primeira vez que ele olhou para mim.
Dei de ombros e fui até a porta. O Julian saiu do caminho
depressa, como se tivesse medo
de que eu sem querer encostasse nele ao passar.
— Não tem muita coisa para ver — disse ele, entrando no
laboratório atrás de mim. E
começou a apontar para algumas coisas na sala. — Aquela é a
incubadora. Aquilo ali é o
quadro. Essas são as mesas. Essas são as cadeiras. Aquilo é
um bico de Bunsen. Isso aqui é
um pôster de ciências nojento. Aquilo é giz. Isso é um o
apagador.
— Com certeza ele sabe o que é um apagador — falou a
Charlotte, lembrando um pouco a
Via.
— Como posso adivinhar o que ele sabe? — respondeu o Julian.
— O Sr. Buzanfa disse que
ele nunca foi à escola.
— Você sabe o que é um apagador, não sabe? — perguntou a
Charlotte para mim.
Admito que estava tão nervoso que não soube o que dizer, nem
o que fazer além de olhar
para o chão.
— Ei, você fala? — indagou Jack Will.
— Sim — respondi, assentindo.
Eu ainda não tinha olhado para ninguém. Não diretamente.
— Você sabe o que é um apagador, não é? — repetiu o garoto.
— Claro! — murmurei.
— Eu falei que não tinha nada para ver aqui — disse o
Julian, dando de ombros.
— Posso perguntar uma coisa? — falei, tentando manter a voz
firme. — Hum... O que é
orientação? É como uma matéria?
— Não. É só uma aula com a sua turma — explicou a Charlotte,
ignorando o sorrisinho do
Julian. — É a primeira aula de manhã, assim que chega à
escola, e então a professora faz a
chamada e tudo o mais. De certo modo, é sua aula principal,
embora não seja exatamente uma
aula. Quer dizer, é uma aula, mas...
— Acho que ele já entendeu, Charlotte — disse o Jack Will.
— Você entendeu? — perguntou ela.
— Entendi — respondi, balançando a cabeça.
— O.k. Vamos nessa — disse o Jack Will.
— Espere, Jack. Deveríamos tirar as dúvidas dele — falou a
Charlotte.
O Jack Will deu meia-volta e revirou os olhos.
— Você tem mais alguma pergunta? — questionou ele.
— Hum, não — respondi. — Bem, na verdade, sim. Seu nome é
Jack ou Jack Will?
— Jack é o nome. Will é sobrenome.
— Ah, porque o Sr. Buzanfa apresentou você como Jack Will,
então eu pensei...
— Rá! Você achou que o nome dele fosse Jackwill! — disse o
Julian, rindo.
— É, algumas pessoas me chamam pelo nome completo — falou o
Jack, encolhendo os
ombros. — Não sei por quê. De qualquer forma, podemos ir
agora?
— Agora vamos para o auditório — disse Charlotte, saindo do
laboratório primeiro. — Lá
é muito legal. Você vai gostar, August.
O auditório
A Charlotte praticamente não parou de falar enquanto a gente
ia para o segundo andar.
Contava sobre a peça que eles haviam montado no ano
anterior, Oliver!, e disse que
interpretou Oliver, apesar de ser menina. Enquanto estava
contando isso, abriu as portas
duplas do imenso auditório. Havia um palco do outro lado.
Ela começou a dar saltinhos naquela direção. O Julian a
seguiu correndo e depois, quando
já estava na metade do corredor, se virou para trás.
— Vem! — gritou, fazendo um gesto para que eu o
acompanhasse, e foi o que fiz.
— Tinha, sei lá, centenas de pessoas na plateia naquela
noite — disse Charlotte, e levei um
segundo para entender que ela ainda estava falando sobre
Oliver!. — Eu estava tão, tão
nervosa! Tinha tantas falas e todas aquelas músicas para
cantar... Foi tão, tão, tão difícil! —
Apesar de estar falando comigo, ela não me olhava de
verdade. — Na estreia, meus pais se
sentaram lá no fundo do auditório, tipo onde o Jack está
agora, mas quando as luzes estão
apagadas não dá para enxergar daqui. Então eu fiquei meio
desesperada, perguntando: “Cadê
os meus pais? Cadê os meus pais?” E aí o Sr. Resnick, que
era nosso professor de artes
cênicas ano passado, disse: “Charlotte, pare de bancar a
diva!” E eu respondi: “Então tá!”
Mas aí vi os meus pais e fiquei totalmente tranquila. Não
esqueci nenhuma fala.
Enquanto ela falava, percebi que o Julian olhava para mim
pelo canto do olho. Essa é uma
coisa que vejo as pessoas fazerem comigo muitas vezes. Elas
acham que eu não sei que estão
olhando, mas dá para perceber pelo modo como inclinam a
cabeça. Virei para ver aonde Jack
tinha ido. Ele ainda estava no fundo do auditório,
aparentemente entediado.
— Todo ano nós montamos uma peça — disse a Charlotte.
— Duvido que ele vá querer participar da peça da escola,
Charlotte — falou o Julian,
sarcástico.
— Você pode participar sem necessariamente estar “na” peça —
retrucou a Charlotte,
olhando para mim. — Pode fazer a iluminação ou pintar os
cenários.
— Ah, claro. Iupiii! — disse o Julian, balançando o dedo no
ar.
— Mas você não precisa fazer a matéria de artes cênicas se
não quiser. — Charlotte deu de
ombros. — Tem também aulas de dança, música e o grupo do
coral. Ou o clube de liderança.
— Só os idiotas se inscrevem no clube de liderança —
interrompeu o Julian.
— Julian, você está sendo tão desagradável! — reclamou a
Charlotte, o que fez o garoto rir.
— Vou fazer a eletiva de ciências — falei.
— Legal! — exclamou ela.
O Julian olhou bem para mim e disse:
— Ciências, supostalmente, é a eletiva mais difícil de
todas. Sem ofensas, mas, se você
nunca foi à escola antes, por que acha que de repente vai
ser inteligente o bastante para fazer
a eletiva de ciências? Quer dizer, você já estudou ciências
antes? Ciências de verdade, não o
tipo que se faz com kits de brinquedo.
— Sim — falei, assentindo.
— Ele estudava em casa, Julian! — disse a Charlotte.
— Os professores iam até a sua casa? — perguntou ele,
parecendo confuso.
— Não. Era a mãe dele quem dava as aulas — respondeu ela.
— Ela é professora? — insistiu o Julian.
— Sua mãe é professora? — a Charlotte me perguntou.
— Não — respondi.
— Então ela não dava aulas de verdade! — disse o Julian,
como se isso resolvesse a
questão. — É disso que estou falando. Como alguém que não é
professora de verdade pode
ensinar ciências?
— Tenho certeza de que você vai se sair bem — falou a
Charlotte, olhando para mim.
— Vamos logo para a biblioteca — gritou o Jack, dando a
impressão de estar muito
entediado.
— Por que o seu cabelo é tão comprido? — perguntou o Julian.
Pelo tom de voz, ele parecia irritado.
Eu não sabia o que responder, então apenas dei de ombros.
— Posso fazer uma pergunta? — insistiu ele.
Dei de ombros de novo. Ele não tinha acabado de fazer uma?
— O que houve com o seu rosto? Quer dizer, você esteve em um
incêndio ou algo assim?
— Julian, que grosseria! — repreendeu a Charlotte.
— Não estou sendo grosseiro — disse ele. — Só fiz uma
pergunta. O Sr. Buzanfa disse que
a gente podia fazer perguntas, se quisesse.
— Não perguntas grosseiras como essa — retrucou Charlotte. —
Além do mais, ele nasceu
assim. Foi o que o Sr. Buzanfa disse. Você é que não estava
prestando atenção.
— Eu estava prestando atenção, sim! Só achei que talvez ele
também tivesse se queimado
em um incêndio.
— Meu Deus, Julian — disse o Jack. — Cale a boca.
— Cale a boca você! — gritou o Julian.
— Vamos, August — falou Jack. — Vamos à biblioteca.
Fui até o Jack e o segui para fora do auditório. Ele segurou
a porta para mim e, quando
passei, olhou bem para o meu rosto, meio que me desafiando a
olhar de volta, o que eu fiz. E
então sorri. Não sei. Às vezes, quando tenho a sensação de
que vou começar a chorar, ela
acaba quase se transformando em vontade de rir. Deve ter
sido isso que senti na hora, porque
sorri, quase como se fosse começar a gargalhar. A questão é
que, por causa do meu rosto, as
pessoas que não me conhecem muito bem nem sempre sabem que
estou sorrindo. Os cantos da
minha boca não sobem, como os das outras pessoas. Meu
sorriso é só um risco no meu rosto.
Mas, de algum modo, o Jack Will entendeu que eu estava
sorrindo para ele. E sorriu de volta.
— O Julian é um idiota — sussurrou ele antes que o Julian e
a Charlotte nos alcançassem.
— Mas, cara, você vai ter que falar.
Ele disse isso de um jeito sério, como se estivesse tentando
me ajudar. Balancei a cabeça
concordando e o Julian e a Charlotte chegaram perto da
gente. Ficamos todos em silêncio por
um segundo, meio que assentindo, olhando para o chão. Então
ergui os olhos para o Julian.
— O certo é “supostamente”, aliás.
— Do que você está falando?
— Você disse “supostalmente” naquela hora — respondi.
— Não disse, não!
— Disse, sim — confirmou a Charlotte. — Você falou que
ciências é supostalmente muito
difícil. Eu ouvi.
— Com certeza eu não falei isso — insistiu ele.
— Tanto faz — disse o Jack. — Vamos logo.
— Isso, vamos logo — concordou a Charlotte, seguindo-o pela
escada até o andar de baixo.
Comecei a ir atrás dela, mas o Julian se meteu bem na minha
frente, o que me fez perder o
equilíbrio e cambalear para trás.
— Opa, foi mal!
Mas, pelo jeito como ele me olhou, eu sabia que não estava
sendo sincero.
O acordo
A mamãe e o Sr. Buzanfa estavam conversando quando voltamos
ao escritório. A Sra. Garcia
foi a primeira a nos ver chegar e abriu seu sorriso
brilhante quando entramos.
— Então, August, o que você achou? Gostou do que viu? —
perguntou ela.
— Gostei.
Balancei a cabeça e olhei para a mamãe.
Jack, Julian e Charlotte esperaram perto da porta, sem saber
aonde ir ou se a gente ainda
precisaria deles. Fiquei me perguntando o que mais eles
teriam ouvido sobre mim antes de me
conhecerem.
— Você viu o pintinho? — perguntou a mamãe.
Quando fiz que não com a cabeça, o Julian indagou:
— Você quer dizer os pintinhos da aula de ciências? Eles são
doados a uma fazenda no final
do ano.
— Ah — murmurou mamãe, desapontada.
— Mas chocamos novos ovos todos os anos — acrescentou o
Julian. — Então o August vai
poder vê-los na primavera.
— Que bom — disse a mamãe, olhando para mim. — Eles eram tão
fofos, August...
Eu gostaria que ela não me tratasse como um bebê na frente
das outras pessoas.
— Então, August — falou o Sr. Buzanfa —, eles mostraram o
bastante ou você quer ver
mais alguma coisa? Eu me esqueci de pedir que lhe mostrassem
a quadra de esportes.
— Nós mostramos mesmo assim, Sr. Buzanfa — disse o Julian.
— Excelente! — respondeu o diretor.
— E eu falei sobre a peça da escola e algumas eletivas —
contou a Charlotte. — Ah, não!
Esquecemos de mostrar a sala de artes!
— Não tem problema — disse o Sr. Buzanfa.
— Mas podemos levá-lo lá agora — ofereceu ela.
— Não está quase na hora de buscarmos a Via? — perguntei a
mamãe.
Esse era nosso código para “eu quero muito ir embora”.
— Ah, você tem razão — respondeu ela, levantando-se e
fingindo checar as horas no
relógio. — Desculpe, pessoal. Perdi a noção do tempo. Temos
que buscar minha filha na
escola nova. Ela também está fazendo um passeio por lá hoje.
Essa parte não era mentira: a Via estava mesmo conhecendo a
escola nova naquele dia. A
mentira era que a gente ia buscá-la lá. Não íamos. Ela iria
para casa mais tarde com o papai.
— Qual é a escola dela? — perguntou o Sr. Buzanfa, ficando
de pé.
— Ela vai começar na Faulkner High School.
— Uau! Não é fácil entrar lá. Que bom para ela!
— Obrigada — disse a mamãe, assentindo. — Mas vai ser uma
viagem e tanto. O metrô até
a estação da rua 86, depois o ônibus até o East Side. É um
trajeto de uma hora desse jeito,
mas, de carro, são só quinze minutos.
— Vai valer a pena. Conheço algumas crianças que foram para
a Faulkner e adoraram —
declarou o diretor.
— Temos que ir mesmo, mãe — falei, cutucando-a. Depois disso
nos despedimos
rapidinho. Acho que o Sr. Buzanfa ficou um pouco surpreso
por irmos embora tão de repente e
pensei que ele poderia culpar o Jack e a Charlotte, embora
só o Julian tivesse feito eu me
sentir meio mal. — Todos foram muito legais — fiz questão de
dizer antes de sairmos.
— Mal posso esperar para ter você como nosso aluno — disse o
Sr. Buzanfa, dando
tapinhas nas minhas costas.
— Tchau — falei para o Jack, a Charlotte e o Julian, mas, na
verdade, não olhei para eles
nem levantei a cabeça até que já tivéssemos saído da escola.
Casa
Assim que caminhamos meio quarteirão, a mamãe disse:
— E aí, como foi? Você gostou?
— Ainda não, mãe. Em casa.
Chegamos lá, corri para o meu quarto e me joguei na cama. Eu
tinha certeza de que mamãe
não sabia qual era o problema, e acho que, na verdade, eu
também não. Eu me sentia ao
mesmo tempo muito triste e um tantinho feliz, meio com
aquela vontade de rir e chorar de
novo.
Minha cadela, Daisy, me seguiu até o quarto, pulou na cama e
começou a lamber meu rosto.
— Quem é a minha menina boazinha? — falei, fazendo uma voz
engraçada. — Quem é a
minha menina boazinha?
— Está tudo bem, meu amor? — perguntou a mamãe. Ela tentou
sentar ao meu lado, mas a
Daisy estava monopolizando a cama. — Com licença, Daisy. —
Ela se sentou, empurrando a
cadela para o canto. — Aquelas crianças não foram legais com
você, Auggie?
— Ah, elas eram mais ou menos — respondi, mentindo só um
pouco.
— Mas foram legais? O Sr. Buzanfa fez questão de me dizer
como elas eram bacanas.
— Ãh-hã.
Assenti, mas continuei olhando para a Daisy, beijando-a no
nariz e fazendo carinho em sua
orelha até que a pata traseira deu uma tremidinha, como se
ela fosse se coçar.
— Aquele menino, o Julian, pareceu especialmente bonzinho —
falou mamãe.
— Ah, não. Ele era o menos bonzinho. Mas gostei do Jack. Ele
foi legal. Achei que o nome
dele fosse Jack Will, mas é só Jack.
— Espere, talvez eu esteja confundindo. Qual deles era o de
cabelo escuro penteado para a
frente?
— O Julian.
— E ele não era bonzinho?
— Não, não era.
— Ah. — Ela refletiu por um segundo. — Certo, então ele é
daquele tipo de garoto que age
de um jeito na frente dos adultos e de outro com as
crianças?
— É, acho que sim.
— Ah, detesto esse tipo — respondeu ela, assentindo.
— Ele ficou falando, tipo, “Então, August, o que houve com o
seu rosto?” — expliquei, sem
tirar os olhos da Daisy. — “Você esteve em um incêndio ou
algo assim?”
A mamãe não disse nada. Quando ergui os olhos, deu para ver
que ela estava completamente
chocada.
— Ele não disse isso de um jeito cruel — falei depressa. —
Só perguntou.
Mamãe assentiu.
— Mas gostei mesmo do Jack — acrescentei. — Ele disse “Cala
a boca, Julian”. E a
Charlotte falou: “Que grosseria, Julian!”
Mamãe assentiu de novo e apertou as têmporas, como se
estivesse lutando com uma dor de
cabeça.
— Você me desculpe, Auggie — falou ela, baixinho.
Suas bochechas estavam muito vermelhas.
— Não, mãe, tudo bem, de verdade.
— Você não tem que ir para a escola se não quiser, querido.
— Eu quero — falei.
— Auggie...
— Sério, mãe. Quero ir.
E eu não estava mentindo.
Nervosismo do primeiro dia
Certo, admito que no primeiro dia de aula eu estava tão
nervoso que, em vez de frio, eu estava
era com um polo norte inteiro na barriga! A mamãe e o papai
deviam estar um pouco nervosos
também, mas agiam como se estivessem muito animados por mim,
tirando fotos minhas e da
Via antes de sairmos de casa, afinal era o primeiro dia de
aula dela também.
Até poucos dias antes, a gente ainda não tinha certeza se eu
iria mesmo para a escola.
Depois do passeio, o papai e a mamãe tinham invertido suas
opiniões. Agora era a mamãe
quem dizia que eu não deveria ir, enquanto o papai defendia
que sim. Papai havia falado para
mim que estava muito orgulhoso do modo como eu tinha lidado
com o Julian e que eu estava
me transformando em um rapaz muito forte, e o ouvi dizer
para a mamãe que ela esteve certa
desde o início. Mas percebi que mamãe já não tinha tanta
certeza. Quando papai disse a ela
que a Via e ele também queriam me levar para a escola,
porque era caminho para a estação de
metrô, mamãe pareceu aliviada por irmos todos juntos. E acho
que eu também, um pouco.
Embora a Beecher Prep ficasse a apenas alguns quarteirões da
nossa casa, eu só estivera ali
duas vezes antes. Em geral, tento evitar lugares com muitas
crianças diferentes. Na nossa
vizinhança, todo mundo me conhece e eu conheço todos.
Conheço cada tijolo, cada galho das
árvores e cada rachadura nas calçadas. Conheço a Sra.
Grimaldi, a moça que fica sempre
sentada à janela e o senhor que anda de cima para baixo pela
rua assoviando como um
passarinho. Conheço a mercearia da esquina, onde a mamãe
compra nossos bagels, e a
garçonete da cafeteria, que me chama de “querido” e me dá
pirulitos sempre que me vê. Adoro
o bairro de North River Heights, e por isso era estranho
caminhar pela região com a sensação
de que, de repente, tudo era novo para mim. A avenida
Amesfort, onde eu já estivera um
milhão de vezes, por algum motivo parecia completamente
diferente. Estava cheia de pessoas
que eu nunca vira, esperando o ônibus ou empurrando
carrinhos de bebê.
Cruzamos a Amesfort e entramos na Heights Place: a Via
andava do meu lado como costuma
fazer, com a mamãe e o papai atrás de nós. Assim que
dobramos a esquina, vimos todas as
crianças na frente da escola — centenas, conversando e rindo
em pequenos grupos ou perto
dos pais, que conversavam com outros pais. Fiquei de cabeça
baixa.
— Todos eles estão tão nervosos quanto você — disse a Via no
meu ouvido. — Lembre-se
de que é o primeiro dia de todos na escola. Certo?
O Sr. Buzanfa cumprimentava alunos e responsáveis na
entrada.
Tenho que admitir: até ali nada de mau tinha acontecido. Não
flagrei ninguém me encarando
ou me observando. Só uma vez ergui os olhos e vi algumas
garotas olhando na minha direção e
cochichando, tapando as bocas com as mãos, mas elas
desviaram o olhar quando viram que eu
tinha notado.
Chegamos ao portão.
— Certo, então é isso, garotão — disse o papai, apoiando as
mãos nos meus ombros.
— Tenha um bom primeiro dia. Amo você — falou a Via, me
dando um grande beijo e um
abraço.
— Você também — respondi.
— Amo você, Auggie — disse o papai, me abraçando.
— Tchau.
Então a mamãe me abraçou, mas notei que ela estava prestes a
chorar, o que me mataria de
vergonha, por isso apenas lhe dei um abraço forte e
apressado, virei-me e desapareci dentro
da escola.
Armários
Fui direto para a sala 301 no terceiro andar. Agora estava
feliz por ter feito aquele passeio,
porque sabia exatamente aonde deveria ir e não tive que
levantar a cabeça nenhuma vez.
Percebi que algumas crianças com certeza estavam me olhando.
Então fiz o que sempre faço:
fingi não notar.
Entrei na sala de aula e a professora estava escrevendo no
quadro-negro enquanto os alunos
começavam a se sentar nas carteiras, que estavam dispostas
em um semicírculo de frente para
o quadro. Então escolhi a cadeira do meio, mais para o
fundo, porque achei que assim seria
mais difícil que os outros ficassem olhando para mim.
Continuei de cabeça baixa, só tirei o
cabelo da frente dos olhos o suficiente para ver os pés de
todo mundo. Conforme as carteiras
iam sendo ocupadas, notei que ninguém tinha se sentado ao
meu lado. Algumas vezes parecia
que alguém estava prestes a fazer isso, mas aí mudava de
ideia no último minuto e ia para
outro lugar.
— Oi, August.
Era a Charlotte, que acenou para mim quando se sentou em uma
carteira na frente da sala.
Não sei por que alguém escolheria ficar lá na frente.
— Oi — falei, retribuindo o cumprimento.
Então vi o Julian sentado algumas carteiras depois dela,
conversando com alguns outros
alunos. Percebi que ele me viu, mas não falou “oi”.
De repente alguém se sentou do meu lado. Era o Jack Will. O
Jack.
— E aí? — disse ele, inclinando a cabeça.
— Oi, Jack — falei, acenando, e me arrependi imediatamente
porque isso não pareceu nada
maneiro.
— Certo, crianças, vamos lá, pessoal! Sentem-se — ordenou a
professora, agora olhando
para nós. Ela havia escrito seu nome, Sra. Petosa, no
quadro-negro. — Vamos sentar, por
favor. Entrem — falou para dois alunos que tinham acabado de
chegar. — Tem um lugar ali e
outro lá.
Ela ainda não tinha me notado.
— Agora, para começar, quero que todos parem de falar... —
ela me viu — ...ponham as
mochilas no chão e fiquem quietos.
A professora hesitou por apenas uma fração de segundo, mas
percebi exatamente o momento
em que me achou. Como já disse, estou acostumado com isso.
— Vou fazer a chamada e dizer onde vocês vão sentar —
continuou a Sra. Petosa, sentandose
na beirada da mesa. Ao lado dela havia três fileiras
bem-organizadas de pastas sanfonadas.
— Quando eu chamar os nomes, cada um se levanta para receber
sua pasta. Nela, vocês
encontrarão o horário de aulas e um cadeado, que vocês não
devem tentar abrir até eu mandar.
O número do armário de vocês está escrito no horário. Saibam
que alguns armários não ficam
em frente à sala, e sim no fim do corredor, e, antes que
alguém pergunte, não, vocês não
podem trocar de armário nem de cadeado. Depois, se sobrar
tempo no final da aula, vamos
todos nos conhecer um pouco melhor, certo? Certo.
Ela pegou a prancheta na mesa e começou a ler os nomes em
voz alta.
— Então vamos lá: Julian Albans — chamou, erguendo os olhos.
Julian levantou o braço e, ao mesmo tempo, disse:
— Aqui.
— Oi, Julian — falou a professora, fazendo uma anotação no
quadro de lugares. Ela pegou a
primeira pasta sanfonada e estendeu para ele. — Venha pegar
— acrescentou, séria. Ele se
levantou e pegou a pasta. — Ximena Chin?
Ela entregou uma pasta a cada criança que chamava. Enquanto
prosseguia com a lista, notei
que a carteira ao lado da minha era a única ainda vazia,
embora houvesse dois alunos sentados
juntos um pouco à frente. Quando chamou o nome de um deles,
Henry Joplin, um garoto grande
que já parecia adolescente, a professora disse:
— Henry, tem um lugar vazio bem ali. Vá se sentar lá, certo?
Ela entregou-lhe a pasta e apontou para a carteira ao meu
lado. Apesar de não olhar
diretamente para ele, percebi que Henry não queria ficar
perto de mim, só pelo modo como
arrastou a mochila pelo chão ao se aproximar, como se
estivesse andando em câmera lenta.
Então ele pôs a mochila no canto direito da carteira, na
vertical para que ela ficasse como um
muro entre nossas mesas.
— Maya Markowitz? — chamou a Sra. Petosa.
— Aqui — disse uma garota sentada umas quatro carteiras
depois da minha.
— Miles Noury?
— Aqui — respondeu o aluno que tinha dividido a carteira com
Henry Joplin.
Enquanto Miles voltava ao seu lugar, vi ele lançando um
olhar de pena para o amigo.
— August Pullman? — chamou a professora.
— Aqui — falei baixinho, levantando um pouco a mão.
— Oi, August — respondeu ela, abrindo um sorriso gentil para
mim quando levantei para
buscar a pasta.
Durante os poucos segundos em que fiquei de pé na frente da
sala, senti os olhares de todos
os alunos queimando nas minhas costas, mas quando me virei
para voltar para o lugar, todo
mundo olhou para baixo. Eu me sentei, e, embora todos os
outros estivessem tentando abrir
seus cadeados, me segurei para não mexer no meu, porque a
professora tinha sido muito clara
ao dizer que não fizéssemos aquilo. De todo modo, eu já era
muito bom com cadeados, porque
prendia minha bicicleta com um. Henry tentou várias vezes
abrir o dele, mas não conseguiu.
Estava ficando frustrado e começou a meio que xingar
baixinho.
A Sra. Petosa chamou os últimos nomes. O último foi Jack
Will.
Depois de entregar a pasta do Jack, ela disse:
— Muito bem. Quero que todos anotem suas combinações em um
lugar seguro para que não
a esqueçam, o.k.? Mas, caso esqueçam, o que acontece pelo
menos 3,2 vezes por semestre, a
Sra. Garcia tem uma lista com todas as combinações. Agora
tirem os cadeados das pastas e
treinem abri-los por alguns minutos, embora alguns de vocês
já tenham começado a fazer isso,
de qualquer maneira. — Ela olhou para Henry ao dizer isso. —
Enquanto isso, vou falar um
pouco sobre mim. E depois vocês podem falar um pouco de vocês
e nós vamos, hum... nos
conhecer melhor. Tudo bem? Ótimo.
Ela sorriu para todos, embora eu sentisse que ela sorria
mais para mim. Não era um sorriso
brilhante como o da Sra. Garcia, mas um sorriso normal,
sincero. Ela era muito diferente das
professoras que eu havia imaginado. Acho que pensei que
seria parecida com a Dona Flora,
daquele desenho, Jimmy Neutron: uma velhinha com um grande
coque no alto da cabeça. Mas,
na verdade, ela era igualzinha à Mon Mothma do Star Wars
Episódio IV: corte de cabelo de
menina e camisa branca larga, como uma túnica.
Ela se virou e começou a escrever no quadro-negro. Henry
ainda não tinha conseguido abrir
o cadeado e ficava cada vez mais frustrado quando alguém
conseguia. Ele ficou bem
aborrecido quando consegui abrir o meu na primeira
tentativa. O mais engraçado é que, se ele
não tivesse posto a mochila entre nós dois, eu com certeza
teria me oferecido para ajudá-lo.
Apresentações
A Sra. Petosa nos contou um pouco sobre ela. Coisas chatas,
como de que cidade ela veio e
que sempre quis ser professora, largou um emprego em Wall
Street seis anos antes para seguir
seu “sonho” de dar aulas para crianças. Ela terminou
querendo saber se alguém tinha alguma
pergunta, e o Julian levantou o braço.
— Pois não... — Ela teve que olhar para a lista para se
lembrar do nome dele. — Julian.
— Legal isso de você seguir seu sonho — falou ele.
— Obrigada!
— De nada!
Ele sorriu, orgulhoso.
— Certo. Por que não fala para a gente um pouco sobre você,
Julian? Na verdade, quero que
todos façam isso. Pensem em duas coisas que querem que os
outros saibam sobre vocês. Mas
antes, esperem um instante: quantos de vocês já estudavam na
Beecher?
Mais ou menos metade das crianças levantou o braço.
— Tudo bem. Então alguns já se conhecem, mas acho que os
outros são novos na escola,
certo? Muito bem. Pensem em duas coisas que gostariam que
seus colegas soubessem sobre
vocês. E quem já conhece alguns dos outros alunos tente
pensar em coisas que eles ainda não
saibam. Certo? Está certo. Então vamos começar com Julian.
O Julian fez uma careta e começou a dar tapinhas na testa,
como se estivesse se
concentrando muito.
— Bem, quando você estiver pronto — disse a Sra. Petosa.
— Tá, a primeira coisa é que...
— Por favor, comecem dizendo seus nomes, o.k.? — interrompeu
ela. — Isso vai me ajudar
a me lembrar dos nomes de todo mundo.
— Ah, tudo bem. Meu nome é Julian. E a primeira coisa que
gostaria de dizer a todos sobre
mim mesmo é que... Acabei de comprar o jogo Battleground
Mystic para Wii, e é totalmente
incrível. E a segunda coisa é que compramos uma mesa de
pingue-pongue nesse verão.
— Que bom. Adoro pingue-pongue — disse a Sra. Petosa. —
Alguém gostaria de fazer uma
pergunta a Julian?
— O Battlegroung Mystic é para quantos jogadores? —
perguntou o menino chamado Miles.
— Não esse tipo de pergunta, pessoal — corrigiu a Sra.
Petosa. — Tudo bem, e você...
Ela apontou para a Charlotte, provavelmente porque estava
sentada lá na frente.
— Ah, claro. — A Charlotte não hesitou nem por um segundo,
como se já soubesse o que
queria falar. — Meu nome é Charlotte. Tenho duas irmãs e nós
ganhamos uma cachorrinha em
julho. O nome dela é Suki e nós a pegamos num abrigo para
animais. Ela é tão, tão fofinha!
— Que ótimo, Charlotte, obrigada — disse a Sra. Petosa. —
Muito bem, quem será o
próximo?
O cordeiro vai para o abate
“Como um cordeiro indo para o abate”: o que se diz sobre
alguém que vai tranquilamente a
algum lugar, sem saber que algo desagradável está prestes a
acontecer.
Procurei no Google ontem à noite. Era nisso que eu estava
pensando quando a Sra. Petosa
chamou meu nome e, de repente, era minha vez de falar.
— Meu nome é August — comecei e, sim, eu meio que
resmunguei.
— O quê? — perguntou alguém.
— Pode falar um pouco mais alto, querido? — pediu a Sra.
Petosa.
— Meu nome é August — repeti, mais alto dessa vez, obrigando-me
a olhar para cima. —
Eu, hum... tenho uma irmã chamada Via e uma cadela chamada
Daisy. E, hum... é isso.
— Maravilhoso — disse a Sra. Petosa. — Alguém quer perguntar
alguma coisa para o
August?
Ninguém falou nada.
— Certo, você é o próximo — disse ela para o Jack.
— Espere, eu tenho uma pergunta para o August — disse o
Julian, levantando a mão. — Por
que você tem essa trancinha na parte de trás do cabelo? É
uma coisa tipo Padawan?
— É — respondi, dando de ombros e assentindo.
— O que é uma coisa tipo Padawan? — a Sra. Petosa me
perguntou, sorrindo.
— É do Star Wars — respondeu o Julian. — Um Padawan é um
aprendiz de Jedi.
— Hum, interessante — disse a professora, olhando para mim.
— Então você gosta de Star
Wars, August?
— Gosto.
Fiz que sim com a cabeça, sem olhar para cima, porque o que
eu queria mesmo era
escorregar para debaixo da mesa.
— Qual é o seu personagem favorito? — perguntou o Julian.
Comecei a pensar que talvez ele não fosse tão ruim assim.
— O Jango Fett.
— E o Darth Sidious? — disse ele. — Você gosta dele?
— O.k., meninos, vocês podem conversas sobre Star Wars no
recreio — falou a Sra. Petosa
em um tom alegre. — Mas vamos continuar. Ainda não ouvimos
nada sobre você — disse ao
Jack.
Agora era a vez de o Jack falar, mas admito que não ouvi nem
uma palavra do que ele disse.
Talvez ninguém tenha entendido a coisa do Darth Sidious, e
talvez o Julian não estivesse
dizendo nada de mais. Mas em Star Wars Episódio III: A
vingança dos Sith, o rosto do Darth
Sidious é queimado pelos raios dos Sith e fica completamente
deformado. A pele dele fica
toda enrugada e a cara inteira meio que derrete.
Dei uma espiada na direção do Julian e ele estava olhando
para mim. É, ele sabia o que
estava falando.
Escolha ser gentil
Houve muita confusão na sala quando o sinal tocou e todos se
levantaram para sair. Conferi
meu horário e a próxima aula era de inglês, na sala 321. Não
parei para ver se mais alguém da
minha turma seguia para o mesmo lugar — saí correndo da
sala, passei pelo corredor bem
rápido e me sentei o mais longe possível da frente da
classe. O professor, um homem bem alto
com uma barba amarelada, estava escrevendo no quadro-negro.
Os alunos entraram em pequenos grupos, rindo e conversando,
mas não ergui os olhos.
Basicamente, aconteceu o mesmo da primeira aula: ninguém se
sentou ao meu lado. Só o Jack,
que fazia piadinhas com alguns alunos que não estavam na
sala da Sra. Petosa. Dava para
perceber que Jack era o tipo de garoto de quem as outras
crianças gostavam. Ele tinha muitos
amigos e fazia as pessoas rirem.
Quando o segundo sinal tocou, todos ficaram em silêncio e o
professor virou para a gente.
Disse que seu nome era Sr. Browne, e então começou a falar
sobre o que estudaríamos
naquele semestre. A certa altura, em algum momento entre Uma
dobra no tempo e Shen of the
Sea, ele me notou, mas não se interrompeu.
Passei a maior parte do tempo rabiscando no caderno enquanto
o ouvia, mas de vez em
quando eu olhava de relance para os outros alunos. A Charlotte
estava na aula. Julian e Henry
também. O Miles, não.
O Sr. Browne havia escrito no quadro, em grandes letras de
forma:
P-R-E-C-E-I-T-O!
— Certo, quero que todos anotem esta palavra no topo da
primeira folha do caderno de
inglês. — Enquanto fazíamos isso, ele disse: — Muito bem,
quem pode me dizer o que é
preceito? Alguém sabe?
Ninguém levantou a mão.
O Sr. Browne sorriu, assentiu e se virou para escrever no
quadro de novo:
PRECEITOS — REGRAS A RESPEITO DE COISAS MUITO IMPORTANTES!
— Como lemas? — perguntou alguém.
— Como lemas! — respondeu o Sr. Browne, balançando a cabeça
afirmativamente enquanto
continuava a escrever no quadro. — Como uma citação famosa.
Como a mensagem de um
biscoitinho da sorte. Qualquer ditado ou fundamento que
motive você. Basicamente, um
preceito é qualquer coisa que nos sirva como orientação
quando tomamos decisões difíceis
sobre questões importantes.
Ele escreveu tudo isso no quadro e depois se virou para nós.
— Então, deem exemplos de coisas muito importantes —
perguntou-nos.
Algumas crianças ergueram o braço e, conforme o professor as
apontava, elas davam suas
respostas, que ele escrevia no quadro com uma caligrafia
terrível:
REGRAS. TRABALHO ESCOLAR. DEVER DE CASA.
— O que mais? — perguntava e escrevia, sem nem se virar. —
Vão falando!
Anotou tudo que os alunos disseram.
FAMÍLIA.
PAIS.
BICHOS DE ESTIMAÇÃO.
Uma menina gritou:
— O meio ambiente!
MEIO AMBIENTE.
Ele escreveu isso no quadro e acrescentou:
NOSSO MUNDO!
— Tubarões, porque comem criaturas mortas no oceano! — disse
um dos meninos, que se
chamava Reid.
O Sr. Browne anotou:
TUBARÕES.
— Abelhas!
— Cintos de segurança!
— Reciclagem!
— Amigos!
— Certo — disse o Sr. Browne, escrevendo tudo no quadro.
Quando terminou, se virou
para nos encarar de novo. — Mas ninguém falou a coisa mais
importante.
Todos nós olhamos para ele, sem mais nenhuma ideia.
— Deus? — tentou alguém, e percebi que, embora o Sr. Browne
tenha escrito “Deus” no
quadro, essa não era a resposta que ele queria.
Sem mais uma palavra sequer, ele escreveu:
QUEM NÓS SOMOS!
— Quem nós somos — disse, sublinhando cada uma das palavras
ao pronunciá-las. —
Quem nós somos! Nós! Certo? Que tipo de pessoas somos? Que
tipo de pessoas são vocês?
Não é isso o mais importante? Não é esse tipo de pergunta
que deveríamos nos fazer o tempo
inteiro? “Que tipo de pessoa eu sou?” Algum de vocês notou a
placa ao lado do portão desta
escola? Leram o que estava escrito? Alguém? — Ele olhou em
volta, mas ninguém sabia. — A
placa diz: “Conhece-te a ti mesmo” — falou o Sr. Browne,
sorrindo e assentindo. — E é isto
que vamos fazer aqui: descobrir quem somos.
— Achei que estivéssemos aqui para estudar inglês — soltou
Jack, fazendo todo mundo rir.
— É, e isso também! — respondeu o professor, o que achei
muito legal da parte dele.
Ele se virou de costas e escreveu em enormes letras de
forma, que ocuparam toda a largura
do quadro-negro:
PRECEITO DE SETEMBRO DO SR. BROWNE:
QUANDO TIVER QUE ESCOLHER ENTRE ESTAR CERTO E SER GENTIL,
ESCOLHA SER GENTIL.
— Muito bem — retomou ele, virando-se novamente para nós. —
Quero que criem uma
divisão no caderno e a chamem de “Os preceitos do Sr.
Browne”. — Enquanto fazíamos o que
foi pedido, o professor continuou: — Escrevam a data de hoje
no topo da primeira página. E,
de hoje em diante, no início de cada mês, vou escrever no
quadro um novo preceito do Sr.
Browne e vocês irão copiá-lo no caderno. Em seguida vão
discutir o preceito e seu
significado. E, no fim do mês, escreverão uma redação sobre
ele, sobre o que significou para
vocês. Assim, no fim do ano, todos terão sua própria lista
de preceitos. Peço a todos os meus
alunos que, durante o verão, criem seu próprio preceito,
escrevam-no em um cartão-postal e
me enviem de onde quer que estejam passando as férias.
— As pessoas fazem isso mesmo? — perguntou uma garota, cujo
nome eu não sabia.
— Ah, sim — respondeu ele. — Fazem, sim. Na verdade, já tive
alunos que me mandaram
novos preceitos mesmo muitos anos depois de terem se
formado. É muito legal. — Ele fez uma
pausa e coçou a barba. — Mas, tudo bem, sei que o próximo
verão parece muito distante —
brincou, fazendo a gente rir. — Então, podem relaxar um
pouco enquanto faço a chamada e,
quando terminarmos, vou falar um pouco sobre todas as coisas
divertidas que faremos este
ano... na aula de inglês.
Ao dizer isso, ele apontou para Jack, o que também foi
engraçado, por isso todos rimos de
novo.
Enquanto eu escrevia o preceito do Sr. Browne de setembro,
de repente me dei conta de que
ia gostar da escola. Do jeito que fosse.
Almoço
A Via tinha me alertado sobre o almoço na escola, então acho
que eu deveria saber que seria
difícil. Só não esperava que fosse tanto. Basicamente, todas
as crianças de todas as turmas de
quinto ano inundaram o refeitório ao mesmo tempo, falando
alto e esbarrando umas nas outras
enquanto corriam para mesas diferentes. Uma das inspetoras
que tomavam conta do refeitório
disse algo sobre ser proibido guardar lugares, mas não
entendi do que ela estava falando, e
talvez mais ninguém tenha entendido, porque quase todo mundo
estava guardando lugar para os
amigos. Tentei me sentar a uma mesa, mas a criança na
cadeira ao lado disse:
— Ah, desculpe, mas já tem alguém aí.
Então fui a uma mesa vazia e esperei até a bagunça acabar e
a inspetora nos dizer o que
fazer em seguida. Quando ela começou a explicar as regras do
refeitório, procurei em volta
para ver onde o Jack Will estava, mas não o vi por perto.
Ainda tinha alunos entrando quando
os professores começaram a mandar os ocupantes das primeiras
mesas pegarem suas bandejas
e fazerem fila no balcão. O Julian, o Henry e o Miles
estavam sentados mais para o fim do
refeitório.
Mamãe havia feito um sanduíche de queijo para o meu almoço,
com biscoitos cream
crackers e uma caixa de suco, por isso não precisei ir para
a fila quando minha mesa foi
chamada. Em vez disso, simplesmente me concentrei em abrir a
mochila, pegar o saco com o
lanche e, bem devagar, abrir a embalagem de papel-alumínio
do sanduíche.
Mesmo sem erguer os olhos, eu sabia que estava sendo
observado. Sabia que as pessoas
estavam cutucando umas às outras, espiando pelo canto do
olho. Pensei que já estivesse
acostumado com esse tipo de coisa, mas talvez não.
Havia uma mesa cheia de garotas cochichando sobre mim — sei
disso porque elas tapavam
a boca com a mão. Os olhos ficavam indo e voltando na minha
direção.
Odeio meu jeito de comer. Sei que parece muito estranho. Passei
por uma cirurgia para
corrigir o lábio leporino quando era bebê e depois por outra
quando tinha quatro anos, mas
ainda tenho um buraco no céu da boca. E, embora tenha
passado por uma cirurgia para alinhar
o maxilar, há alguns anos, tenho que mastigar a comida na
parte da frente da boca. Eu nunca
tinha percebido como isso era estranho até que certa vez, em
uma festa de aniversário, um dos
garotos disse para a mãe do aniversariante que não queria se
sentar do meu lado porque eu
fazia muita sujeira, deixava escapar farelos de comida da
minha boca. Sei que o menino não
fez por mal, mas ele se meteu em uma grande enrascada
depois, porque a mãe dele ligou para
a minha para pedir desculpas. Quando cheguei em casa depois
da festa, fui até o espelho do
banheiro e comecei a comer um biscoito para ver como ficava
quando estava mastigando. O
garoto estava certo. Eu como feito uma tartaruga, se é que
você já viu uma tartaruga comendo.
Como um monstro do pântano pré-histórico.
A mesa do verão
— Ei, este lugar está ocupado?
Olhei para cima. Uma garota que eu nunca tinha visto estava
de pé em frente à minha mesa,
com uma bandeja cheia de comida. O cabelo dela era castanho,
comprido e ondulado, e ela
usava uma camiseta marrom com um sinal de paz roxo
estampado.
— Hum, não — respondi.
Ela pôs a bandeja na mesa, deixou a mochila no chão e se
sentou na minha frente. Então
começou a comer o macarrão com queijo que estava no prato.
— Argh — resmungou, depois de engolir a primeira garfada. —
Eu devia ter trazido um
sanduíche como você.
— É — falei, concordando.
— Aliás, meu nome é Summer. E o seu?
— August.
— Legal — disse ela.
— Summer! — Outra garota se aproximou da mesa carregando uma
bandeja. — Por que
você sentou aqui? Volte para a nossa mesa.
— Estava muito cheia — respondeu Summer. — Venha se sentar
aqui. Tem mais espaço.
A outra garota pareceu um pouco confusa por um segundo.
Notei que ela era uma daquelas
meninas que eu havia flagrado olhando para mim, cochichando
e escondendo a boca com as
mãos. Summer também estava sentada lá antes.
— Deixa para lá — disse a garota, afastando-se.
Summer olhou para mim, sorriu e deu de ombros, depois comeu
outra garfada do macarrão.
— Ei, nossos nomes meio que combinam — falou enquanto
mastigava. Acho que ela
percebeu que eu não havia entendido. — Summer significa
verão, e August é agosto. Em
agosto é verão aqui — explicou ela, sorrindo e com os olhos
arregalados, como se estivesse
esperando até eu entender a piada.
— É mesmo — falei depois de um segundo.
— Esta pode ser a “mesa do verão” — disse ela. — Só quem
tiver o nome relacionado ao
verão vai poder se sentar aqui. Vamos ver... será que tem
alguém chamado June ou July?
— Tem uma Maya — sugeri.
— Tecnicamente, maio ainda é primavera — argumentou Summer
—, mas, se ela quiser se
sentar aqui, poderemos abrir uma exceção. — Ela falou isso
como se de fato já houvesse
pensado em tudo. — Tem o Julian...
Não falei nada.
— Tem um garoto chamado Reid na minha turma de inglês —
comentei.
— É, eu conheço o Reid. Mas por que o nome dele tem a ver
com o verão? — perguntou
ela.
— Não sei bem — respondi, encolhendo os ombros. — Só
pensei... tipo, em uma rede
balançando na beira da praia ou alguma coisa parecida.
— Tá, tudo bem. — Ela assentiu e pegou um caderno. — A Sra.
Petosa também poderia se
sentar aqui. O nome dela meio que me faz pensar em “pétala”,
que também me parece uma
coisa de verão.
— Ela é minha professora da orientação — falei.
— E minha de matemática — respondeu Summer, fazendo uma
careta.
Ela começou a anotar os nomes na penúltima página do
caderno.
— Então, quem mais? — perguntou.
No fim do almoço, havíamos elaborado uma lista com os nomes
de alunos e professores que
poderiam se sentar à nossa mesa se quisessem. A maioria dos
nomes não era de fato de verão,
mas tinha alguma semelhança. Consegui até incluir o Jack
Will, alegando que ele
provavelmente gostava de ir à praia. A Summer achou que tudo
bem.
— Mas, se alguém quiser se sentar conosco e não tiver um
nome relacionado ao verão —
disse ela, muito séria —, vamos deixar se a pessoa for
legal, certo?
— Certo — concordei. — Mesmo que seja um nome de inverno.
— Fechado, então! — exclamou ela, fazendo o sinal de
positivo com o polegar.
A Summer combinava com seu nome. Tinha a pele bronzeada e
seus olhos eram verdes
como uma folha.
De um a dez
Minha mãe sempre teve mania de me perguntar como alguma
coisa foi em uma escala de um a
dez. Começou depois da minha cirurgia no maxilar, quando eu
não podia falar porque minha
boca estava travada com arame. Os médicos retiraram um
pedaço da minha bacia para pôr no
meu queixo e deixá-lo com uma aparência mais normal, por
isso eu sentia dor em vários
lugares. Mamãe apontava para um dos curativos e eu erguia os
dedos para mostrar quanto
estava doendo. “Um” significava um pouquinho. “Dez” doía
muito, muito, muito mesmo.
Então, quando o médico fosse passar visita, ela lhe diria o
que precisava ser ajustado ou
coisas desse tipo. Às vezes ela era muito boa em ler minha
mente.
Depois disso, passamos a fazer a escala de um a dez para
tudo que doesse. Tipo, se eu
tivesse uma simples dor de garganta, ela perguntava:
— De um a dez?
— Três — respondia eu, ou o que fosse.
Quando a aula acabou, saí da escola para encontrar a mamãe,
que estava me esperando no
portão como todos os outros pais e babás. A primeira coisa
que ela me falou depois de me
abraçar foi:
— Então, como foi? De um a dez?
— Cinco — respondi dando de ombros, o que, posso dizer,
deixou a mamãe completamente
surpresa.
— Uau! — exclamou. — Foi muito melhor do que eu esperava.
— Nós vamos buscar a Via?
— A mãe da Miranda vai buscá-la hoje. Quer que eu leve sua
mochila, querido?
Tínhamos começado a caminhar por entre a multidão de pais e
alunos, a maioria dos quais
me observava, “discretamente” apontando para que os outros
me vissem.
— Não precisa — falei.
— Parece pesada demais, Auggie.
Ela começou a tirar a mochila das minhas costas.
— Mãe! — reclamei, afastando a mochila de seu alcance e
caminhando pela multidão na
frente dela.
— Até amanhã, August! — falou a Summer, que caminhava na
direção oposta.
— Tchau, Summer — respondi, acenando para ela.
Assim que atravessamos a rua e estávamos longe da multidão,
mamãe perguntou:
— Quem era aquela, Auggie?
— É a Summer.
— Ela tem aula com você?
— Tenho muitas aulas diferentes.
— Ela faz alguma aula com você?
— Não.
Mamãe esperou que eu dissesse mais alguma coisa, mas eu não
estava com vontade de
conversar.
— Então foi tudo bem? — Eu sabia que ela estava com vontade
de fazer um milhão de
perguntas. — Todo mundo foi legal? Você gostou dos
professores?
— Sim.
— E as crianças que você conheceu na semana passada? Elas
foram simpáticas?
— Foram, sim. O Jack passou bastante tempo comigo.
— Que ótimo, querido. E aquele outro garoto, o Julian?
Pensei no comentário sobre o Darth Sidious. Parecia que
tinha sido um século antes.
— Tudo bem — falei.
— E a menina loura? Qual era o nome dela?
— Charlotte. Mãe, já disse que todos foram legais.
— Tudo bem — respondeu ela.
Sinceramente, não sei por quê, mas eu estava meio zangado
com a mamãe. Atravessamos a
Amesfort Avenue, e ela não falou mais nada até chegarmos ao
nosso quarteirão.
— Então — começou ela. — Como conheceu a Summer se ela não
faz nenhuma aula com
você?
— A gente sentou junto no almoço.
Eu tinha começado a chutar uma pedra de um pé para o outro,
como se fosse uma bola de
futebol, fazendo com que ela rolasse para lá e para cá na
calçada.
— Ela parece muito legal.
— É, sim.
— E é muito bonita — comentou a mamãe.
— É, eu sei — respondi. — Nós somos meio que a Bela e a
Fera.
Não esperei para ver a reação dela. Simplesmente comecei a
correr pela calçada atrás da
pedra, que eu havia chutado para a frente o mais forte que
consegui.
Padawan
Naquela noite, cortei a trancinha na parte de trás do meu
cabelo. O papai foi o primeiro a
notar.
— Que bom — disse ele. — Nunca gostei daquilo.
A Via não conseguia acreditar que eu tinha cortado a trança.
— Levou anos para crescer — falou, quase como se estivesse
zangada. — Por que você
cortou?
— Não sei — respondi.
— Alguém zoou você?
— Não.
— Você contou ao Christopher que ia cortar?
— Nós nem somos mais amigos!
— Isso não é verdade — disse a minha irmã. — Não acredito
que você cortou a trança,
assim, sem mais nem menos — acrescentou, contrariada, e saiu
do meu quarto, praticamente
batendo a porta.
Eu estava aninhado com a Daisy na minha cama quando papai
veio me botar para dormir.
Ele chegou Daisy para o lado com delicadeza e se deitou
comigo, em cima do cobertor.
— Então, Auggie Bobi, o dia correu bem mesmo?
Ele me chamava assim por causa de um desenho antigo de um
cachorro dachshund que ele
havia comprado para mim no eBay quando eu tinha uns quatro
anos. Nós tínhamos assistido ao
DVD muitas vezes, principalmente no hospital. O nome do
desenho era Bibo Pai e Bobi Filho,
por isso ele me chamava de Auggie Bobi. E eu o chamava de
“meu querido e velho pai”, como
o personagem fazia.
— Sim, superbem — falei, balançando a cabeça.
— Você passou a noite toda tão quieto...
— Acho que estou cansado.
— Foi um dia cheio, hein?
Fiz que sim.
— Mas correu tudo bem mesmo? — insistiu ele.
Assenti mais uma vez. Ele não disse nada, por isso, depois
de alguns segundos, falei:
— Na verdade, tudo correu muito bem mesmo.
— Que ótimo ouvir isso, Auggie — disse ele baixinho, dando
um beijo na minha testa. —
Então parece que foi uma boa ideia, essa da mamãe, não foi?
De você ir para a escola.
— Foi. Mas eu posso parar de ir se quiser, não é?
— Foi isso que combinamos — respondeu ele. — Mas acho que
vai depender do seu
motivo para desistir. Você terá que nos contar. Terá que
conversar conosco e nos dizer como
se sente e se alguma coisa ruim está acontecendo. Tudo bem?
Promete que vai contar?
— Prometo.
— Então posso lhe fazer uma pergunta? Você está zangado com
a mamãe? Você foi um
pouco malcriado com ela a noite toda. Sabe, Auggie, sou tão
culpado de mandar você para a
escola quanto ela.
— Não. Ela é mais culpada. Foi ideia dela.
Mamãe bateu na porta bem nessa hora e colocou a cabeça para
dentro do meu quarto.
— Só queria dar boa-noite — falou.
Por um instante, ela pareceu tímida.
— Oi, mamãezinha — falou meu pai, pegando minha mão e
acenando para ela.
— Ouvi dizer que você cortou sua trança — comentou a mamãe,
sentando na beirada da
cama, ao lado da Daisy.
— Não foi nada de mais — respondi depressa.
— Não falei que era — retrucou ela.
— Por que você não põe o Auggie para dormir hoje? — sugeriu
o papai, levantando-se. —
Tenho mesmo que trabalhar um pouco. Boa noite, meu filho,
meu filho. — Isso também era
parte da rotina inspirada pelo desenho animado, embora eu
não estivesse no clima para
responder “Boa noite, meu querido e velho pai”. — Estou
muito orgulhoso de você —
acrescentou ele.
Meus pais sempre se revezavam para me pôr para dormir. Sei
que é um pouco infantil da
minha parte ainda querer que eles fizessem isso, mas era
assim que as coisas funcionavam
com a gente.
— Você vai dar uma olhada na Via? — perguntou a mamãe ao
papai enquanto se deitava ao
meu lado.
Ele parou junto à porta e se virou.
— Algum problema com a Via?
— Nenhum — respondeu mamãe, dando de ombros. — Pelo menos,
não que ela tenha me
contado. Mas... primeiro dia do ensino médio e tudo o mais.
— Hum... — murmurou papai, então apontou para mim e piscou.
— Sempre há um problema
com vocês, crianças, não é?
— Nada de tédio — disse a mamãe.
— Nada de tédio — repetiu o papai. — Boa noite, pessoal.
Assim que ele fechou a porta, a mamãe pegou o livro que
vinha lendo para mim nas últimas
semanas. Fiquei aliviado: estava com muito medo de que ela
quisesse “conversar”, porque eu
não estava a fim. Mas ela também não parecia querer papo.
Simplesmente passou as páginas
até chegar ao ponto em que havíamos parado. Estávamos perto
da metade de O Hobbit.
— “Parem! Parem!”, gritou Thorin — começou a mamãe, lendo em
voz alta —; mas era
tarde demais, os anões, entusiasmados, tinham desperdiçado
as últimas flechas, e agora os
arcos que Beorn lhes tinha dado eram inúteis.
“Naquela noite o grupo esteve tristonho, e a tristeza
tornou-se ainda mais forte em seus
corações nos dias seguintes. Tinham atravessado o rio
encantado, mas, além dele, a trilha
parecia continuar como antes, e na floresta não se via
nenhuma mudança.”
Não sei bem por quê, mas, de repente, comecei a chorar.
Mamãe abaixou o livro e me abraçou. Não parecia surpresa por
eu estar chorando.
— Tudo bem — disse ela baixinho em meu ouvido. — Vai ficar
tudo bem.
— Desculpe — falei, entre fungadelas.
— Shhh — sussurrou mamãe, limpando minhas lágrimas com as
costas da mão. — Não tem
por que se desculpar...
— Por que eu tenho que ser tão feio, mamãe? — murmurei.
— Não, querido, você não é...
— Eu sei que sou.
Ela beijou meu rosto todo. Beijou meus olhos, que eram muito
caídos. Beijou minhas
bochechas, que pareciam afundadas demais. Beijou minha boca
de tartaruga.
Disse palavras gentis, que, eu sabia, eram para me ajudar,
mas palavras não vão mudar meu
rosto.
Acorde-me quando setembro acabar
O restante do mês de setembro foi difícil. Eu não estava
acostumado a acordar tão cedo de
manhã. Não estava acostumado com o conceito de dever de
casa. E tive meu primeiro “teste
oral” no final do mês. Eu nunca tinha feito um “teste oral”
quando a mamãe me dava aulas.
Também não gostava de não ter mais tempo livre. Antes, eu
podia brincar quando quisesse,
mas agora parecia que sempre tinha alguma tarefa a fazer
para a escola.
E ficar lá era horrível no começo. Cada aula nova era uma
nova oportunidade de as crianças
“não olharem” para mim. Elas me espiavam por trás dos
cadernos ou quando eu não estava
olhando. Evitavam esbarrar em mim a qualquer custo, dando a
volta e pegando o caminho
mais longo, como se eu tivesse algum germe que elas pudessem
pegar; como se meu rosto
fosse contagioso.
Nos corredores lotados, meu rosto sempre surpreendia alguma
criança desavisada que ainda
não tivesse ouvido falar a meu respeito. Ela fazia o mesmo
som que uma pessoa faz antes de
mergulhar, uma espécie de “ah!”. Isso acontecia quatro ou
cinco vezes por dia nas primeiras
semanas: nas escadas, em frente aos armários, na biblioteca.
Quinhentas crianças em uma
escola: todas elas acabariam vendo meu rosto em algum
momento. E, depois dos primeiros
dias, notei que eu tinha virado notícia, porque de vez em
quando via uma criança cutucando o
amigo enquanto passavam por mim, ou cochichando por trás da
mão quando eu cruzava com
elas. Posso imaginar o que diziam a meu respeito. Na
verdade, não, prefiro nem tentar.
Não que elas fizessem por maldade. A propósito: nem sequer
uma vez alguém riu, fez
barulhos ou coisa do tipo. Estavam apenas sendo crianças
bobas e normais. Sei disso. E meio
que tinha vontade de dizer: “Tudo bem, sei que sou meio
esquisito. Podem olhar, eu não
mordo.” A verdade é que, se de repente um Wookiee começasse
a frequentar a escola, eu
também ficaria curioso e provavelmente olharia um pouco para
ele! E, se eu estivesse
andando com o Jack ou com a Summer, talvez cochichasse:
“Olhe ali o Wookiee.” E, se o
Wookiee me pegasse dizendo isso, ele saberia que não fiz por
mal. Estava apenas apontando o
fato de que ele era um Wookiee.
Levou mais ou menos uma semana para os alunos da minha turma
se acostumarem com meu
rosto. E eles eu via todos os dias, em todas as aulas. Para
os outros alunos do quinto ano se
habituarem, levou mais ou menos duas semanas. Esses eu via
no refeitório, no recreio, na
biblioteca e nas aulas de educação física, música e
informática.
Para o restante dos alunos da escola, levou cerca de um mês.
Era o pessoal dos outros anos.
Alguns eram mais velhos. Tinham cortes de cabelo esquisitos.
Outros tinham piercings no
nariz ou espinhas. Nenhum se parecia comigo.
O preceito do Sr. Browne de outubro
Nesse mês, o preceito do Sr. Browne foi:
SEUS FEITOS SÃO SEUS MONUMENTOS.
Ele nos disse que isso estava escrito na tumba de algum
egípcio que morreu há milhares de
anos. Como estávamos prestes a começar a estudar o Egito
Antigo em história, o Sr. Browne
achou que seria uma boa escolha como preceito.
Nosso dever de casa era escrever um parágrafo sobre o que
achávamos que aquilo
significava ou qual era a nossa opinião a respeito. Eu
escrevi:
Esse preceito significa que deveríamos ser lembrados pelas
coisas que fazemos. Elas
importam mais do que tudo. Mais do que aquilo que dizemos ou
do que nossa
aparência. As coisas que fazemos sobrevivem a nós. São como
os monumentos que as
pessoas erguem em honra dos heróis depois que eles morrem.
Como as pirâmides que
os egípcios construíam para homenagear os faraós. Só que, em
vez de pedra, são
feitas das lembranças que as pessoas têm de você. Por isso
nossos feitos são nossos
monumentos. Construídos com memórias em vez de pedra.
Maçãs
Meu aniversário é no dia dez de outubro. Gosto da data:
10/10. Seria bem bacana se eu
tivesse nascido exatamente às 10h10 da manhã ou da noite,
mas não. Nasci logo depois da
meia-noite. Ainda assim acho meu aniversário legal.
Em geral fazemos uma festinha em casa, mas este ano
perguntei à mamãe se eu poderia ter
uma grande festa no boliche. Ela ficou surpresa, mas feliz.
Perguntou quem eu queria convidar
da escola, e eu disse que queria chamar todos da turma de
orientação e a Summer.
— São muitas pessoas, Auggie — disse a mamãe.
— Tenho que convidar todo mundo porque não quero que ninguém
fique triste se souber que
os outros foram convidados menos ele, o.k.?
— Tudo bem — concordou ela. — Quer convidar até aquele
garoto?
— Quero, pode convidar o Julian — respondi. — Meu Deus, mãe.
Você devia esquecer
isso.
— Eu sei, tem razão.
Algumas semanas depois, perguntei à mamãe quem ia à festa e
ela disse:
— Jack Will,
Summer, Reid Kingsley. Os dois Max. E algumas outras crianças disseram
que tentariam ir.
— Tipo quem?
— A mãe da Charlotte disse que ela tem uma apresentação de
dança no mesmo dia mais
cedo, mas que tentaria ir se desse tempo. E a mãe do Tristan
disse que ele talvez vá depois do
futebol.
— Então é isso? — falei. — São tipo... cinco pessoas.
— São mais que cinco pessoas, Auggie. Acho que muita gente
simplesmente já tinha outros
planos.
Estávamos na cozinha. Ela estava cortando uma das maçãs que
tínhamos acabado de
comprar no mercado em pedaços pequenos para que eu pudesse
comer.
— Que tipo de planos? — perguntei.
— Não sei, Auggie. Mandamos os convites um pouco tarde.
— Mas o que eles disseram? Quais foram as explicações?
— Cada um tinha um motivo diferente, Auggie. — Ela pareceu
um pouco impaciente. — Na
verdade, querido, não importam os motivos. As pessoas tinham
outros planos, só isso.
— Qual foi o motivo de Julian? — perguntei.
— Sabe — falou a mamãe —, a mãe dele foi a única que não se
deu o trabalho de
responder. — Ela olhou para mim. — Acho que uma maçã nunca
cai longe do pé.
Eu ri, porque achei que ela estivesse fazendo uma piada, mas
então percebi que não.
— O que isso quer dizer? — perguntei.
— Deixa para lá. Agora vá lavar as mãos para comer.
Minha festa de aniversário acabou sendo bem menor do que eu
tinha imaginado, mas mesmo
assim foi ótima. Da escola, foram Jack, Summer, Reid,
Tristan e os dois Max. Christopher
também veio de Bridgeport com os pais. E o tio Ben. E a tia
Kate e o tio Po, que vieram de
Boston, embora a vovó e o vovô estivessem passando o inverno
na Flórida. Foi divertido
porque todos os adultos acabaram jogando boliche na pista ao
lado da nossa, então pareceu
que realmente havia muitas pessoas lá para comemorar o meu
aniversário.
Halloween
No almoço do dia seguinte, a Summer perguntou de que eu iria
me fantasiar no Halloween. É
claro que eu estava pensando nisso desde o último dia das
bruxas, então já sabia o que
responder:
— Boba Fett.
— Você sabe que pode vir para a escola fantasiado no
Halloween, não é?
— Mentira. Jura?
— Desde que seja uma fantasia politicamente correta.
— Como assim? Sem armas e essas coisas?
— Isso mesmo.
— E blasters?
— Acho que uma blaster é um tipo de arma, Auggie.
— Ah, droga... — falei triste, balançando a cabeça, porque
Boba Fett tem uma.
— Pelo menos não somos mais obrigados a vir vestidos como
personagens de livros. No
ensino fundamental I era assim. Ano passado me fantasiei de Bruxa
do Oeste, de O Mágico de
Oz.
— Mas isso é um filme, não um livro.
— Oi? — disse a Summer. — Era um livro primeiro! Um dos meus
livros favoritos, na
verdade. Meu pai costumava ler a história para mim todas as
noites quando eu estava no
primeiro ano.
Quando a Summer fala, principalmente se está animada com
alguma coisa, seus olhos se
estreitam, como se ela estivesse olhando direto para o sol.
Quase não a vejo durante o dia, pois só estudamos juntos na
aula de inglês. Mas desde
aquele primeiro almoço na escola, nós nos sentamos juntos
todos os dias, só os dois.
— Então, de que você vai se vestir? — perguntei a ela.
— Ainda não decidi. Sei o que eu queria usar, mas acho que
seria muito bobo. Sabe, a
Savanna e as amigas nem vão usar fantasia este ano. Acham
que a gente já é velho demais para
o Halloween.
— O quê? Que coisa mais idiota.
— Não é?
— Achei que você não ligasse para o que aquelas garotas
pensam.
Ela deu de ombros e tomou um grande gole de leite.
— Então, de que coisa boba você quer se vestir? — perguntei,
sorrindo.
— Promete que não vai rir? — Ela ergueu as sobrancelhas e
encolheu os ombros,
constrangida. — De unicórnio.
Sorri e baixei os olhos para o meu sanduíche.
— Ei, você prometeu que não ia rir! — disse ela, rindo.
— Certo, certo — falei. — Mas você tem razão: é bem bobo.
— Eu sei! Mas já pensei em tudo: faria a cabeça de papel
machê, pintaria o chifre de
dourado e faria uma crina dourada, também... Ia ficar tão
incrível!
— Tudo bem — falei, dando de ombros. — Então você tem que
fazer. Quem se importa com
o que os outros pensam, afinal?
— Talvez eu só use a fantasia no desfile de Halloween —
disse ela, estalando os dedos. —
E, para a escola, posso me vestir de, sei lá, gótica. Sim, é
isso. É o que vou fazer.
— Parece um bom plano — falei, assentindo.
— Obrigada, Auggie. — Ela deu uma risadinha. — Sabe, isso é
o que mais gosto em você.
Parece que posso lhe contar qualquer coisa.
— É? — Balancei a cabeça e ergui o polegar para ela. —
Maneiro!
Fotos de escola
Acho que ninguém vai ficar surpreso ao saber que eu não
queria tirar fotos na escola no dia
vinte e dois de outubro. De jeito nenhum. Não, obrigado.
Parei de sair em fotos há muito
tempo. Acho que se poderia dizer que tenho fobia. Não, na
verdade não é fobia. É “aversão”,
uma palavra que acabei de aprender na aula do Sr. Browne.
Tenho aversão a que tirem fotos
minhas. Pronto, usei a palavra em uma frase.
Achei que a mamãe fosse tentar me persuadir a deixar a
aversão de lado e tirar a foto para a
escola, mas não. Infelizmente, apesar de ter evitado a foto
só minha, não pude ficar de fora da
foto da turma. Argh. Parecia que o fotógrafo tinha acabado
de chupar um limão quando me viu.
Tenho certeza de que ele achou que estraguei a foto. Eu era
um dos alunos sentados na frente.
Não sorri — não que alguém fosse notar se eu sorrisse.
O toque do queijo
Não muito tempo atrás, percebi que, embora as pessoas
estivessem se acostumando comigo,
ninguém encostava em mim. Demorei um pouco para notar porque
os alunos não ficam
encostando uns nos outros o tempo todo mesmo. Mas, na última
quinta-feira, na aula de dança,
a Sra. Atanabi, a professora, tentou fazer com que Ximena
Chin dançasse comigo. Olha, eu
nunca tinha visto alguém ter um “ataque de pânico” de
verdade antes, mas já tinha ouvido
falar, e tenho quase certeza de que foi isso que Ximena
teve. Ela ficou muito nervosa, pálida e
começou a suar, depois deu uma desculpa esfarrapada sobre
precisar muito ir ao banheiro. De
todo modo, a Sra. Atanabi salvou a pele dela, porque acabou
não fazendo ninguém dançar
junto.
Ontem, na eletiva de ciências, estávamos fazendo uma tarefa
muito legal usando pós
misteriosos e classificando as substâncias como ácidas ou
básicas. A gente tinha que
esquentar os pós misteriosos em uma chapa calefatora e fazer
notas, então todos os alunos
estavam reunidos ali em volta, cada um com seu caderno. São
oito alunos na turma: sete
estavam espremidos de um lado da chapa, enquanto o outro —
eu — tinha muito espaço do
outro lado. É claro que eu percebi, mas torci para que a
Sra. Rubin não notasse, porque não
queria que ela dissesse nada. Mas é claro que ela também
notou, e é claro que falou alguma
coisa.
— Pessoal, tem muito espaço do outro lado. Tristan, Nino,
passem para lá — ordenou.
Então o Tristan e o Nino foram para o meu lado. Os dois são
sempre “legais” comigo.
Quero deixar isso claro. Não superlegais, de andarem sempre
comigo, mas legais: eles me
cumprimentam e conversamos de um jeito normal. E não fizeram
careta quando a Sra. Rubin
os mandou ir para perto de mim, algo que muitas crianças
fazem quando acham que não estou
olhando. De todo modo, tudo estava indo bem até que o pó
misterioso do Tristan começou a
derreter. Ele tirou a lâmina da chapa no mesmo momento em
que o meu pó começou a derreter.
Aí fui tirar a minha lâmina também, e minha mão esbarrou na
dele sem querer, por uma fração
de segundo. Tristan afastou a mão tão depressa que derrubou
sua lâmina no chão e, ao mesmo
tempo, fez todas as outras caírem da chapa calefatora.
— Tristan! — gritou a Sra. Rubin, mas ele nem se importou de
ter derrubado o pó e
arruinado toda a experiência; estava mais preocupado em ir à
pia do laboratório lavar as mãos
o mais rápido possível.
Foi quando tive certeza de que na Beecher Prep havia um mito
sobre encostar em mim.
Acho que é como o Toque do Queijo, do livro Diário de um
banana. As crianças tinham
medo de encostar em uma fatia de queijo mofado na quadra de
basquete. Na minha escola, eu
sou o queijo mofado.
Fantasias
Para mim, o Halloween é a melhor festa do mundo. Melhor até
que o Natal. Posso usar
fantasia. Usar máscara. Posso andar por aí como qualquer
outra criança fantasiada e ninguém
me acha estranho. Ninguém olha para mim duas vezes. Ninguém
me nota. Ninguém me
reconhece.
Eu gostaria que todos os dias fossem Halloween. Poderíamos
ficar mascarados o tempo
todo. Então andaríamos por aí e conheceríamos as pessoas
antes de saber como elas são sem
máscara.
Quando eu era pequeno, usava um capacete de astronauta aonde
quer que fosse. No
parquinho, no supermercado, na hora de buscar a Via na
escola. Mesmo em pleno verão,
embora fosse tão quente que meu rosto suava. Acho que o usei
por alguns anos, mas tive que
parar quando fiz a cirurgia nos olhos. Tinha uns sete anos,
acho. E depois disso não
encontramos mais o capacete. A mamãe procurou em tudo que
era lugar. Ela achava que
provavelmente ele tinha ido parar no sótão da vovó, e
pretendia continuar procurando, mas aí
eu já estava acostumado a não usá-lo.
Tenho fotos com todas as minhas fantasias de Halloween. A
primeira foi de abóbora. A
segunda, de Tigrão. A terceira foi de Peter Pan (o papai se
vestiu de Capitão Gancho). Na
quarta vez me vesti de Capitão Gancho (o papai estava de
Peter Pan). Na quinta fui um
astronauta. A sexta fantasia foi de Obi-Wan Kenobi. A sétima
foi de storm trooper. A oitava
foi de Darth Vader. No nono Halloween usei uma máscara como
a do filme Pânico, suja com
sangue falso.
Este ano vou me vestir de Boba Fett. Não o garoto de Star
Wars Episódio II: O ataque dos
clones, mas o Boba Fett adulto, de Star Wars Episódio V: O
império contra-ataca . Minha
mãe procurou a fantasia em todos os lugares, mas não
encontrou nenhuma do meu tamanho,
então comprou uma roupa de Jango Fett — já que o Jango é pai
do Boba e usa a mesma
armadura — e então a pintou de verde. Também fez algumas
coisas para ela parecer gasta.
Enfim, ficou muito realista. A mamãe é boa com fantasias.
Na aula de orientação todos conversamos sobre nossas
fantasias de Halloween. Charlotte
vai ser Hermione, de Harry Potter. Jack, um lobisomem.
Julian ia se vestir de Jango Fett, o
que era uma coincidência estranha. Acho que ele não gostou
de saber que eu ia me fantasiar de
Boba Fett.
Na manhã do Halloween, por algum motivo a Via teve um grande
acesso de choro. Ela
costumava ser muito calma e controlada, mas esse ano tem
tido algumas explosões desse tipo.
O papai estava atrasado para o trabalho e ficou meio que
dizendo: “Via, vamos logo! Vamos
logo!”
Normalmente o papai é superpaciente, mas não quando pode se
atrasar para o trabalho, e
seus gritos só deixaram Via ainda mais estressada. Ela
começou a gritar mais alto, então a
mamãe disse ao papai que me levasse para a escola e que ela
cuidaria da Via. Mamãe me deu
um beijo de despedida rápido, antes mesmo de eu vestir a
fantasia, e desapareceu no quarto da
minha irmã.
— Auggie, vamos agora! — disse o papai. — Tenho uma reunião
e não posso me atrasar!
— Ainda não coloquei a fantasia!
— Então ponha logo. Cinco minutos. Espero você lá fora.
Corri para o meu quarto e comecei a vestir a roupa de Boba
Fett, mas de repente perdi a
vontade de usá-la. Não sei por quê — talvez porque tivesse
todos aqueles cintos e eu
precisasse de alguém que os ajustasse para mim. Ou talvez
porque ainda cheirasse um pouco a
tinta. Tudo o que sei é que daria muito trabalho vestir a
fantasia, o papai estava esperando e ia
ficar muito nervoso se eu o atrasasse. Então, no último
minuto, coloquei a máscara
ensanguentada do ano anterior. Era uma fantasia muito mais
fácil: só uma túnica preta
comprida e uma grande máscara branca. Gritei tchau da porta
quando saí, mas a mamãe nem
me ouviu.
— Achei que você ia de Jango Fett — disse o papai quando me
viu do lado de fora.
— Boba Fett!
— Tanto faz. Essa fantasia é melhor, de qualquer forma.
— É, é legal — respondi.
A máscara ensanguentada
Preciso dizer que, naquela manhã, andar pelos corredores a
caminho dos armários foi incrível.
Tudo estava diferente. Eu estava diferente. Normalmente eu
andava de cabeça baixa, tentando
não ser visto, mas nesse dia andei de cabeça erguida,
olhando em volta. Queria ser visto. Um
aluno usando uma fantasia igual à minha, uma grande máscara
branca de um crânio gritando,
suja de sangue falso, trocou um high-five comigo quando nos
cruzamos na escada. Não tenho
ideia de quem era, nem ele que era eu por baixo da máscara.
Perguntei-me por um segundo se
ele teria feito aquilo se soubesse.
Eu estava começando a pensar que aquele seria um dos dias
mais incríveis da minha vida,
mas então cheguei à sala de aula. A primeira fantasia que vi
assim que entrei foi um Darth
Sidious. Tinha uma daquelas máscaras de borracha
super-realistas, com um grande capuz
preto na cabeça e uma túnica preta e comprida. Soube na hora
que era o Julian, é claro. Devia
ter mudado a fantasia no último minuto porque achava que eu
fosse de Boba Fett. Ele estava
conversando com duas múmias, que deviam ser Miles e Henry, e
todos meio que olhavam para
a porta, como se esperassem alguém entrar. Eu sabia que não
era uma máscara ensanguentada
que eles estavam esperando. Era o Boba Fett.
Eu já ia me sentar na carteira de sempre, mas, por algum
motivo, não sei qual, me peguei
andando até um assento perto deles e consegui ouvir o que
diziam.
— Parece mesmo ele — falou uma das múmias.
— Ainda mais essa parte... — respondeu a voz de Julian.
Ele pôs os dedos nas bochechas e nos olhos da máscara de
Darth Sidious.
— Na verdade — disse a múmia — o que ele lembra mesmo é uma
daquelas cabeças
encolhidas. Já viram? É igualzinho.
— Acho que ele parece um ogro.
— É!
— Se eu fosse daquele jeito — disse o Julian, meio rindo —,
juro por Deus, eu ia colocar
um capuz na minha cara todos os dias.
— Pensei muito sobre isso — falou a segunda múmia, séria — e
acho que, se eu fosse como
ele... sem brincadeira, acho que ia me matar.
— Não ia nada — retrucou Darth Sidious.
— Sério, de verdade — insistiu a mesma múmia. — Não consigo
nem imaginar me olhar no
espelho todo dia e me ver daquele jeito. Seria ruim demais.
E todo mundo me encarando o
tempo todo...
— Então por que você fica tanto tempo com ele? — perguntou
Darth Sidious.
— Não sei — respondeu a múmia. — O Buzanfa me pediu para
andar com ele no início do
ano e deve ter orientado todos os professores a nos colocar
juntos nas aulas ou algo assim. —
A múmia encolheu os ombros.
Claro que reconheci o gesto. Reconheci a voz. Tive vontade
de sair correndo da sala na
mesma hora, mas fiquei onde estava e ouvi o Jack Will
terminar sua fala:
— Quer dizer, o problema é que ele me segue por todo lado. O
que eu vou fazer?
— Dê o fora nele — sugeriu Julian.
Não sei o que Jack respondeu porque saí da sala sem que
ninguém percebesse que eu tinha
estado ali. Meu rosto parecia estar em chamas enquanto eu
descia as escadas. Estava suando
por baixo da fantasia. E comecei a chorar. Não pude evitar.
As lágrimas eram tão grandes que
eu quase não conseguia enxergar, mas não dava para secá-las
por causa da máscara. Estava
procurando um espacinho onde eu pudesse desaparecer. Queria
poder cair em um buraco: um
pequeno buraco negro que me engolisse.
Apelidos
Garoto rato. Estranho. Monstro. Freddy Krueger. E.T. Cara de
lagarto. Mutante. Conheço os
apelidos que me dão. Já estive em parquinhos suficientes
para saber que crianças podem ser
cruéis. Eu sei, eu sei, eu sei.
Acabei no banheiro do segundo andar. Não havia ninguém lá,
porque o primeiro tempo já
tinha começado e todos estavam nas salas de aula. Tranquei a
porta da cabine, tirei a máscara
e chorei por nem sei quanto tempo. Depois fui para a enfermaria
e falei que estava com dor de
estômago, o que era verdade, porque parecia que alguém tinha
arrancado minhas entranhas. A
enfermeira Molly ligou para a minha mãe e me deixou deitado
no sofá ao lado de sua mesa.
Quinze minutos depois, a mamãe estava na enfermaria.
— Docinho — falou, chegando perto para me abraçar.
— Oi — murmurei.
Não queria que ela perguntasse nada até que aquilo passasse.
— Está com dor de estômago? — disse ela, automaticamente
pondo a mão na minha testa
para checar a temperatura.
— Ele disse que estava com vontade de vomitar — contou a
enfermeira Molly, olhando
para mim de um jeito muito gentil.
— E estou com dor de cabeça também — sussurrei.
— Será que foi algo que comeu? — indagou minha mãe,
preocupada.
— Tem um surto de gastroenterite por aí — disse a
enfermeira.
— Que droga. — Mamãe balançou a cabeça e arqueou as
sobrancelhas. Ela me ajudou a
ficar de pé. — Quer que eu chame um táxi ou acha que
consegue andar até em casa?
— Consigo andar.
— Que menino corajoso! — disse a enfermeira, dando tapinhas
nas minhas costas enquanto
nos acompanhava até a porta. — Se ele começar a vomitar ou
tiver febre, você deve chamar
um médico.
— Com certeza — falou a mamãe, apertando a mão da
enfermeira. — Muito obrigada por
tomar conta dele.
— Foi um prazer — respondeu a Molly, pondo a mão debaixo do
meu queixo e levantando
meu rosto. — Cuide-se, tá?
Assenti e murmurei:
— Obrigado.
Mamãe e eu percorremos todo o caminho até em casa abraçados.
Não lhe disse nada sobre o
que havia acontecido e, mais tarde, quando ela me perguntou
se eu estava bem para ir à rua
pegar doces, falei que não. Ela ficou preocupada, pois sabia
que eu adorava fazer isso. Eu a
ouvi dizer ao papai pelo telefone:
— ...Ele não tem ânimo nem para ir pegar doces... Não, não
teve febre... Bem, farei isso se
ele não se sentir melhor amanhã... Eu sei, coitadinho...
Imagine só, perder o Halloween.
Escapei de ir à escola no dia seguinte também, que era uma
sexta-feira, então tive o fim de
semana inteiro para pensar naquilo tudo. Eu tinha certeza de
que nunca mais voltaria à escola.
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