RACHEL
TERÇA-FEIRA, 23 DE JULHO DE 2013
MANHÃ
Demora algum tempo até eu entender exatamente o que estou
sentindo quando acordo.
É uma espécie de êxtase misturado com mais alguma coisa: um
medo sem nome. Sei que
estamos perto de descobrir a verdade. Só não consigo deixar
de pensar que a verdade vai
ser alguma coisa terrível.
Eu me sento na cama e ligo o laptop, esperando impaciente que
ele acabe de
inicializar, então entro na internet. O processo inteiro
parece interminável. Ouço Cathy
andando pela casa, lavando a louça do café, subindo para
escovar os dentes. Ela se
demora alguns instantes em frente à minha porta. Imagino seu
punho erguido, prestes a
bater. Ela pensa melhor e desce de novo.
A página da BBC se abre. A manchete principal fala de cortes
nos benefícios, e a
seguinte é sobre mais um astro dos anos 1970 acusado de
conduta sexual inapropriada.
Nada sobre Megan; nada sobre Kamal. Sinto uma grande
frustração. Sei que a polícia
tem 24 horas para indiciar um suspeito, e esse período já
deve ter acabado. Mas sei que,
em algumas circunstâncias, eles detêm a pessoa por 12 horas
além disso.
Sei de tudo isso porque pesquisei a respeito ontem. Depois
que fui expulsa da casa de
Scott, voltei para cá, liguei a televisão e passei a maior
parte do dia assistindo ao
noticiário, lendo artigos on-line. Esperando.
Por volta do meio-dia, a polícia divulgou o nome do
suspeito. O noticiário informou
que a polícia comentou sobre “provas descobertas na casa e
no carro do Dr. Abdic”, mas
não disseram o quê. Talvez sangue? O celular dela, que até
agora não apareceu? Roupas,
uma bolsa, sua escova de dente? Não paravam de mostrar fotos
de Kamal, closes de seu
rosto moreno e bonito. Não estão usando a foto de quando ele
foi preso, mas uma foto
espontânea: ele de férias em algum lugar, não exatamente
sorrindo, mas quase. Parece
tranquilo demais e bonito demais para ser um assassino, mas
as aparências enganam —
dizem que Ted Bundy se parecia com Cary Grant.
Esperei o dia todo por outras notícias, pela divulgação das
acusações: sequestro,
agressão ou coisa pior. Fiquei aguardando para ouvir onde
ela está, onde ele a estava
escondendo. Mostraram imagens da Blenheim Road, da estação,
da porta da casa de
Scott. Os comentaristas falaram das prováveis implicações do
fato de o celular de Megan,
assim como seus cartões, não terem sido utilizados nem uma
vez há mais de uma semana.
Tom me ligou mais de uma vez. Não atendi. Sei o que ele
quer. Quer me perguntar o
que eu estava fazendo na casa de Scott Hipwell ontem de
manhã. Ele que quebre a
cabeça. Não tem nada a ver com ele. Nem tudo tem a ver com
ele. De qualquer forma,
imagino que esteja ligando porque Anna pediu. E não devo
nenhuma explicação a ela.
Esperei e esperei, e nada de a acusação formal ser
divulgada: em vez disso, ficávamos
sabendo mais detalhes sobre Kamal, o respeitado psicólogo
que ouvia os segredos e
problemas de Megan, que conquistou sua confiança e depois
abusou dela, seduzindo-a e
sabe-se lá o que mais.
Fico sabendo que ele é muçulmano, bósnio, um sobrevivente do
conflito nos Bálcãs,
que ingressou na Grã-Bretanha como refugiado aos 15 anos. A
violência lhe é familiar:
perdeu o pai e dois irmãos mais velhos em Srebrenica. Já foi
condenado por violência
doméstica. Quanto mais ouvia detalhes sobre Kamal, mais
sabia que eu tinha feito a coisa
certa: ter contado à polícia sobre ele, ter falado dele com
Scott.
Eu me levanto, visto o robe, desço às pressas e ligo a TV.
Não tenho a menor intenção
de ir a lugar nenhum hoje. Se Cathy vier de repente para
casa, vou dizer que estou
doente. Preparo uma caneca de café, me sento em frente à
televisão, e espero.
NOITE
Fiquei entediada lá pelas três horas. Fiquei entediada de
tanto ouvir falar em benefícios
previdenciários e atores dos anos 1970 acusados de
pedofilia, fiquei frustrada com a falta
de notícias sobre Megan, sobre Kamal, então fui até a loja
de bebidas e comprei duas
garrafas de vinho branco.
Estou quase no fim da primeira garrafa quando acontece. Há
outra matéria no
noticiário agora, imagens trêmulas de um prédio
semiconstruído (ou semidestruído), com
explosões a distância. Síria, Egito, talvez Sudão? O volume
está baixo, não estou
prestando muita atenção. É nesse momento que vejo: a tarja
com informações que
deslizam na base da tela me informa que o governo enfrenta
objeções aos cortes à
assistência jurídica gratuita, que Fernando Torres vai ficar
sem jogar até quatro semanas
por causa de uma luxação na perna e que o suspeito no caso
Megan Hipwell foi solto sem
ser indiciado.
Coloco minha taça na mesa e pego o controle remoto,
pressionando o botão do
volume para aumentar, aumentar e aumentar. Não pode ser. A
matéria sobre a guerra
prossegue, não acaba nunca, e a cada segundo minha pressão
aumenta, mas, por fim, a
notícia termina e eles voltam ao estúdio, onde a
apresentadora diz:
Kamal Abdic, o homem preso ontem pela suposta ligação com o
desaparecimento de Megan Hipwell, foi liberado sem ser
indiciado.
Abdic, que era terapeuta da Sra. Hipwell, foi detido ontem,
mas
libertado hoje de manhã pois a polícia alega não haver
provas
suficientes para indiciá-lo.
Não escuto o que ela diz depois disso. Só fico ali sentada,
a visão embaçada, nos
ouvidos um som de ondas revoltas, e pensando: Eles pegaram o
cara. Pegaram e então o
deixaram ir.
■ ■ ■
Mais tarde, lá em cima. Eu havia bebido além da conta, não
consigo mais ver direito a
tela do laptop, vejo tudo em dobro, triplicado. Consigo ler
se tapar um dos olhos com a
mão. Isso me dá dor de cabeça. Cathy está em casa, me chamou
e respondi que estava me
sentindo mal, que estava de cama. Ela sabe que andei
bebendo.
Meu estômago está cheio de álcool. Estou enjoada. Não
consigo pensar direito. Não
devia ter começado a beber tão cedo. Não devia ter começado
a beber e ponto. Faz uma
hora que liguei para Scott, e liguei de novo agora há pouco.
Também não devia ter feito
isso. Só quero saber que mentiras Kamal lhes contou. Em que
mentiras eles foram tão
ingênuos para acreditar? A polícia conseguiu meter os pés
pelas mãos. Idiotas. Aquela tal
de Riley, a culpa deve ser dela. Tenho certeza.
Os jornais não ajudam. Pelo que dizem, a condenação por
violência doméstica não
existia. Foi um engano. Estão fazendo com que ele pareça a
vítima.
Não quero mais beber. Sei que deveria despejar o resto da
bebida na pia, porque
senão ela vai estar ali de manhã e eu vou levantar e beber
assim que a vir, e, quando
começar, não vou parar mais. Eu deveria despejá-la na pia,
mas sei que não vou fazer
isso. Pelo menos assim tenho algo pelo que ansiar amanhã.
Está escuro, e ouço alguém chamando o nome dela. Uma voz,
primeiro baixa, depois
mais alta. Irada, desesperada, chamando por Megan. É a voz
de Scott — está chateado
com ela. Ele a chama sem parar. É um sonho, acho. Fico
tentando reter aquela voz na
cabeça, segurá-la, mas, quanto mais me esforço, mas fraca e
mais distante ela fica.
QUARTA-FEIRA, 24 DE JULHO DE 2013
MANHÃ
Uma suave batida à porta me desperta. A chuva tamborila no
vidro da janela; já passa
das oito, mas ainda parece estar escuro lá fora. Cathy
empurra a porta, abre-a devagar e
espia o interior do quarto.
— Rachel? Você está bem? — Ela avista a garrafa ao lado da
minha cama e faz cara
de desânimo. — Ai, Rachel.
Ela se aproxima da cama e pega a garrafa. Estou tão
envergonhada que não digo
nada.
— Você não vai trabalhar? — pergunta ela. — Você foi ontem?
Ela não me espera responder. Simplesmente se vira para ir
embora, mas, antes de sair,
acrescenta:
— Se continuar assim, você vai acabar demitida.
Eu deveria contar agora, pois ela já está aborrecida comigo.
Deveria ir atrás dela e
contar: fui despedida há meses por aparecer totalmente
bêbada no escritório após um
almoço de três horas com um cliente, durante o qual consegui
a proeza de ser tão
grosseira e tão pouco profissional que ele até cortou
relações com a nossa empresa.
Quando fecho os olhos, ainda me lembro do desfecho daquele
almoço, da expressão da
garçonete ao me entregar o paletó do meu terninho, de entrar
no escritório trocando as
pernas, do pessoal se virando para me olhar. De Martin Miles
me puxando de lado: Acho
melhor você ir para casa agora, Rachel.
Um trovão estala, um clarão eclode. Eu me sento. No que eu
estava pensando ontem
à noite, mesmo? Olho em meu caderninho preto, mas não
escrevi mais nada nele desde
ontem ao meio-dia: anotações sobre Kamal — idade, etnia,
condenação por violência
doméstica. Pego uma caneta e risco esse último item.
Lá embaixo, faço meu café e ligo a TV. A polícia convocou
uma coletiva de imprensa
ontem à noite, e estão mostrando trechos dela no Sky News.
Lá está o detetive-inspetor
Gaskill, pálido, olhos fundos, a aparência péssima.
Derrotado. Ele nem faz menção ao
nome de Kamal, só diz que um suspeito chegou a ser detido e
interrogado, mas foi
liberado sem ser indiciado e que as investigações continuam.
As câmeras passam dele
para Scott, sentado de forma desajeitada, curvado, piscando
muito por causa da luz das
câmeras, o rosto marcado pela angústia. Dói o coração vê-lo
assim. Ele fala baixo, os
olhos mirando o chão. Diz não ter perdido as esperanças, e
que, não importa o que a
polícia diz, ainda alimenta a esperança de que logo Megan
voltará para casa.
Parecem palavras vazias, soam falsas, mas, sem olhar nos
olhos dele, não consigo
descobrir por quê. Não consigo descobrir se ele não acredita
que ela voltará para casa
porque toda a sua fé lhe foi arrancada pelos acontecimentos
dos últimos dias, ou porque
sabe que ela nunca mais vai voltar.
É aí que ela vem: a lembrança de ter ligado para o número
dele ontem. Uma, duas
vezes? Corro escada acima para pegar meu celular, e o
encontro entre os lençóis. Há três
ligações perdidas: uma de Tom e duas de Scott. Nenhuma
mensagem. A ligação de Tom
foi ontem à noite, assim como a primeira de Scott, só que
mais tarde, perto da meia-noite.
A segunda chamada dele foi hoje de manhã, há apenas alguns
minutos.
Meu coração se alegra um pouco. É um bom indício. Apesar do
que a mãe dele fez,
apesar do que obviamente se podia ler nas entrelinhas (Muito
obrigada pela ajuda, agora
dê o fora!), Scott ainda quer falar comigo. Ele precisa de
mim. De repente, sinto uma
enorme afeição por Cathy, grata por ela ter jogado fora o
resto do vinho. Preciso manter
a mente alerta, por Scott. Ele precisa de mim sóbria.
Tomo um banho, me visto, preparo mais uma xícara de café, me
sento na sala de estar,
o caderninho preto ao meu lado, e ligo para o celular de
Scott.
— Você deveria ter me dito — diz ele assim que atende — o
que você é. — Seu tom é
frio, sério. Meu estômago se contrai e endurece. Ele sabe. —
A detetive Riley falou
comigo depois que o soltaram. Ele negou ter tido um caso com
ela. E a testemunha que
sugeriu haver alguma coisa entre eles não era confiável,
segundo ela. Uma alcoólatra.
Mentalmente instável, talvez. Ela não me disse o nome da
testemunha, mas imagino que
estivesse falando de você?
— Mas... não — digo. — Não. Eu não sou... Eu não tinha
bebido quando vi os dois.
Eram oito e meia da manhã. — Como se isso quisesse dizer
alguma coisa. — E
encontraram provas, deu no jornal. Encontraram...
— Provas insuficientes.
E a linha fica muda.
SEXTA-FEIRA, 26 DE JULHO DE 2013
MANHÃ
Não estou mais indo todo dia para meu emprego imaginário.
Desisti da encenação. Mal
consigo sair da cama. Acho que a última vez que escovei os
dentes foi na quarta-feira.
Continuo fingindo que estou doente, embora tenha certeza de
não estar conseguindo
enganar ninguém.
Não tenho coragem de me levantar, de me vestir, de entrar no
trem, de ir até Londres
e de perambular pela rua. Já é ruim o bastante quando está
sol, mas nessa chuva é
impossível. Hoje é o terceiro dia de aguaceiro congelante,
torrencial, sem trégua.
Minhas noites de sono têm sido difíceis, e agora não é mais
só a questão da bebida, são
os pesadelos. Estou presa em algum lugar, e sei que tem
alguém se aproximando, e que
há um jeito de sair dali, sei que há, sei que já vi a saída
antes, mas não encontro um meio
de voltar para lá, e, quando ele me pega, não consigo
gritar. Eu tento — encho o pulmão
de ar e forço a saída dele pela boca —, mas o som não sai,
só um arfar, como uma pessoa à
beira da morte lutando para respirar.
Às vezes, nos meus pesadelos, me vejo na passagem
subterrânea da Blenheim Road, o
caminho de volta está bloqueado e não consigo seguir adiante
porque há algo ali, alguém
à espera, e acordo totalmente apavorada.
Eles nunca vão encontrá-la. A cada dia, a cada hora que
passa, estou mais certa disso.
Ela vai ser um daqueles nomes, a história dela vai ser uma
daquelas notícias: perdida,
desaparecida, corpo jamais encontrado. E Scott não terá
justiça, nem paz. Ele nunca terá
um corpo para velar; nunca vai saber o que aconteceu com
ela. Não haverá desfecho,
solução. Fico acordada pensando nisso e sofro. Não pode
haver agonia maior, nada pode
ser mais doloroso que a dúvida, que não terá fim.
Escrevi para ele. Admiti meu problema, então menti de novo,
dizendo que agora
estava tudo sob controle, que eu estava buscando ajuda
profissional. Afirmei que não sou
mentalmente instável. Nem sei mais se isso é verdade ou não.
Falei que tinha total
certeza do que vira, e que não havia bebido quando
presenciei a cena. Isso, pelo menos, é
verdade. Ele não respondeu. Imaginei que não fosse
responder. Fui cortada da vida dele,
silenciada. As coisas que tenho vontade de dizer a ele,
jamais vou poder dizer. Não posso
escrevê-las, não saem como eu gostaria. Quero que ele saiba
que sinto muito mesmo por
não ter sido suficiente levar a polícia até Kamal, e dizer:
Vejam, aqui está ele. Eu devia ter
visto alguma coisa. Naquele sábado à noite, eu devia ter
ficado de olhos bem abertos.
NOITE
Estou totalmente encharcada, congelando de frio, as pontas
dos dedos pálidas e
enrugadas, a cabeça latejando por causa de uma ressaca que
começou por volta das cinco
e meia. O que faz sentido, levando em conta que comecei a
beber por volta do meio-dia.
Saí para comprar outra garrafa, mas meus planos foram
frustrados pelo caixa automático,
que me deu a resposta que já era de se esperar: Saldo
insuficiente.
Depois disso, comecei a andar. Andei sem rumo por mais de
uma hora sob chuva
forte. As ruas para pedestres do centro de Ashbury eram só
minhas. Decidi, em algum
momento dessa caminhada, que precisava fazer alguma coisa.
Preciso compensar a minha
insuficiência.
Agora, ensopada e quase sóbria, vou ligar para Tom. Não
quero saber o que fiz, o que
eu disse, naquele sábado à noite, mas preciso descobrir.
Isso pode despertar alguma
lembrança. Por algum motivo, tenho certeza de que está
faltando alguma peça, algo
vital. Talvez seja só mais autoengano, eu tentando me
convencer mais uma vez de que
tenho algum valor, por menor que seja. Mas talvez haja um
fundo de verdade.
— Estou tentando falar com você desde segunda — diz Tom
assim que atende o
telefone. — Liguei para o seu trabalho — acrescenta, e deixa
a frase no ar.
Já estou na defensiva, constrangida, envergonhada.
— Preciso conversar com você — digo —, sobre sábado à noite.
Aquele sábado à
noite.
— Do que você está falando? Sou eu quem precisa conversar
com você sobre segunda-feira,
Rachel. Que diabos você estava fazendo na casa de Scott
Hipwell?
— Isso não é importante, Tom...
— É importante, sim senhora. O que estava fazendo lá? Você
entende, não entende,
que ele pode ser... quer dizer, nós não sabemos, não é? Ele
pode ter feito alguma coisa
com ela. Não pode? Com a mulher dele.
— Ele não fez nada com a mulher dele — digo, confiante. —
Não foi ele.
— Como raios você sabe disso? Rachel, o que está havendo?
— É que eu... Você vai ter que acreditar em mim. Não foi por
isso que eu liguei.
Precisava falar com você sobre aquele sábado. Sobre a
mensagem que você deixou na
minha caixa postal. Você estava tão revoltado. Disse que eu
tinha assustado a Anna.
— E a assustou. Ela viu você trocando as pernas pela rua, e
você a xingou aos gritos.
Ela ficou morta de medo, depois do que aconteceu da última
vez. Com Evie.
— Ela... ela fez alguma coisa?
— Alguma coisa?
— Contra mim?
— O quê?
— Eu tinha um corte, Tom. Na cabeça. Eu estava sangrando.
— Você está acusando a Anna de alguma coisa? — Ele está gritando
agora, furioso.
— Sério, Rachel. Já chega! Eu convenci a Anna, várias vezes,
a não denunciar você para
a polícia, mas se continuar assim, nos perturbando e
inventando histórias...
— Não estou acusando a Anna de nada, Tom. Só estou tentando
entender o que
aconteceu. Eu não...
— Você não se lembra! É claro que não. A Rachel não se
lembra. — Ele suspira,
cansado. — Olha, a Anna viu você. Bêbada e gritando. Ela
entrou em casa para me
contar isso, estava chateada, então saí à sua procura. Você
estava na rua. Talvez tenha
escorregado e caído. Você estava muito alterada. Tinha
cortado a mão.
— Não...
— Bem, então tinha sangue na mão. Não sei como foi parar lá.
Eu disse que ia levá-la
em casa, mas você não me deu atenção. Estava descontrolada,
dizendo coisas sem
sentido. Você saiu andando e eu fui pegar o carro, mas,
quando voltei, você tinha sumido.
Fui até depois da estação, mas não consegui achar você.
Então continuei dirigindo; a
Anna temia que você estivesse fazendo hora em algum lugar,
para depois voltar e tentar
entrar na casa. Eu temia que você fosse cair, ou se meter em
alguma encrenca... dirigi até
Ashbury. Toquei a campainha, mas você não estava em casa.
Liguei algumas vezes.
Deixei mensagem. E, sim, eu estava com raiva. Estava puto da
vida.
— Perdão, Tom — eu digo. — Eu sinto muito.
— Eu sei — ele fala. — Você sempre sente muito.
— Você disse que eu gritei coisas para a Anna — falo, me
encolhendo só de pensar.
— O que eu falei para ela?
— Não sei — responde ele. — Quer que eu a chame? Talvez você
queira bater um
papo com ela sobre isso?
— Tom...
— Bem, honestamente... isso importa agora?
— Você viu Megan Hipwell naquela noite?
— Não. — Ele parece preocupado agora. — Por quê? Você a viu?
Você não fez
alguma coisa com ela, fez?
— Não, claro que não.
Ele fica em silêncio por alguns instantes.
— Bem, então por que está me perguntando isso? Rachel, se
você sabe de alguma
coisa...
— Não sei de nada — digo. — Não vi nada.
— Por que você estava na casa dos Hipwells na segunda-feira?
Conte para mim, por
favor, para eu acalmar a Anna. Ela está preocupada.
— Queria contar uma coisa para ele. Achei que podia ser
relevante.
— Você não a viu, mas tinha algo relevante para contar?
Hesito por um momento. Não sei o quanto devo revelar, se não
devia guardar isso só
para o Scott.
— É sobre a Megan — digo. — Ela estava tendo um caso.
— Espere aí. Você a conhecia?
— Um pouco.
— Como?
— Da galeria dela.
— Ah — faz ele. — Então quem é o sujeito?
— O terapeuta dela — confidencio. — Kamal Abdic. Vi os dois
juntos.
— É mesmo? O sujeito que prenderam? Pensei que tivessem
soltado o cara.
— Eles soltaram. E a culpa é minha, porque sou uma
testemunha pouco confiável.
Tom dá uma risada. Suave, amigável, não está debochando de
mim.
— Qual é, Rachel. Você fez certo em contar o que sabia.
Tenho certeza de que não é
só por sua causa. — Ouço uma criança balbuciando ao fundo, e
Tom fala alguma coisa
longe do bocal do telefone, algo que não consigo ouvir. —
Tenho que desligar — diz ele.
Eu o imagino desligando o telefone, pegando sua menina no
colo, beijando-a,
abraçando a esposa. A adaga cravada em meu coração é
retorcida, e retorcida, e
retorcida.
SEGUNDA-FEIRA, 29 DE JULHO DE 2013
MANHÃ
São 8h07 e estou no vagão. De volta ao emprego imaginário.
Cathy passou o fim de
semana todo com Damien, e, quando a vi ontem à noite, não
lhe dei a chance de me
repreender. Comecei a me desculpar pelo meu comportamento
logo de cara, dizendo que
andava me sentindo muito deprimida, mas que estava
organizando a vida, virando a
página. Ela aceitou, ou fingiu aceitar, minhas desculpas.
Então me deu um abraço.
Chamá-la de boazinha é pouco.
Megan sumiu quase que completamente do noticiário. Saiu um
editorial no Sunday
Times sobre incompetência policial que mencionava brevemente
o caso, uma fonte da
Promotoria Pública o citou como “um entre muitos casos em
que a polícia se apressou em
prender suspeitos com base em provas insuficientes ou
equivocadas”.
Estamos chegando ao sinal. Sinto o solavanco e a freada de
sempre, o trem desacelera
e eu ergo o olhar, porque tenho de olhar, porque não aguento
não olhar, mas não há nada
a ser visto, não mais. As portas estão fechadas e as
cortinas também. Não há nada para
ver além de chuva, a cântaros, e poças de lama espalhadas
pelo jardim.
Num impulso, resolvo saltar do trem em Witney. Tom não foi
de grande ajuda, mas
talvez o outro homem seja — o ruivo. Espero os passageiros
que saltaram comigo
desaparecerem escada abaixo e então sento no único banco
coberto da plataforma.
Talvez eu dê sorte. Talvez eu o veja embarcando no trem. Eu
poderia segui-lo, eu
poderia falar com ele. É a única coisa que me resta, minha
última chance nos dados. Se
não funcionar, vou ter de deixar para lá. Vou ser obrigada a
deixar para lá.
Meia hora se vai. Toda vez que ouço passos na escada, meu
coração bate mais rápido.
Toda vez que ouço o ruído de sapatos de salto alto, meu
corpo inteiro treme. Se Anna me
vir aqui, posso acabar me metendo em encrenca. Tom me
alertou. Ele a convenceu a não
envolver a polícia nisso, mas se eu continuasse...
São 9h15. A menos que ele costume chegar ao trabalho bem
tarde, nós nos
desencontramos. Está chovendo mais forte agora, e não vou
aguentar mais um dia sem
ter o que fazer em Londres. O único dinheiro que me resta é
uma nota de 10 que peguei
emprestada com Cathy, e preciso fazer isso render até ter
coragem de pedir um
empréstimo à minha mãe. Desço a escada, com a intenção de
andar até a plataforma
oposta para voltar a Ashbury, quando, de repente, vejo Scott
saindo apressado da banca
em frente à entrada da estação, a gola do casaco levantada
para proteger o rosto.
Corro atrás dele e o alcanço na esquina, bem em frente à
passagem subterrânea.
Agarro seu braço e ele se vira, surpreso.
— Por favor — digo. — Posso falar com você?
— Meu Deus! — rosna ele. — O que diabos você quer?
Eu me afasto dele, erguendo as mãos.
— Foi mal — digo. — Foi mal. Eu só queria me desculpar, me
explicar...
A chuva intensa tinha se convertido em dilúvio. Nós somos os
únicos seres vivos na
rua, ambos encharcados até o último fio de cabelo. Scott
começa a rir. Joga as mãos para
o alto e dá uma gargalhada.
— Venha para a minha casa — convida ele. — Aqui vamos acabar
nos afogando.
Scott sobe para pegar uma toalha para mim enquanto a água
ferve na chaleira elétrica.
A casa está menos arrumada que há uma semana, o cheiro de
desinfetante substituído por
algo mais terroso. Há uma pilha de jornais no canto da sala;
canecas sujas foram deixadas
sobre a mesinha de centro e sobre a lareira.
Scott aparece do meu lado e me oferece a toalha:
— Está um chiqueiro, eu sei. Minha mãe estava me tirando do
sério, limpando,
arrumando tudo o tempo todo. A gente meio que teve uma
briga. Ela não vem aqui faz
alguns dias. — Seu celular começa a tocar, ele olha a tela e
o devolve ao bolso. —
Falando no diabo... ela não para.
Eu o sigo até a cozinha.
— Sinto muito pelo que aconteceu — digo.
Ele dá de ombros:
— Eu sei. A culpa não é sua, de qualquer modo. Quer dizer,
poderia ter ajudado se
você não fosse...
— Se eu não fosse uma bêbada?
Ele está de costas para mim, servindo o café:
— Bem, é. Mas eles não tinham o bastante para indiciá-lo por
nada, de qualquer
forma. — Ele me entrega a caneca e nós nos sentamos à mesa.
Percebo que um dos
porta-retratos foi virado para baixo. Scott continua
falando. — Encontraram algumas
evidências na casa dele, como cabelo, células epiteliais,
mas ele não nega que ela tenha
ido lá. Bem, no início negou, mas depois admitiu que ela
esteve lá.
— Por que mentiu?
— Exatamente. Ele admitiu que ela esteve duas vezes na casa
dele, só para conversar.
Não disse sobre o quê... por causa do sigilo profissional. O
cabelo e as células epiteliais
foram encontrados no andar de baixo. Nada em cima, no
quarto. Ele jura de pé junto que
não estavam tendo um caso. Mas ele mentiu antes, então... —
Ele passa a mão pelo rosto,
que parece estar encovado, os ombros curvados. Parece ter
encolhido. — Acharam
vestígios de sangue no carro dele.
— Ai, meu Deus.
— É. E do mesmo tipo sanguíneo dela. Não sabem se vão
conseguir fazer teste de
DNA porque a amostra é ínfima. Pode não ser nada, é o que
ficam dizendo. Como pode
não ser nada, o sangue dela no carro dele? — Ele balança a
cabeça. — Você estava certa.
Quanto mais coisa ouço sobre esse sujeito, mais me convenço.
— Ele olha para mim, bem
nos meus olhos, pela primeira vez desde que chegamos. — Ele
estava trepando com ela,
ela queria terminar o caso, e então ele... fez alguma coisa.
Foi isso. Tenho certeza.
Ele perdeu a esperança, e eu não o culpo. Faz mais de duas
semanas e ela ainda não
ligou o celular, não usou o cartão de crédito, não sacou
dinheiro de um caixa eletrônico.
Ninguém a viu. Ela já era.
— Ele disse à polícia que ela pode ter fugido — diz Scott.
— Abdic falou isso?
Scott fez que sim.
— Disse à polícia que ela não era feliz comigo e que pode
ter fugido.
— Ele está tentando tirar o dele da reta, fazer com que
suspeitem de você.
— Eu sei. Mas eles parecem acreditar em tudo o que o desgraçado
diz. Aquela Riley,
dá para ver quando fala do sujeito. Ela gosta dele. O pobre
refugiado oprimido. — Ele
abaixa a cabeça, abatido. — Talvez Abdic tenha razão. Nós
tivemos aquela briga
horrível. Mas eu não acredito... Ela não era infeliz comigo.
Não era. Não era. — Quando
ele diz aquilo pela terceira vez, fico me perguntando se
está tentando se convencer. —
Mas se ela estava tendo um caso, é porque devia estar
infeliz, né?
— Não necessariamente — falo. — Talvez seja uma daquelas
coisas de... como é que
se chama mesmo? Transferência. É assim que chamam, né?
Quando um paciente começa
a ter sentimentos, ou acha que está sentindo alguma coisa,
pelo terapeuta. Mas o
terapeuta precisa resistir, esclarecer que os sentimentos
não são verdadeiros.
Os olhos dele fitam meu rosto, mas acho que não está ouvindo
o que estou dizendo.
— O que aconteceu? — pergunta. — Com você. Largou seu
marido. Conheceu outra
pessoa?
Faço que não com a cabeça.
— O contrário. A Anna aconteceu.
— Sinto muito.
Ele fica calado por alguns instantes. Sei o que está para
perguntar, então, antes que
pergunte, eu falo:
— Começou antes. Quando ainda estávamos casados. A bebida.
Era isso que você ia
perguntar, não era?
Ele faz de novo que sim.
— Estávamos tentando engravidar — confesso, e minha voz
começa a vacilar. Até
hoje, depois de tanto tempo, toda vez que falo nisso meus
olhos ficam marejados. —
Perdão.
— Tudo bem. — Ele se levanta, vai até a pia e enche um copo
de água. Ele o coloca à
minha frente, na mesa.
Eu pigarreio, tentando ser tão objetiva quanto possível.
— Estávamos tentando engravidar e nada aconteceu. Fiquei
muito deprimida e
comecei a beber. Acabei me tornando uma pessoa muito difícil
de conviver e Tom buscou
consolo em outro lugar. E ela não hesitou nem um pouco em
dar o que ele queria.
— Sinto muitíssimo. Que coisa horrível. Eu sei... Eu queria
ter um filho. Megan só me
respondia que ainda não estava pronta. — Agora é ele quem
enxuga as lágrimas. — É
uma das coisas... pelas quais discutíamos às vezes.
— Era sobre isso que vocês estavam discutindo no dia em que
ela foi embora?
Ele suspira, empurra a cadeira para trás e fica de pé.
— Não — diz ele, virando de costas para mim. — O motivo foi
outro.
NOITE
Quando chego em casa, Cathy está à minha espera. Ela está na
cozinha, de pé, bebendo
um copo d’água de um jeito agressivo.
— Como foi o dia no escritório? — pergunta, comprimindo os
lábios. Ela sabe.
— Cathy...
— Damien tinha uma reunião perto de Euston hoje. Na saída,
ele deu de cara com
Martin Miles. Eles se conhecem da época em que Damien
trabalhava no Laing Fund
Management, lembra? Martin fazia o RP deles.
— Cathy...
Ela fez sinal de “pare” com a mão, bebeu mais um gole
d’água.
— Faz meses que você não trabalha mais lá! Meses! Você tem noção
de como isso me
faz sentir uma idiota? Como fez Damien se sentir um idiota?
Por favor, por favor, Rachel,
me diga que você arrumou um outro emprego e que simplesmente
se esqueceu de me
contar. Por favor, Rachel, me diga que você não tem fingido
ir todo santo dia para o
trabalho. Que você não tem mentido para mim, todos os dias,
esse tempo todo.
— Eu não sabia como contar...
— Você não sabia como contar? Que tal: “Cathy, fui demitida
porque cheguei bêbada
no trabalho”? Que tal assim? — Eu me encolho toda e sua
expressão se suaviza. — Foi
mal, mas, fala sério, Rachel. — Ela é mesmo muito boazinha.
— O que você tem feito?
Aonde tem ido? O que você fica fazendo o dia inteiro?
— Eu caminho. Vou à biblioteca. Às vezes...
— Você vai ao pub?
— Às vezes. Mas...
— Por que não me contou? — Ela se aproxima de mim e põe as
mãos nos meus
ombros. — Você devia ter me contado.
— Eu estava com vergonha — admito e começo a chorar.
É horrível, repugnante, mas começo a chorar de soluçar.
Choro sem parar, e a coitada
da Cathy me abraça, faz carinho na minha cabeça, diz que vou
ficar bem, que tudo vai
ficar bem. Eu me sinto péssima.
Eu me odeio agora quase mais do que antes.
Mais tarde, sentada no sofá com Cathy, bebendo chá, ela me
diz como vão ser as
coisas de agora em diante. Vou parar de beber, vou atualizar
meu currículo, vou entrar
em contato com Martin Miles e implorar por uma carta de
referência. Vou parar de jogar
dinheiro fora indo para Londres e voltando de lá em viagens
de trem sem propósito.
— Sério, Rachel, não sei como você foi capaz de manter essa
farsa por tanto tempo.
Dou de ombros.
— De manhã, embarco no trem das 8h04, e, na volta, pego o
das 17h56. É o meu
trem. É nele que viajo. É assim que as coisas são.
QUINTA-FEIRA, 1º DE AGOSTO DE 2013
MANHÃ
Algo está cobrindo meu rosto, não consigo respirar, estou
sufocando. À beira de recobrar
a consciência, estou sem fôlego, puxando ar com toda a
força, e meu peito dói. Eu me
sento na cama, os olhos arregalados, e vejo algo se mexendo
no canto do quarto, um
núcleo denso e negro que não para de crescer, e quase grito
— por fim, desperto
completamente e não há nada ali, mas estou sentada na cama e
minhas bochechas estão
banhadas em lágrimas.
Está quase amanhecendo, o céu lá fora está começando a se tingir
de cinza, e a chuva
dos últimos dias ainda bate na janela. Não vou dormir de
novo, não com o coração
martelando no meu peito a ponto de doer.
Acho, mas não tenho certeza, que há vinho lá embaixo. Não me
lembro de ter
terminado a segunda garrafa. Vai estar quente, porque não
posso deixá-la na geladeira;
se a deixar, Cathy joga fora. Ela quer tanto que eu saia
dessa, mas, até agora, as coisas
não têm corrido conforme ela planejou. Há um pequeno armário
no corredor onde fica o
medidor de gás. Se tiver sobrado algum vinho, é lá que o
terei escondido.
Eu me esgueiro até o patamar da escada e desço na penumbra.
Abro o pequeno
armário e tiro de lá a garrafa: está frustrantemente leve,
restando pouco mais de uma taça
lá dentro. Mas é melhor que nada. Ponho o vinho em uma
caneca (para o caso de Cathy
descer — posso fingir que é chá) e jogo a garrafa na lixeira
(escondendo-a sob uma
embalagem de leite e outra de batatas fritas). Na sala, ligo
a TV, tiro o som e me sento no
sofá.
Estou zapeando pelos canais — apenas programas infantis e
comerciais até que, com
um flash de reconhecimento, me vejo olhando para a Floresta
de Corly, que fica perto
daqui: dá para ver do trem. A Floresta de Corly sob chuva
forte, os campos entre a linha
de árvores e a ferrovia totalmente submersos.
Não sei por que demoro tanto para entender o que está
acontecendo. Por dez
segundos, quinze, vinte, fico vendo carros, fitas azuis e
brancas, e uma tenda branca ao
fundo, e minha respiração fica cada vez mais curta, até que
a prendo e simplesmente paro
de respirar.
É ela. Ela esteve na floresta o tempo todo, junto à
ferrovia, aqui perto. Passei todos os
dias em frente a esse lugar, de manhã e à noite, sem fazer a
menor ideia.
Na floresta. Imagino uma cova sob arbustos frondosos,
encoberta por uma camada
fina de terra. Imagino coisas piores, improváveis — seu
corpo pendendo de uma corda,
no coração da floresta, aonde ninguém vai.
Pode nem ser ela. Pode ser outra coisa.
Eu sei que não é outra coisa.
Agora surgiu um repórter na tela, cabelo preto lambido rente
à cabeça. Aumento o
volume e escuto o repórter informar o que eu já sei, o que
já sinto — que não era eu que
não conseguia respirar, mas Megan.
— Isso mesmo — diz ele, falando com alguém no estúdio, a mão
comprimindo um
dispositivo no ouvido. — A polícia acaba de confirmar que o
corpo de uma mulher foi
encontrado submerso na água da chuva que se acumulou num
campo da parte baixa da
Floresta de Corly, a menos de oito quilômetros da casa de
Megan Hipwell. A Sra.
Hipwell, como se sabe, desapareceu no início de julho, mais
precisamente no dia 13, e
nunca mais foi vista. A polícia diz que o corpo, descoberto
por pessoas que passeavam
com cães no início desta manhã, ainda precisa ser
identificado formalmente; mas eles
acreditam que seja de fato o corpo de Megan. O marido da
Sra. Hipwell já foi avisado.
Ele para de falar por alguns segundos. A âncora do jornal
está lhe fazendo alguma
pergunta, mas não consigo ouvir nada porque o sangue ruge em
meus ouvidos. Levo a
caneca à boca e bebo até a última gota.
O repórter está falando de novo.
— Sim, Kay, é exatamente isso. Parece que o corpo tinha sido
enterrado nessa
floresta, possivelmente há algum tempo, e foi desenterrado
pelas fortes chuvas que vêm
caindo nesses últimos dias.
É pior, bem pior do que eu tinha imaginado. Quase enxergo o
corpo dela, o rosto
decomposto na lama, os braços brancos expostos, buscando o
céu, buscando a luz, como
se estivesse cavando para se desenterrar da própria cova.
Sinto na boca o gosto de um
líquido quente, bile e vinho amargo, e subo correndo para
botar tudo para fora.
NOITE
Fiquei na cama a maior parte do dia. Tentei organizar as
coisas na cabeça. Tentei montar
o quebra-cabeça, a partir das lembranças, dos flashbacks e
dos sonhos, do que aconteceu
naquela noite de sábado. Na tentativa de fazer com que
aquilo fizesse algum sentido, de
ver as coisas mais claramente, botei tudo no papel. O ruído
da caneta riscando o papel
parecia o de alguém sussurrando para mim; isso me deixou
aflita, como se houvesse mais
alguém no apartamento, do outro lado da porta, e eu não
conseguia parar de pensar nela.
Eu estava com um medo absurdo de abrir a porta do quarto,
mas, quando o fiz, não
havia ninguém lá, claro. Desci as escadas e voltei a ligar a
TV. As mesmas imagens
continuavam na tela: a floresta na chuva, os carros de
polícia avançando por uma trilha
lamacenta, aquela horrível tenda branca, tudo meio borrado e
cinzento, então, de
repente, Megan, sorrindo para a câmera, ainda bela, intacta.
Então Scott, de cabeça
baixa, desvencilhando-se de fotógrafos para tentar entrar na
própria casa, Riley a seu
lado. Então apareceu o consultório de Kamal. Mas nem sinal
dele.
Eu não queria ouvir a reportagem, mas precisei aumentar o
volume, qualquer coisa
para abafar o silêncio que zunia em meus ouvidos. A polícia
dizia que a mulher, ainda não
identificada formalmente, estava morta havia algum tempo,
talvez várias semanas. Dizem
que a causa da morte ainda é desconhecida. Dizem que não há
evidências de uma
motivação sexual para o assassinato.
Isso me parece uma coisa particularmente idiota de se dizer.
Sei o que querem dizer
com isso — que não acham que foi estuprada, pelo menos isso,
ainda bem, o que não quer
dizer que não existam motivações sexuais. Na minha opinião,
Kamal queria Megan só
para ele e não podia tê-la, Megan deve ter tentado terminar
tudo e ele não conseguiu
suportar a separação. Essa é uma motivação sexual, não é?
Não aguento mais ficar assistindo ao noticiário, então subo
e me enfio debaixo do
edredom. Esvazio minha bolsa para repassar minhas anotações
rabiscadas em pedaços de
papel, todas as migalhas de informação que consegui reunir,
as memórias fugidias como
sombras, e fico me perguntando: Por que estou fazendo isso?
Qual é a utilidade disso?
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