CAPÍTULO XIII: OS POSTAIS

...eu imponho a mim mesmo uma severa censura...

Passaram alguns dias durante os quais Sofia não recebeu mais cartas do
seu professor de filosofia. Na quinta-feira, 17 de Maio, era o feriado nacional da
Noruega. Também tinha o dia 18 livre. Na quarta-feira, a caminho da escola,
Jorunn disse de repente:
— Que tal irmos acampar?
O primeiro pensamento de Sofia foi recusar por não poder estar afastada
de casa por muito tempo. Depois, mudou de idéias.— Por mim, está bem. Duas horas mais tarde, Jorunn chegou a casa de
Sofia com uma grande mochila.
Sofia também já tinha metido a barraca dentro da sua mochila. Levaram
ainda consigo sacos-cama e roupa quente, colchões de borracha, lanternas,
termos grandes com chá e muita comida saborosa.
Quando a mãe de Sofia chegou a casa, cerca das cinco horas, fez-lhes
muitas recomendações sobre o que deviam fazer e não fazer. A mãe também
queria saber onde elas pensavam acampar.
Responderam que queriam ir para Tiurtoppen (Cabeço do Galo Silvestre).
Talvez ouvissem o canto do galo silvestre, na manhã seguinte.
Ao escolher aquele local para acampar, Sofia também tinha uma segunda
intenção. Se não estava enganada, a cabana do major não ficava longe de
Tiurtoppen. Algo a levava a lá voltar, mas também sabia que nunca se atreveria
a ir sozinha.
Foram pelo caminho que saía do parque de estacionamento em frente do
portão do jardim de Sofia. Jorunn e Sofia conversaram acerca de Deus e domundo, e Sofia achou por bem fazer uma pausa em relação a tudo o que tinha a
ver com filosofia.
Cerca das oito horas, já tinham montado a barraca num planalto perto de
Tiurtoppen. Tinham preparado o local do acampamento e os sacos-cama. Depois
de terem comido, Sofia perguntou:
— Já alguma vez ouviste falar da cabana do major?
— A cabana do major?
— Algures neste bosque há uma cabana... junto a um pequeno lago. Em
tempos viveu lá um major, e por isso lhe chamam a cabana do major.
— E ainda mora lá alguém?
— Vamos ver? — Onde é que fica? Sofia apontou para as árvores. Jorunn
não queria ir, mas Sofia conseguiu convencê-la.O sol começava a desaparecer no horizonte.
Primeiro, caminharam por entre pinheiros altos, em seguida tiveram de
abrir caminho por entre os arbustos e os silvados. Finalmente, chegaram a um
carreiro. Seria o que Sofia percorrera na manhã de domingo? Sim — pouco
depois, viu qualquer coisa cintilar entre as árvores no lado direito do caminho.
— Ali está ela — afirmou.
Passados uns instantes, estavam junto ao pequeno lago. Sofia olhou para a
cabana, do outro lado. As portadas das janelas estavam fechadas. A casinha
vermelha parecia totalmente abandonada.
Jorunn olhou em volta.-
— Vamos pela água? — perguntou.
— Não, remamos. Sofia apontou para o canavial. Lá estava o barco como
da outra vez.— Já estiveste aqui?Sofia abanou a cabeça. Seria demasiado complicado
relatar à amiga a sua última visita. Como é que seria capaz de não revelar nada
acerca de Alberto Knox e do curso de filosofia?
Gracejavam e riam enquanto remavam no lago. Na outra margem, Sofia
teve muito cuidado em puxar bem o barco para terra. Pouco depois, estavam à
porta. Jorunn rodou a maçaneta, mas a porta não se abriu. Era óbvio que não
havia ninguém na cabana.
— Fechada, estavas à espera de outra coisa?
— Talvez encontremos uma chave — afirmou Sofia.Começou a procurar
junto ao muro. — O melhor é voltarmos à tenda — disse Jorunn, passado alguns
minutos. Mas, nesse momento, Sofia exclamou:
— Encontrei-a, encontrei-a! Mostrou a chave com uma expressão
triunfante. Introduziu-a na fechadura e a porta abriu-se.
As duas amigas entraram furtivamente na casa. No interior estava escuro
e fazia frio.— Não se vê nada — disse Jorunn. Sofia também pensara nisso. Tirou uma
caixa de fósforos do bolso e acendeu um fósforo. Antes de o fósforo se apagar,
só conseguiram ver que a cabana estava vazia. Sofia acendeu outro e descobriu
então uma pequena vela num candelabro de ferro forjado em cima da lareira.
Acendeu a vela com mais um fósforo, e a pequena sala ficou de repente tão
clara que podiam ver à sua volta. — Não é estranho que uma pequena vela possa
iluminar tanta escuridão? — perguntou Sofia. A amiga acenou afirmativamente.
— Mas a luz perde-se algures na escuridão — prosseguiu Sofia. — Na
realidade não existe nenhuma escuridão em si. É apenas ausência de luz.
— Credo, que coisas estranhas estás para aí a dizer. Vamos embora...
— Primeiro vamos ver o espelho. — Sofia apontou para o espelho de latão
que estava em cima da cômoda, exatamente como na outra vez.
— Que bonito...
— Mas isto é um espelho mágico.— Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?
— Eu não estou a brincar, Jorunn. Acho que se pode ver qualquer coisa no
outro lado do espelho.
— Não disseste que nunca tinhas estado aqui? E porque é que te divertes
tanto em assustar-me? Sofia não podia responder a estas perguntas.
— Desculpa. Mas Jorunn descobriu então uma coisa que estava, no chão, a
um canto. Levantou-a.
— Postais ilustrados — afirmou. Sofia sobressaltou-se.
— Não lhes toques! Estás a ouvir, não podes tocar-lhes!
Jorunn recuou assustada. Deixou cair a caixa como se se tivesse queimado.
Os postais espalharam-se pelo chão. Passados uns instantes, desatou a rir.— São apenas postais normalíssimos. Jorunn agachou-se e pegou nos
postais. Em seguida, Sofia também se baixou.
— Líbano... Líbano... Líbano... os postais foram todos enviados do Líbano
— afirmou Jorunn.
— Eu sei — Sofia quase soluçava.
— Mas então já estiveste aqui.
— Sim, estive.
Sofia compreendeu que tudo seria mais fácil se confessasse que já tinha
estado ali. Também não faria mal relatar à amiga os acontecimentos misteriosos
dos dias anteriores.
— Era aqui que te queria contar. Jorunn tinha começado a ler os postais.— São todos endereçados a uma certa Hilde Möller Knag. Sofia ainda não
tocara em nenhum postal.
— É esse o endereço completo?
Jorunn leu alto:
Hilde Möller Knag, a/c Alberto Knox, Lillesand, Noruega.
Sofia respirou de alívio. Receara que nos postais estivesse escrito “a/c Sofia
Amundsen”. Só então os observou melhor. — 28 de Abril... 4 de Maio... 6 de
Maio... 9 de Maio... foram carimbados há poucos dias.
— Mas não é tudo. Todos os carimbos são “noruegueses”. Olha —
Contingente ONU! Os selos também são noruegueses...— Eu acho que é sempre assim. Eles têm de ser neutrais, e por isso têm lá
uma estação de correios norueguesa.
— Mas como é que a correspondência é enviada para casa?
— Em aviões militares, acho eu. Sofia pôs a vela no chão. As duas amigas
leram o que estava nos postais. Jorunn ordenou-os. Leu em voz alta o primeiro
postal.
“Querida Hilde! Acredita que estou desejoso de voltar para casa em
Lillesand. Vou chegar a Kjevik no dia 23 de Junho, à tarde. Gostava de poder
chegar a tempo para o teu aniversário, mas estou sob ordens militares. Em
compensação posso prometer-te que vou escolher com todo o cuidado um
grande presente que vais receber no dia dos teus anos.
Beijos daquele que pensa sempre no futuro da filha.
PS. Envio a uma amiga comum uma cópia deste postal.Compreende-me, querida Hilde, de momento estou muito misterioso, mas
tu há de compreender”.
Sofia leu o segundo postal:
“Querida Hilde! Aqui, temos de viver o dia-a-dia.
Se mais tarde me vier a recordar de alguma coisa relacionada com todos
estes meses no Líbano, será da longa espera. Mas esforço-me ao máximo para te
poder dar um presente tão bonito quanto possível pelo teu aniversário. Por agora,
não posso dizer mais nada. Imponho a mim mesmo uma severa censura.
Beijos do pai”
As duas amigas estavam sem fôlego devido à tensão. Nenhuma delas fazia
comentários, apenas liam o que estava nos postais.“Minha querida filha!
Gostava de te poder enviar os meus pensamentos com uma pomba branca.
Mas, no Líbano, não há pombas brancas. Se este país devastado pela guerra
precisa realmente de alguma coisa, é de pombas brancas. Se um dia a ONU
pudesse trazer realmente a paz ao mundo!
PS. Talvez possas partilhar o teu presente de aniversário com uma outra
pessoa. Vamos ver, quando eu chegar a casa. Mas tu ainda não sabes do que
estou a falar.
Muitos beijos de uma pessoa que tem muito tempo para pensar em nós os
dois”.
Depois de terem lido seis postais, só faltava um.“Querida Hilde! Estou quase a rebentar com todos os segredos que têm a
ver com o teu aniversário, e várias vezes por dia tenho de me conter para não
telefonar e contar tudo. É uma coisa que não pára de crescer. E tu sabes que
quando uma coisa cresce é mais difícil guardá-la para nós.
Beijos do pai
PS. Vais conhecer uma moça chamada Sofia.
Para poderem saber um pouco uma da outra antes de se conhecerem,
comecei a enviar-lhe cópias de todos os postais que te escrevo. Será que ela já
começou a perceber, Hilde? Até agora, não sabe mais do que tu. Tem uma
amiga chamada Jorunn. Talvez essa te possa ajudar”.
Quando Jorunn e Sofia acabaram de ler o último postal, olharam-se
fixamente nos olhos. Jorunn agarrou no pulso de Sofia.
— Tenho medo — disse.— Eu também.
— Qual é a data do último postal?
Sofia observou de novo o postal.
— 16 de Maio — disse. — Hoje, portanto.
— Impossível! — respondeu Jorunn. Estava quase a irritar-se.
Examinaram bem o carimbo, e não havia erro possível. Estava escrito
“16.05.90”.
— Mas não é possível — insistiu Jorunn. — E eu não consigo compreender
quem é que poderá ter escrito isto. Tem de ser alguém que nos conhece. Mas
como é que ele pode ter sabido que nós viríamos hoje aqui?
Jorunn era a que tinha mais medo. Para Sofia, a história de Hilde e do paijá não era novidade.
— Eu acho que isto tem a ver com o espelho de latão.
Jorunn assustou-se de novo.
— Não estás a querer dizer que os postais saltam do espelho no preciso
momento em que são carimbados no Líbano?
— Tens uma explicação melhor?
— Não.
— Mas este não é o único mistério.
Sofia levantou-se e iluminou com a vela os quadros da parede. Jorunn
inclinou-se para as pinturas.— “Berkeley ” e “Bjerkely”. O que é que isto significa?
— Não faço idéia. Nesse momento, a vela já estava quase no fim.
— Vamos embora! — disse Jorunn. — Anda!
— Eu só quero levar o espelho.
Dito isto, Sofia levantou-se e tirou da parede o grande espelho de latão que
estava pendurado sobre a cômoda branca. Jorunn tentou dissuadi-la, mas Sofia
não se deteve.
Quando saíram, estava uma noite típica de Maio e havia luz suficiente para
poderem reconhecer os contornos dos arbustos e das árvores. O céu espelhava-se
no lago. As duas amigas remaram lentamente para a outra margem.
Nenhuma falou muito enquanto regressavam à tenda, mas ambaspensavam que a outra refletia sobre o que tinham visto. De quando em quando,
um pássaro levantava vôo, espantado; ouviram duas vezes uma coruja.
Quando chegaram à tenda, enfiaram-se nos sacos-cama.
Jorunn recusou-se a deixar o espelho entrar na tenda. Antes de
adormecerem, pensaram que era inquietante que ele ficasse à entrada da tenda.
Sofia também trouxera os postais, que colocou num bolso exterior da mochila.
Na manhã seguinte, acordaram cedo. Sofia foi a primeira a sair do saco-dedormir.
Calçou as botas e saiu da tenda. O espelho de latão estava deitado na relva,
coberto de orvalho. Sofia limpou o orvalho com a camisola e observou o seu
reflexo.
Felizmente, não encontrou nenhum postal recente do Líbano.
Sobre a planície atrás da tenda pairava uma neblina matinal esfarrapada
como pequenos tufos de algodão. Os pássaros chilreavam energicamente, mas
não conseguia ver nem ouvir galos silvestres.As duas amigas vestiram mais uma camisola e tomaram o café-da-manhã
diante da barraca. Depressa recomeçaram a falar da cabana do major e dos
misteriosos postais.
Depois do café-da-manhã, desarmaram a barraca e puseram-se a
caminho de casa.
Sofia levava o grande espelho de latão debaixo do braço. Por vezes, tinha
de fazer uma curta pausa, porque Jorunn se recusava a tocar no espelho.
À medida que se aproximavam das primeiras casas, ouviram uns
estampidos. Sofia lembrou-se do que o pai de Hilde escrevera acerca do Líbano
devastado pela guerra. Compreendeu como era bom viver num país em paz. Os
estampidos vinham de inocentes fogos de artifício.
Sofia convidou Jorunn para tomar cacau. A mãe quis saber logo de onde
vinha o grande espelho. Sofia disse que o tinham encontrado na cabana do major.
A mãe voltou a afirmar que essa cabana estava desabitada há muitos anos.
Depois de Jorunn ter ido para casa, Sofia vestiu um vestido vermelho. O
resto do feriado nacional decorreu normalmente. No telejornal da noite houve
uma reportagem que mostrava como os soldados noruegueses da ONU no
Líbano tinham festejado o dia.Sofia olhava fixamente para o écran. Um dos homens que ali via podia ser
o pai de Hilde.
A última coisa que Sofia fez nesse dia 17 de Maio foi pendurar o grande
espelho de latão no seu quarto. Na manhã seguinte, encontrou na toca um novo
envelope amarelo. Abriu-o e leu imediatamente o que estava escrito nas folhas.

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