CAPÍTULO XVII: O BARROCO

...da mesma matéria de que são feitos os sonhos... .

Durante alguns dias, Sofia não teve mais notícias de Alberto, mas procurou
por Hermes no jardim várias vezes ao dia. Dissera à mãe que o cão fora sozinho
para casa, e o seu dono, um velho professor de física, a convidara para tomar
café. Ele falara a Sofia acerca do sistema solar e da nova ciência que nascera no
século XVI.
Contou mais a Jorunn. Falou-lhe da sua visita a Alberto, do postal no vão da
escada e da moeda de dez coroas que encontrara no caminho para casa. Mas
guardou para si o sonho com Hilde e a história do crucifixo de ouro.
Na terça-feira, dia 29 de Maio, Sofia estava na cozinha e enxugava alouça, enquanto a mãe via as notícias na sala de estar. Quando a música de
abertura esmoreceu, Sofia ouviu na cozinha que um major do contingente
norueguês da ONU fora morto por uma granada.
Sofia deixou cair o pano da louça no lava-louça e correu para a sala de
estar. Durante alguns segundos tremeluziu uma fotografia do soldado da ONU na
tela — depois, as notícias continuaram.
— Oh, não! — exclamou Sofia. A sua mãe voltou-se.
— Sim, a guerra é terrível...Sofia desfez-se em lágrimas.
— Mas, Sofia. Não é assim tão grave.
— Disseram o nome dele? — Sim... mas já não me recordo. Ele era de
Grimstad.
— Isso não é o mesmo que Lillesand?— Não, estás a brincar?
— Mas quando se é de Grimstad, também se pode ir à escola em
Lillesand. Já não chorava. Por sua vez, a mãe reagiu. Levantou-se e desligou o
televisor.
— Mas que excessos são estes, Sofia?
— Ah, nada...
— Sim, tem de haver alguma coisa! Tu tens um namorado, e eu co-meço
a acreditar que ele é muito mais velho que tu. Responde-me agora: conheces
algum homem no Líbano?
— Não, não é bem isso...
— Conheces o filho de alguém que esteja no Líbano?— Não, ouve. Eu nem sequer conheço a filha dele!
— De quem é que estás a falar?-Não tens nada a ver com isso.
— Ah, não?
— Talvez devesse ser antes eu a interrogar. Porque é que o pai nunca está
em casa? Talvez porque vocês sejam demasiado cobardes para se separarem?
Terás um namorado do qual o pai e eu nada sabemos? E assim por diante.
Ambas temos as nossas perguntas.
— De qualquer modo, acho que temos de conversar uma com outra.
— Talvez. Mas agora estou tão cansada que prefiro ir para a cama. E além
disso, estou com o período. Saiu da sala a correr com um nó na garganta. Mal
saíra da casa de banho e se enfiara nos lençóis, a mãe entrou no quarto. Sofia
fingiu que dormia, apesar de saber que a mãe não acreditava. Também sabia
que a mãe sabia que Sofia sabia que ela não acreditava nisso.No entanto, a mãe fez como se Sofia já estivesse a dormir.
Sentou-se ao canto da cama e acariciou-lhe a cabeça. Sofia pensou como
era difícil levar uma vida dupla. Começava a alegrar-se com o fim do curso de
filosofia. Talvez terminasse até ao dia dos seus anos — ou pelo menos até à noite
de S. João, quando o pai de Hilde regressasse do Líbano...
— Eu queria fazer uma festa no meu aniversário — afirmou então.
— É uma boa idéia. E quem queres convidar?
— Muitas pessoas... posso?
— Claro. Temos um jardim grande. E talvez o bom tempo se mantenha.
— Mas, de preferência, eu gostaria de festejar só na noite de S. João.— Está bem, então fazemos isso.
— É um dia importante — afirmou Sofia, e não estava a pensar apenas no
seu aniversário.
— Ah...
— Acho que me tornei tão adulta nos últimos tempos.
— Sim, não é bom?
— Não sei.
Sofia mantivera a cabeça enterrada na almofada enquanto falavam. A
mãe sondou então:
— Mas Sofia, tens de me contar porque é que... porque é que agora estástão desequilibrada.
— Tu não eras assim com quinze anos?
— Certamente. Mas tu sabes o que quero dizer. Sofia voltou-se para a mãe.
— O cão chama-se Hermes — afirmou.
— Sim?
— Pertence a um homem chamado Alberto.
— Ahá.
— Ele mora na parte antiga da cidade.— Foste tão longe atrás do cão?
— Mas não é perigoso.
— Tu disseste que o cão já tinha estado aqui outras vezes.
— Sim!
Sofia tinha de refletir. Ela queria revelar o máximo que lhe era possível,
mas não podia contar tudo.
— Tu quase nunca estás em casa — começou.
— Não, estou muito ocupada. — Alberto e Hermes já estiveram aqui
muitas vezes.— Mas por quê? Também já estiveram dentro de casa?
— Podes fazer uma pergunta de cada vez? Eles não estiveram na casa.
Mas vão freqüentemente passear no bosque. Achas isso estranho?
— Não, isso não é nada estranho.
— Como todos os outros, passam pelo nosso portão ao passearem. Uma
vez em que eu vinha da escola, Hermes farejava aqui à volta. Foi deste modo
que eu conheci o Alberto.
— E quanto ao coelho branco e todas as outras coisas?
— Foi o Alberto que falou nisso. É que ele é um verdadeiro filósofo. Faloume
dos filósofos
— Assim por cima da vedação do jardim?— Não, sentamo-nos. Mas ele também me escreveu cartas, bastantes. Por
vezes, vieram pelo correio, outras vezes ele pô-las na nossa caixa do correio ao
passar.
— Essas eram então as “cartas de amor” de que falamos.
— Só que não eram cartas de amor.
— Ele só escreveu sobre filósofos?
— Sim, imagina tu. E já aprendi mais com ele do que em oito anos de
escola. Já ouviste falar, por exemplo, de Giordano Bruno, que morreu na
fogueira em 1600? Ou da lei da gravitação de Newton?
— Não, há muita coisa que eu não sei...
— Se bem te conheço, nem sequer sabes por que é que a Terra gira à volta
do Sol, e não o contrário.— Que idade é que ele tem, aproximadamente?
— Não faço idéia. Pelo menos cinqüenta.-E o que é que ele tem a ver com
o Líbano? Isso era mais complicado. Sofia pensou em dez respostas possíveis ao
mesmo tempo. Depois escolheu a única que lhe parecia credível:
— O irmão do Alberto é major na ONU. E ele é de Lillesand. Deve ter
morado a certa altura na cabana do major. — Alberto não é um nome um pouco
estranho?
— Talvez.
— Soa a italiano.
— Eu sei. Quase tudo o que é importante vem da Grécia ou da Itália.
— Mas ele fala norueguês?— Sim, fluentemente.
— Sabes o que acho, Sofia? Acho que devias convidar o Alberto para nossa
casa. Nunca estive com um verdadeiro filósofo.
— Vamos ver.
— Talvez o possamos convidar para a tua grande festa. É divertido
misturar as gerações. E nessa altura, eu podia estar também presente. Eu poderia
servir à mesa. Achas uma boa idéia?
— Sim, se ele quiser. De qualquer modo, é muito mais interessante
conversar com ele do que com os rapazes da minha turma. Mas... nesse caso,
todos acharão que o Alberto é o teu namorado.
— Então, dizes-lhes que isso não é verdade.
— Vamos ver.— Sim, vamos ver. E Sofia — é verdade que nem tudo foi fácil entre mim
e o pai. Mas eu nunca tive um namorado...
— Agora, quero dormir. Tenho uma dor de barriga horrível.
— Queres uma aspirina?
— Está bem. Quando a mãe voltou com um comprimido e um copo de
água, Sofia já tinha adormecido. O dia 31 de Maio era uma quinta-feira. Sofia
esteve preocupada durante as últimas aulas. Em algumas disciplinas tinha
melhorado desde que o curso de Filosofia começara.
Na maioria das disciplinas estivera sempre entre “bom” e “muito bom”;
mas nos últimos meses tinha conseguido um “muito bom” num trabalho escrito
de ciências humanas e numa composição de casa. Na matemática as coisas não
estavam tão bem...
Na última aula, o professor entregou uma composição que tinha corrigido.
Sofia tinha escolhido o tema “O homem e a técnica”. Escrevera sobre o
Renascimento e o desenvolvimento científico, sobre a nova visão da natureza,sobre Francis Bacon, que afirmara “saber é poder”, e sobre o novo método
científico.
Explicara detalhadamente que o método empírico era mais antigo do que
as invenções técnicas. Escrevera depois o que lhe ocorrera acerca das
desvantagens da técnica. Tudo o que os homens faziam podia resultar no bem ou
no mal, escrevera no fim. Bem e mal eram como um fio branco e um fio preto
que se estavam sempre a entrelaçar. Por vezes, ambos os fios estão tão unidos
que é impossível separar um do outro.
Ao entregar as composições, o professor olhou para Sofia e piscou-lhe o
olho.
Teve um cinco, e o professor perguntou: — Como é que sabes isso tudo?
Sofia agarrou numa caneta de feltro e escreveu em maiúsculas na folha:
“Eu Estudo Filosofia”. Ao fechar o livro de exercícios, algo caiu das páginas do
meio. Era um postal ilustrado do Líbano. Sofia debruçou-se sobre a mesa e leu:
“Querida Hilde: Quando leres isto, já teremos falado ao telefone acerca da
trágica morte ocorrida aqui. Por vezes, pergunto-me se a guerra e a violência
não poderiam ser evitadas se os homens pudessem pensar de outro modo. Talvez
o melhor meio contra a guerra e a violência fosse um pequeno curso de filosofia.
Que tal um “Pequeno livro de filosofia da ONU” — de que cada novo cidadão domundo receberia um exemplar na língua materna? Vou expor esta idéia ao
secretário-geral.
Ao telefone, contaste que agora já prestas mais atenção às tuas coisas. Isso
é bom, porque és realmente a maior cabeça de vento que eu conheço. Depois,
disseste que desde a nossa última conversa apenas perdeste uma moeda de dez
coroas. Farei o possível para te compensar. Eu estou muito longe de casa, mas
ainda tenho uma mão amiga na velha pátria. (Se encontrar a moeda de dez
coroas, junto-a ao teu presente de aniversário).
Beijos do pai, que tem a sensação de já ter iniciado a longa viagem de
regresso”.
Sofia acabara de ler o postal quando a aula terminou. De novo se
desencadeou uma forte tempestade de pensamentos na sua mente. No pátio da
escola, Jorunn esperava por ela como sempre.
A caminho de casa, Sofia abriu a sua pasta da escola e mostrou à amiga o
postal.
— De quando é o carimbo? — perguntou Jorunn.— De certeza que é de 15 de Junho... — Não, espera... aqui está 30-5-
1990.
— Isso foi ontem... ou seja, no dia a seguir à tragédia no Líbano.
— Não acredito que um postal leve apenas um dia do Líbano até à
Noruega — refletiu Jorunn.
— Pelo menos não com esta direção: Hilde Möller Knag, a/c Sofia
Amundsen, Escola Secundária Furulia...
— Achas que veio pelo correio? E o professor meteu-o simplesmente no
livro?
— Não faço idéia. E também não sei se me atrevo a perguntar. Não
falaram mais acerca do postal.
— Na noite de S. João, vou fazer uma grande festa no jardim — contou
Sofia.— Com rapazes?
Sofia encolheu os ombros.
— Não precisamos de convidar os mais bobos.
— Mas vais convidar Jörgen?
— Se quiseres. Talvez convide o Alberto Knox.
— Deves estar doida.
— Eu sei.Não falaram mais, e separaram-se no supermercado. A primeira coisa
que fez quando chegou a casa foi procurar Hermes no jardim. E nesse dia, ele
andava de fato entre as macieiras.
— Hermes!
O cão ficou parado por um momento. Sofia sabia exatamente o que se iria
passar nesse segundo. O cão ouvira-a chamar, reconhecera a sua voz e decidira
verificar se ela estava ali, e de onde viera o ruído. Só então a descobriu e decidiu
correr para ela. As suas quatro pernas desataram a agitar-se.
Era de fato muito para um só segundo.
Foi ter com ela a correr, abanou a cauda energicamente e saltou para ela.
— Bonito cão, Hermes! Não... não, pára de lamber, estás a ouvir? Senta...
assim, sim!
Sofia abriu a porta de casa. Sherekan surgiu então dos arbustos. O animal
estranho era um pouco sinistro para o gato. Mas Sofia colocou comida no prato
dele, pôs sementes no comedouro dos pássaros, deixou à tartaruga uma folha dealface e escreveu um bilhete à mãe.
Escreveu que queria levar Hermes para casa e que telefonaria caso não
pudesse estar em casa antes das sete.
Depois, puseram-se a caminho pela cidade. Desta vez, Sofia tinha trazido
dinheiro.
Pensou em apanhar o ônibus com Hermes, mas depois se lembrou que
Alberto podia não estar de acordo.
Ao andar atrás de Hermes, começou a pensar no que era um animal. Qual
era a diferença entre um cão e um homem? Ela ainda sabia o que Aristóteles
dissera a esse respeito. Afirmara que homens e animais eram seres vivos com
muitas semelhanças importantes. Mas havia também uma diferença essencial
entre um homem e um animal, a razão.
Como é que ele tinha a certeza desta diferença?
Demócrito, por seu lado, não vira uma grande diferença entre homens e
animais, visto que ambos são compostos por átomos. Também não acreditavaque homens ou animais tivessem almas imortais. Acreditava que a alma era
formada por pequenos átomos que se separavam em todas as direções quando as
pessoas morriam. Para ele, a alma do homem estava indissociavelmente ligada
ao cérebro.
Mas como é que a alma podia ser constituída por átomos? É que a alma
não podia ser tocada, ao contrário de todas as outras partes do corpo. Era algo
“espiritual”.
Tinham atravessado a praça principal e aproximavam-se da parte antiga
da cidade. Quando chegaram ao local onde Sofia encontrara a moeda de dez
coroas, o seu olhar dirigiu-se instintivamente para o chão. E ali — precisamente
ali, onde já se inclinara uma vez para apa-nhar uma moeda de dez coroas —
estava agora, com a fotografia virada para cima, um postal ilustrado. A
fotografia mostrava um jardim com palmeiras e laranjeiras.
Sofia baixou-se e apanhou o postal. Simultaneamente, Hermes começou a
rosnar. Parecia não gostar que Sofia tivesse agarrado no postal.
No postal estava escrito:“Querida Hilde!
A vida consiste numa cadeia interminável de coincidências. Não é
totalmente inverossímil que as dez coroas que perdeste tenham chegado aqui.
Talvez uma senhora idosa, que esperava pelo ônibus para Kristiansand, a tenha
encontrado na praça principal de Lillesand. Em Kristiansand, apanhou o comboio
para visitar os seus netos, e muitas horas mais tarde pode ter perdido aqui a
moeda de dez coroas. Em seguida, é possível que essa moeda tenha sido
apanhada mais tarde por uma moça que precisava de dez coroas para poder ir
para casa de ônibus. Nunca se pode saber, Hilde, mas se foi mesmo assim temos
de nos questionar de fato se não há uma providência divina por trás de tudo.
Beijos do pai que em pensamento já está sentado na doca em Lillesand.
P.S.: Eu bem disse que ia ajudar-te a procurar as dez coroas.”
Como endereço, estava escrito no postal: “Hilde Möller Knag, a/c de uma
transeunte acidental... O postal tinha o carimbo do dia 15 de Junho.
Sofia subiu os degraus atrás de Hermes. Quando Alberto abriu a porta,disse:
— Sai do caminho, velhote. Aqui vem o correio!
Ela achava que naquele preciso momento tinha uma boa razão para estar
um pouco irritada. Ele deixou-a entrar. Hermes deitou-se debaixo dos cabides,
como na vez anterior.
— O major deixou um novo cartão de visita, minha filha? Sofia olhou para
Alberto. Só então descobriu que ele trazia um traje novo. Reparou primeiro numa
comprida peruca encaracolada. Além disso, trazia um fato comprido largo com
muitas rendas. À volta do pescoço tinha um vistoso lenço de seda e sobre o fato
uma capa vermelha.
Trazia meias brancas e, nos pés, elegantes sapatos de verniz, com laços.
No conjunto, fazia lembrar aqueles quadros representando a corte de Luís XIV
que Sofia já tinha visto.
— Que pavão! — comentou, entregando-lhe o postal.
— Humm... e tu encontraste de fato as dez coroas precisamente no localonde o postal estava hoje?
— Precisamente ali.
— Ele está cada vez mais atrevido. Mas talvez isto seja bom.
— Porquê?
— Assim será mais fácil desmascará-lo. Esta encenação é realmente
empolada e repugnante. Cheira a perfume barato.
— Perfume?
— Tem um efeito indiscutivelmente elegante, mas é apenas uma
brincadeira. Vês como ele ousa comparar os seus fracos métodos de vigilância
com a providência divina?Ergueu o postal. Depois o rasgou em pedaços tal como o anterior. Para não
perturbar ainda mais o seu estado de espírito, Sofia não mencionou o postal que
encontrara no livro da escola.
— Vamos sentar-nos na sala de estar, cara discípula. Que horas são?
— Quatro.
— Hoje vamos falar sobre o século XVII. Foram para a sala que tinha o
teto inclinado e a clarabóia. Sofia reparou que Alberto substituíra alguns objetos
desde a última vez.
Na mesa via-se um antigo cofre com uma coleção de diversas lentes. Ao
lado, estava um livro aberto. Era muito antigo.
— O que é isto? — perguntou Sofia.
— É uma primeira edição do famoso livro de “René Descartes”, “O
Discurso do Método”. É do ano de 1637 e é um dos meus objetos mais estimados.— E o cofre... — ... contém uma coleção exclusiva de lentes — ou vidros
óticos. Foram polidos por volta de meados do século XVII pelo filósofo holandês
“Espinosa”. Ficaram— me caras, mas também são das minhas preciosidades
mais valiosas.
— Eu compreenderia sem dúvida melhor o valor do livro e do cofre se
soubesse alguma coisa sobre Descartes e Espinosa. — Claro. Mas vamos tentar
primeiro familiarizar-nos um pouco com a sua época. Sentemo-nos.
E sentaram-se como na vez anterior, Sofia numa poltrona grande e Alberto
no sofá. Entre eles estava a mesa com o livro e o cofre. Quan-do se sentaram,
Alberto tirou a peruca e pô-la na escrivaninha.
— Vamos falar agora sobre o século XVII — ou a época que é designada
por “Barroco”.
— Barroco? Não é um nome estranho?
— A designação “barroco” provém de uma palavra que significa na
realidade “pérola irregular”. Típico da arte do Barroco eram as formas
exuberantes e com muitos contrastes, ao contrário da arte do Renas-cimento,mais simples e harmoniosa. O século XVII é caracterizado pela tensão entre
opostos inconciliáveis.
Por um lado, continuava a haver a visão otimista do mundo como no
Renascimento — por outro, muitos se agarraram ao extremo oposto e levavam
uma vida de recusa do mundo e retiro religioso. Na arte e na vida real
encontramos uma ostentação pomposa de vida.
Simultaneamente, surgiram os movimentos monásticos que renunciavam
ao mundo.
— Palácios imponentes e mosteiros escondidos, portanto.
— Sim, podes dizê-lo assim. Um chavão do Barroco era o provérbio latino
“carpe diem” — que significa: “goza o dia!”. Um outro provérbio latino muito
evocado diz: “memento mori” — e significa:
“Recorda que tens de morrer!”. Na pintura, o mesmo quadro podia
mostrar simultaneamente uma grande exuberância enquanto num canto inferior
estava pintada uma caveira.Em muitos aspectos, o Barroco caracteriza-se pela “frivolidade” e a
“afetação”, mas também pela consciência da “efemeridade” de todas as coisas,
ou seja, pelo fato de que tudo o que é belo tem de perecer e decompor-se um
dia.
— É verdade, mas é uma idéia triste pensar que nada é estável.
— Nesse caso, pensas exatamente como muitas pessoas no século XVII.
No domínio político, o Barroco também foi a época de grandes conflitos.
Primeiro, a Europa foi devastada por guerras. A mais grave foi a Guerra
dos Trinta Anos, que assolou quase toda a Europa de 1618 a 1648. Na realidade,
consistiu em muitas guerras pequenas, que atingiram principalmente a
Alemanha. Como conseqüência da Guerra dos Trinta Anos, a França tornou-se
pouco a pouco a potência dominante na Europa.
— Porque é que eles combatiam?
— Era principalmente uma guerra entre protestantes e católicos. Mas
também se tratava do poder político. — Mais ou menos como no Líbano.— Além disso, o século XVII estava marcado por enormes diferenças de
classes. Com certeza já ouviste falar da nobreza francesa e da corte de
Versalhes. Não sei se também estudaste a miséria do povo. Mas toda a
ostentação do luxo assenta sobre a ostentação do poder. Diz-se que a situação
política do Barroco pode ser comparada com a arte e a arquitetura
contemporâneas. Os edifícios do Barroco estavam sobrecarregados de volutas,
estuques e decorações. E a política estava cheia de assassínios, intrigas e tramas.
— Não houve um rei sueco que foi assassinado no teatro nessa altura?
— Estás a pensar em Gustavo III, e tens aí um verdadeiro exemplo daquilo
a que me refiro. O assassínio de Gustavo III deu-se já no ano de 1792, mas em
circunstâncias muito barrocas. Ele foi assassinado num grande baile de
máscaras.
— E eu pensava que tinha sido no teatro.
— O baile de máscaras teve lugar na Ópera. O Barroco sueco, no fundo,
só terminou com o assassínio de Gustavo III. Durante o seu reinado dominou o
despotismo esclarecido, mais ou menos como quase cem anos antes com Luís
XIV. Além disso, Gustavo III era um homem muito frívolo, que adorava todas as
cerimônias e cortesias francesas. E repara que também gostava muito de teatro...
— E isso foi-lhe fatal.— Mas o teatro no Barroco era mais do que uma mera forma artística. Era
o símbolo mais importante da sua época.
— E o que é que simbolizava?
— A vida, Sofia. Não sei quantas vezes se disse durante o século XVII: “A
vida é teatro”. Certamente muitas vezes. E foi durante o barroco que surgiu o
teatro moderno — com a sua maquinaria e cenografia. No teatro, punha-se em
cena uma ilusão — que era desmascarada como mera ficção.
Deste modo, o teatro tornou-se a imagem da vida humana em geral. O
teatro podia mostrar que “quanto mais alto é o vôo, maior é a queda”,
oferecendo uma representação impiedosa da fragilidade humana.
— “William Shakespeare” viveu no período do Barroco?
— Ele escreveu os seus grandes dramas por volta do ano de 1600. Desse
modo, tem um pé no Renascimento e o outro no Barroco. Mas já em
Shakespeare se encontram muitas reflexões sobre a vida como teatro. Gostarias
de ouvir alguns exemplos?— Sim, muito.
— No drama “As You Like It”, ele afirma: “O mundo é um palco e todos
os homens e mulheres meros atores. Entram e saem de cena, e cada um
representa muitos papéis no seu tempo....
E em “Macbeth” diz-se: “A vida é apenas uma sombra inconstante; Um
pobre comediante que se pavoneia e se agita Durante a sua hora em cena, e
depois nada mais. Se ouve dele; é uma história, Contada Por um idiota, cheia de
som e de fúria, Que nada significa.”
— Isso é mesmo pessimista.
— Mas a brevidade da vida preocupou-o. Provavelmente já ouviste a mais
famosa citação de Shakespeare:
— Ser ou não ser — eis a questão.— Sim, foi Hamlet que o disse. Num dia estamos na terra — no dia
seguinte desaparecemos.
— Obrigada, isso eu já compreendi.
— Quando não comparam a vida com o teatro, os escritores barrocos
comparam-na com um sonho. Já Shakespeare afirmava, por exemplo: “Somos
feitos da mesma matéria que os sonhos, e esta breve vida abrange um sono....
— Que poético.
— O poeta espanhol “Calderón”, que nasceu por volta de 1600, escreveu
um drama com o título “A vida é sonho”. Aí afirma “O que é a vida? Loucura! O
que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção. E o maior dos bens tem
pouco valor, pois a vida é um sonho”.
— Talvez ele tenha razão.
Nós lemos uma peça na escola. Chamava-se “Jeppe de Bjerget”. — De
“Ludvig Holberg”, sim. Aqui no Norte uma grande figura de transição entre o
Barroco e o Iluminismo. — Jeppe adormece num fosso de estrada... e depoisacorda na cama do barão. E pensa ter sonhado ser apenas um pobre camponês.
Depois, é levado de volta para o fosso, a dormir — e acorda de novo. E acha
nessa altura ter sonhado que estivera deitado na cama do barão.
— Holberg retirou este motivo de Calderón, como Calderón o fizera a
partir dos contos árabes das “Mil e Uma Noites”. Mas a comparação entre vida e
sonho é ainda maisantiga, e encontramo-la inclusivamente na Índia e na China.
Já o antigo sábio chinês “Tchuang Tsu (cerca de 350 a.C.) sonhou uma vez que
era uma borboleta e, após ter acordado perguntou se era um homem que sonhara
ser uma borboleta ou uma borboleta que estava nesse momento a sonhar que era
um homem”.
— De qualquer modo, é impossível provar qual está certo.
— Na Noruega tivemos um poeta barroco típico, de nome “Petter Dass”.
Viveu entre 1647 e 1707. Por um lado, queria retratar a vida como é realmente,
por outro sublinhava que apenas Deus é eterno e constante.
— Deus é Deus, mesmo se tudo fosse deserto, Deus é Deus, mesmo se
todos estivessem mortos...
— Mas no mesmo hino ele descreve também a cultura norueguesa —
escrevendo sobre todos os tipos de peixe que se encontram nesta zona. Isso é
típico do Barroco. Num mesmo texto é descrito o terreno, imanente — e ocelestial, transcendente. O conjunto pode fazer-nos lembrar a separação
platônica entre o mundo sensível concreto e o mundo imutável das idéias.
— E a filosofia?
— Também a filosofia era caracterizada por duras lutas entre modos de
pensar contraditórios. Como já ouvimos, para alguns filósofos, a realidade era
fundamentalmente de natureza mental ou espiritual. Designamos essa
perspectiva por “idealismo”. A concepção oposta é o “materialismo”, uma
filosofia que defende que a realidade se reduz a substâncias materiais concretas.
O materialismo também teve no século XVII muitos defensores. O mais
influente talvez tenha sido o filósofo inglês “Thomas Hobbes”. Segundo ele, todos
os seres — logo, também homens e animais — consistem exclusivamente em
partículas de matéria. Mesmo a consciência do homem — ou a alma humana —
nasce através do movimento de partículas minúsculas no cérebro.
— Então ele pensava o mesmo que Demócrito dois mil anos antes.
— Idealismo e materialismo são como fios condutores através de toda a
história da filosofia. Mas muito raramente as duas concepções surgiram tão
claramente numa mesma época como no Barroco. O materialismo consolidouse
progressivamente através das novas ciências da natureza. Newton mostrou que
as mesmas leis para o movimento são válidas em todo o universo, e que as leis da
gravitação e dos movimentos dos corpos são responsáveis por todas as
transformações na natureza — tanto na terra como no espaço. Portanto, tudo é
governado com a mesma regularidade constante — ou com a mesma mecânica.
Assim, em princípio, podemos calcular qualquer transformação na natureza com
exatidão matemática. Deste modo, Newton forneceu os últimos elementos para achamada “concepção mecanicista do mundo”.
— Ele imaginava o mundo como uma grande máquina?
— Exatamente. O termo “mecânico” provém da palavra grega
“mêchanê”, que significa máquina. Mas devemos ter em atenção que nem
Hobbes nem Newton viam uma contradição entre uma concepção mecanicista
do mundo e a crença em Deus. Isto não é válido para todos os materialistas dos
séculos XVIII e XIX. O médico e filósofo francês “La Mettrie” escreveu em
meados do século XVIII um livro com o título “L’homme machine”. Significa:
“o homem máquina”. Tal como a perna tem músculos para andar, assim o
cérebro, escreveu ele, tem “músculos” para pensar. Posteriormente, o
matemático francês “Laplace” exprimiu com o seguinte pensamento uma
concepção mecanicista extrema: se uma inteligência conhecesse a posição de
todas as partículas de matéria num certo momento, nada seria incerto, e tanto o
futuro como o passado seriam evidentes. Estaria “nas cartas” o que haveria de
suceder. Designamos esta concepção por “determinismo”.
— Nesse caso, o homem não pode ter livre arbítrio.
— Não, tudo é produto de processos mecânicos — inclusivamente os
nossos pensamentos e sonhos. No século XIX, materialistas alemães afirmaram
que os processos de pensamento se comportam em relação ao cérebro tal como
a urina em relação aos rins e a bílis em relação ao fígado.— Mas a urina e a bílis são materiais. Os pensamentos não. — Estás a dizer
uma coisa importante. Posso contar-te uma história que diz o mesmo. Certa vez,
um cosmonauta e um neurocirurgião russos discutiam sobre religião. O cirurgião
era cristão, o cosmonauta não. “Eu já estive várias vezes no espaço”, gabava-se
o cosmonauta, “mas não vi nem Deus nem anjos”. “E eu já operei muitos
cérebros inteligentes”, respondeu o cirurgião, “e também não encontrei em lado
algum um único pensamento”.
— O que não significa que os pensamentos não existam.
— Não. Apenas esclarece que os pensamentos são algo completamente
diferente de tudo o que pode ser amputado ou dividido em partes cada vez
menores. Por exemplo, não é fácil remover uma alucinação com uma operação.
Um importante filósofo do século XVII, chamado “Leibniz”, referiu que a
grande diferença entre tudo o que é feito de “matéria” e tudo o que é feito de
“espírito” consiste precisamente no fato de a matéria poder ser dividida em
partes cada vez menores. Mas a alma não pode ser cortada em pedaços.
— Pois não, que tipo de faca se usaria?Alberto abanou a cabeça. Depois,
apontou para a mesa entre ambos e afirmou:
— Os dois filósofos mais importantes do século XVII foram Descartes e
Espinosa. Também eles se preocuparam com questões como a relação entre
alma e corpo. Vamos observar mais pormenorizadamente estes filósofos:
— Conta. Mas se não estivermos despachados até as sete, tenho de telefonar a minha mãe.


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