Alberto levantara-se e despira a capa vermelha. Pô-la numa cadeira e
voltou a sentar-se confortavelmente no sofá.
— “René Descartes” nasceu em 1596 e viveu em vários países da Europa
ao longo da vida. Já na sua juventude, sentia o forte desejo de tomar
conhecimento da natureza do homem e do universo. Mas depois de ter estudado
filosofia tornou-se consciente principalmente da sua própria ignorância.
— Mais ou menos como Sócrates?— Sim, mais ou menos assim. Tal como Sócrates, estava convencido de
que só a razão nos pode dar conhecimento seguro. Nunca podemos confiar no
que está escrito em livros antigos. Nem sequer podemos confiar no que os nossos
sentidos nos transmitem.
— Platão era da mesma opinião. Ele achava que só a razão nos pode dar
um saber sólido.
— Exato. De Sócrates e Platão, através de S. Agostinho, há uma linha
direta até Descartes. Todos eles eram racionalistas convictos. Para eles, a razão
era a única fonte segura de conhecimento. Após muitos estudos, Descartes
reconheceu que não era forçoso confiar no saber transmitido na Idade Média.
Podes fazer uma comparação com Sócrates, que não confiava nas concepções
mais difundidas com que se defrontava na ágora em Atenas. E o que é que se faz
neste caso, Sofia? Sabes responder-me?
— Começa-se a filosofar por si mesmo.
— Exato. Descartes decidiu então viajar pela Europa — tal como Sócrates,
que passou a vida em diálogo com homens de Atenas. Ele próprio relata que a
partir dessa altura só queria procurar o saber que podia encontrar em si mesmo
ou “no grande livro do mundo”. Por isso, entrou para o exército e pôde
permanecer em diversos locais da Europa Central. Mais tarde, passou alguns
anos em Paris. Em Maio de 1629, viajou para os Países Baixos, onde viveu
durante quase vinte anos, enquanto trabalhava nos seus escritos filosóficos. Em1649, a rainha Cristina convidou-o a viver na Suécia. Mas esta estadia “no país
dos ursos, do gelo e dos rochedos”, como ele lhe chamou, provocou-lhe uma
pneumonia, e morreu no Inverno de 1650.
— Então só tinha 54 anos!
— Mas ainda havia de ser muito importante para a filosofia, mesmo após a
sua morte. Sem exagero, podemos dizer que Descartes foi o fundador da filosofia
da época moderna. Depois da imponente redescoberta do homem e da natureza
no Re-nascimento, surgiu de novo a necessidade de reunir todas as idéias
contemporâneas num único “sistema filosófico” coerente. O primeiro grande
construtor de sistema foi “Descartes”, e seguiram— se-lhe “Espinosa” e
“Leibniz”, “Locke” e “Berkeley ”, “Hume” e “Kant”.
— O que é que entendes por “sistema filosófico”?
— Entendo uma filosofia construída desde a base e que procura encontrar
uma resposta para todas as questões filosóficas importantes. A Antiguidade teve
grandes construtores de sistemas como Platão e Aristóteles. A Idade Média teve
S. Tomás de Aquino, que queria fazer uma ponte entre a filosofia de Aristóteles e
a teologia cristã. Veio depois o Renascimento — com uma mistura de velhas e
novas idéias sobre a natureza e a ciência, Deus e os homens. Só no século XVII a
filosofia tentou de novo pôr em sistema as novas idéias. O primeiro a fazer esta
tentativa foi Descartes. Ele deu o sinal de partida para aquilo que se tornaria o
projeto filosófico mais importante para as gerações seguintes. Antes de mais,
preocupava-o o que nós podemos saber, ou seja, a questão da “solidez do nosso
conhecimento”. A segunda grande questão que o preocupava era a “relação
entre corpo e alma”. Estas duas problemáticas determinariam a discussãofilosófica dos cento e cinqüenta anos seguintes.
— Então ele estava adiantado em relação à época.
— Mas as questões já andavam no ar na época. Na questão de como
podemos alcançar saber seguro, alguns exprimiram o seu total “ceticismo”
filosófico. Achavam que os homens tinham de se conformar com o fato de nada
saberem. Mas Descartes não se conformou com isso. Se o tivesse feito, não teria
sido um verdadeiro filósofo. De novo, podemos fazer um paralelismo com
Sócrates, que não se contentou com o ceticismo dos sofistas. Justamente na época
de Descartes, a nova ciência da natureza desenvolvera um método que havia de
fornecer uma descrição totalmente segura e exata dos processos naturais.
Descartes se interrogou não havia um método igualmente seguro e Exato para a
reflexão filosófica.
— Entendo.
— Mas esse era apenas um dos problemas. A nova física colocara
também a questão sobre a natureza da matéria, ou seja, sobre o que determina os
processos físicos na natureza. Cada vez mais pessoas defendiam uma
compreensão materialista da natureza. Mas quanto mais o mundo físico era
concebido de forma mecanicista, mais urgente se tornava a questão da relação
entre corpo e alma. Antes do século XVII, a alma fora descrita geralmente
como uma espécie de “espírito vital” que percorria todos os seres vivos. Aliás, o
significado original de “alma” e “espírito” é também “sopro vital” ou
“respiração”. É esse o caso em quase todas as línguas européias. Para
Aristóteles, a alma é algo que está presente em todo o organismo como
“princípio vital” desse organismo — e que é inconcebível separada do corpo. Porisso também podia falar de uma “alma vegetativa” e de uma “alma sensitiva”.
Foi só no século XVII que os filósofos estabeleceram uma separação radical
entre alma e corpo, porque todos os objetos físicos — também um corpo animal
ou humano — eram explicados como processos mecânicos. Mas a alma humana
não podia ser uma parte desta “máquina fisiológica”? O que era então? Tinha que
se esclarecer como é que algo “espiritual” podia dar origem a um processo
mecânico.
— Essa é realmente uma idéia bastante estranha.
— O que queres dizer com isso?
— Eu decido levantar o meu braço — e o braço eleva-se. Ou eu decido
correr para o ônibus e imediatamente as minhas pernas começam a mover-se.
Por vezes, penso numa coisa triste: as lágrimas vêm-me logo aos olhos. Assim,
tem de haver alguma ligação misteriosa entre o corpo e a consciência.
— Foi precisamente este problema que levou Descartes a refletir. Tal
como Platão, ele estava convencido de que há uma divisão rígida entre espírito e
matéria. Mas Platão não conseguiu dar resposta ao problema de como o espírito
influencia o corpo, ou a alma o corpo.
— Eu também não, por isso estou desejosa de saber o que Descartes
descobriu. Ouçamos as suas próprias reflexões.Alberto indicou o livro que estava entre eles na mesa e prosseguiu:
— Neste pequeno livro, “Discurso do Método”, Descartes levanta a
questão de qual o método filosófico que um filósofo deve utilizar para resolver
um problema filosófico. As ciências da natureza já tinham desenvolvido o seu
novo método... — Já falaste nisso.
— Descartes explica em seguida que não podemos dar nada como
verdadeiro enquanto não tivermos reconhecido claramente que é verdadeiro.
Para conseguirmos isso, temos que decompor um problema complexo em tantas
partes simples quanto possível. Podemos começar então pela idéia mais simples.
Talvez se possa dizer que cada idéia é “pesada e medida” — mais ou menos do
mesmo modo que Galileu queria medir tudo e tornar mensurável o não
mensurável. Descartes achava que o filósofo podia prosseguir do simples para o
complexo. Deste modo poderia ser construído um novo conhecimento. Até ao
final, é necessário verificar que não se omitiu nada, por meio de um controlo e
de uma verificação constantes. Só assim se pode atingir conclusões filosóficas.
— Isso parece um problema matemático.
— Sim, Descartes queria aplicar o “método matemático” à reflexão
filosófica. Queria provar verdades filosóficas aproximadamente do mesmo
modo que um teorema matemático. Queria usar exatamente o mesmo
instrumento que usamos ao trabalhar com números, a “razão”, porque só a razãonos fornece conhecimento seguro. Não estabelece de modo algum que se possa
confiar nos sentidos. Já referimos a sua afinidade com Platão. Também este
dissera que a matemática e as relações numéricas fornecem conhecimento mais
seguro do que os testemunhos dos nossos sentidos.
— Mas é possível responder desse modo a questões filosóficas?
— Voltemos ao raciocínio de Descartes. O seu objetivo é, portanto, obter
conhecimentos seguros acerca da natureza da realidade, e ele torna claro em
primeiro lugar que no início devemos duvidar de tudo. Ele não queria edificar o
seu sistema filosófico sobre areia.
— Porque se o fundamento cede, toda a casa se desmorona.
— Obrigado pela ajuda, Sofia. Descartes não achava sensato duvidar de
tudo, mas pensava que, em princípio, podemos duvidar de tudo. Em primeiro
lugar, não é certo que façamos progressos na nossa busca filosófica pela leitura
de Platão ou Aristóteles. Talvez alarguemos com isso o nosso saber histórico, mas
não descobrimos mais acerca do mundo. Descartes achava importante lançar ao
mar o patrimônio intelectual antigo antes de iniciar a sua própria investigação
filosófica.
— Ele queria remover todos os velhos materiais do terreno de construção,
antes de iniciar a construção da nova casa?— Sim, para ter a certeza de que o novo edifício de idéias era estável, ele
queria usar apenas material de construção novo e sólido. Mas as dúvidas de
Descartes vão ainda mais longe. Segundo ele, nunca podemos confiar no que os
nossos sentidos nos transmitem, porque podemos ser enganados por eles.
— Como é que isso é possível?
— Mesmo quando sonhamos, acreditamos estar a viver uma situação real.
E haverá alguma coisa que distinga as nossas sensações, quando estamos
despertos, das sensações “sonhadas”? “Quando reflito cuidadosamente nesta
questão, não encontro nenhum indício pelo qual possa distinguir com segurança a
vigília do sono”, escreve Descartes. E ele prossegue: “São ambos tão
semelhantes que eu fico totalmente perplexo e não sei se não estarei a sonhar
neste momento”.
— Jeppe também achava que tinha sonhado ter estado deitado na cama do
barão.
— E enquanto estava deitado na cama do barão achava que a sua vida
como camponês pobre era um sonho. Assim, Descartes duvida de tudo. Muitos
filósofos antes dele já tinham terminado as suas reflexões filosóficas neste ponto.— Nesse caso, não foram muito longe.
— Mas Descartes tentou continuar a trabalhar a partir do zero. Ele chegou
à conclusão de que duvidava de tudo e que isso é a única coisa de que se pode ter
uma certeza absoluta. E em seguida, há algo que se lhe torna claro: há um fato,
do qual ele pode ter toda a certeza: duvida. Mas se duvida, tem que concluir que
pensa, e se pensa tem de concluir que é um ser pensante. Ou, como ele próprio
diz: “cogito, ergo sum”. — E o que significa?
— Penso, logo existo. — Não me surpreende que ele tenha chegado a essa
conclusão.
— Está bem. Mas não te esqueças com que certeza intuitiva ele se concebe
subitamente como um eu pensante. Talvez ainda te lembres que para Platão é
mais real o que compreendemos com a razão do que o que obtemos dos sentidos.
Com Descartes, passava-se exatamente o mesmo. Ele não compreende apenas
que é um eu pensante, entende simultaneamente que este eu pensante é mais real
do que o mundo físico, que apreendemos com os sentidos. E a partir daqui, ele
prossegue, Sofia. Ainda não concluiu de modo algum a investigação filosófica.
— Prossegue tu também com calma.— Descartes interrogou-se então sobre se havia algo mais que ele pudesse
apreender com a mesma evidência intuitiva, além do fato de ser um ser
pensante. Ele descobre que tem também uma idéia clara e nítida de um ser
perfeito. Teve sempre essa idéia e, para Descartes, é evidente que essa idéia não
pode provir dele mesmo. A idéia de um ser perfeito não pode provir de um ser
imperfeito. Por isso, a idéia de um ser perfeito tem de provir desse mesmo ser
perfeito — por outras palavras, de Deus. Que Deus existe é deste modo tão
imediatamente evidente para Descartes como o fato de alguém que pensa ter de
ser um eu pensante.
— Agora, acho que ele precipita um pouco as conclusões. E era tão atento
no princípio!
— Sim, houve quem afirmasse ser este o ponto mais fraco de Descartes.
Mas tu estás a falar de deduções. Na verdade, não se trata aqui de uma
demonstração. Descartes queria apenas dizer que todos nós temos uma idéia de
um ser perfeito, e que esta idéia implica que este ser perfeito existe. Porque um
ser perfeito não seria perfeito se não existisse. Além disso, não teríamos a idéia
de um ser perfeito se esse ser não existisse. Nós somos imperfeitos e, por isso, a
idéia do perfeito não pode provir de nós. A idéia de um Deus é, segundo
Descartes, uma idéia inata que nos foi implantada ao nascermos — “tal como a
marca que o artista imprimiu na sua obra”, como ele escreve.
— Mas mesmo que eu tenha uma idéia de um crocofante, isso não
significa que existam crocofantes.
— Descartes teria dito que o conceito de “crocofante” não implica que ele
exista. Mas o conceito de “ser perfeito” implica que este ser exista. ParaDescartes isto é tão certo como o fato de a idéia de círculo implicar que todos os
pontos do círculo estão à mesma distância do centro do círculo. Logo, não podes
falar de um círculo se ele não preenche estes requisitos. E também não podes
falar de um ser perfeito se lhe falta a mais importante de todas as qualidades, a
existência.
— É um modo de pensar muito especial.
— Isto é um modo de pensar claramente “racionalista”. Tal como
Sócrates e Platão, Descartes via uma conexão entre pensa-mento e existência.
Quanto mais evidente uma coisa é para o pensa-mento, mais certa é a sua
existência.
—Até aqui, ele reconheceu que é um ser pensante, e que existe um ser
perfeito.
— E, a partir destas certezas, prossegue. Todas as idéias q ue temos da
realidade exterior — por exemplo, Sol e Lua —, podiam também ser apenas
visões oníricas. Mas a realidade exterior também tem algumas características
que podemos conhecer com a razão. Por exemplo, as relações matemáticas, ou
seja, aquilo que pode ser medido, o comprimento, a altura e a profundidade.
Estas “propriedades quantitativas” são tão claras para a razão como o fato de eu
ser um ser pensante. “Propriedades qualitativas” como cor, cheiro e sabor estão
por seu lado relacionadas com os nossos sentidos e não descrevem nenhuma
realidade exterior.— Então afinal a natureza não é um sonho?
— Não. E, neste ponto, Descartes recorre novamente à nossa idéia de um
ser perfeito. Se a nossa razão conhece algo muito clara e distintamente — que é o
caso das relações matemáticas na realidade exterior — é porque é assim
mesmo. Um Deus perfeito não faria pouco de nós. Descartes recorre a Deus
como garantia de que aquilo que conhecemos com a nossa razão corresponde a
uma coisa real.
— Está bem. Ele descobriu que é um ser pensante, que Deus existe e ainda
que existe uma realidade exterior.
— Mas entre a realidade exterior e a realidade das idéias há uma
diferença essencial. Descartes pressupõe que existem duas formas diferentes de
realidade — ou duas “substâncias”. Uma substância é o “pensamento” ou a
alma, a outra a “extensão” ou a matéria. A alma é apenas consciente, não ocupa
espaço e, por isso, também não pode ser dividida em partes menores. A matéria,
por seu lado, é extensa, ocupa espaço e pode ser dividida em partes cada vez
menores — mas não é consciente. Descartes afirma que ambas as substâncias
provêm de Deus, porque apenas Deus existe independentemente de todas as
outras coisas. Mas mesmo provindo pensamento e extensão de Deus, as duas
substâncias são completamente independentes uma da outra. O pensamento é
livre na sua relação com a matéria — e vice-versa: os processos materiais
operam de forma totalmente independente do pensamento.
— E assim, a Criação ficou dividida em dois.— Exato. Dizemos que Descartes é “dualista”, e isso significa que ele traça
uma clara linha de separação entre a realidade espiritual e a realidade em
extensão. Por exemplo, apenas o homem tem alma. Os animais pertencem
totalmente à realidade em extensão. A sua vida e os seus movimentos são
puramente mecânicos. Descartes via os animais como uma espécie de
autômatos complexos. Em relação à realidade em extensão, ele tem dela uma
concepção mecanicista — tal como os materialistas.
— Mas eu duvido muito que Hermes seja uma máquina ou um autômato.
Certamente, Descartes nunca gostou de um animal. E em relação a nós?
Também somos autômatos?
— Sim e não. Descartes chegou à conclusão de que o homem é um ser
duplo que pensa e ocupa espaço. O homem tem uma alma e um corpo extenso.
S. Agostinho e S. Tomás de Aquino já tinham afirmado algo semelhante.
Acreditavam que o homem tem corpo tal como os animais, mas também espírito
como os anjos. Para Descartes, o corpo é um mecanismo muito sofisticado. Mas
o homem tem também alma que pode operar independentemente do corpo. Os
processos corporais não têm essa liberdade, seguem as suas próprias leis. Mas
aquilo que pensamos com a razão não acontece no corpo. Acontece na alma, que
é independente da realidade extensa. Eu posso ainda acrescentar que Descartes
não queria excluir a possibilidade de também os animais pensarem. Mas, se
possuírem essa faculdade, também tem de existir neles a mesma divisão entre
pensamento e extensão.
— Já falamos sobre isso. Quando eu decido correr para o ônibus, todo o
“autômato” se põe em movimento. E se perco o ônibus, vêm-me as lágrimas aosolhos.
— Nem Descartes podia contestar que existe sempre esse efeito recíproco
entre alma e corpo. Enquanto a alma está no corpo, segundo ele, está ligada ao
corpo através de um órgão do cérebro muito especial, uma glândula, na qual se
dá uma reação constante entre o espírito e a matéria. Deste modo, segundo
Descartes, a alma pode ser permanentemente confundida com os sentimentos e
sensações que têm a ver com as necessidades do corpo. O objetivo é transmitir à
alma a ordem: Seja qual for a gravidade das minhas dores de barriga, a soma
dos ângulos num triângulo é sempre cento e oitenta graus. Deste modo, o
pensamento pode elevar-se acima das necessidades do corpo e proceder
“racionalmente”. Deste ponto de vista, a alma é totalmente independente do
corpo. As nossas pernas podem ficar velhas e fracas, as nossas costas tortas, e os
nossos dentes podem cair — mas dois mais dois serão sempre quatro, enquanto
ainda houver razão em nós. Porque a razão não fica velha e caduca. Os nossos
corpos é que envelhecem. Para Descartes, a própria razão é a alma. Paixões e
humores inferiores como a concupiscência e o ódio estão estreitamente ligados
às funções corporais — e conseqüentemente à realidade extensa.
— Eu não me conformo com o fato de Descartes ter comparado o corpo
com uma máquina ou um autômato.
— O motivo da comparação é o fato de as pessoas, no tempo de
Descartes, estarem completamente fascinadas com as máquinas e os
mecanismos dos relógios, que aparentemente funcionavam por si mesmos. A
palavra “autômato” designa precisamente algo que se move por si mesmo. Mas
eles moverem-se por si era apenas uma ilusão. Por exemplo, os homens
construíram nessa época um relógio astronômico e deram-lhe corda. Descartes
acentua que estes mecanismos artificiais são compostos muito simplesmente por
poucas partes, em comparação com as quantidades de ossos, músculos, nervos,
artérias e veias que compõem os corpos de homens e animais. Mas porque é queDeus não havia de produzir um corpo animal ou humano com base nas leis
mecânicas?
— Hoje fala-se muito de “inteligência artificial”.
— Estás a pensar nos nossos autômatos atuais. Construímos máquinas que
por vezes nos podem convencer realmente da sua inteligência. Essas máquinas
teriam certamente posto Descartes em pânico. Talvez ele se interrogasse se a
razão humana é realmente tão livre e autônoma como ele tinha pensado. Há
filósofos que pensam que a vida espiritual humana é tão pouco livre como os
processos corporais. A alma de um homem é infinitamente mais complexa do
que qualquer programa de computador, mas há também quem pense que em
princípio somos tão pouco livres como esses programas. Mas olha para aqui,
Sofia. Quero mostrar-te uma coisa.
Alberto indicou então uma grande secretária no outro extremo da sala.
Havia ali uma pequena tela. Ele levantou-se e foi até lá, seguido por Sofia.
Alberto ligou o computador e em breve apareceu escrito no canto superior c:. Ele
escreveu “Laila” e disse:
— Este é um programa avançado de conversação. Em seguida apareceu
um texto na tela: — Olá, eu chamo-me Laila. Estás comodamente sentada?Sofia
escreveu três letras: “Sim”, apesar de ainda não se ter sentado.Alberto empurrou
uma cadeira para ela.”Como te chamas?”, estava agora escrito na tela. “Sofia
Amundsen”, escreveu Sofia, e o computador respondeu: “Klöverveien 3. É um
prazer conhecer-te, Sofia. Estás entusiasmada com o teu aniversário?” Sofia
sobressaltou-se. Alberto colocou-lhe a mão no ombro e disse:— Eu apenas dei a Laila o teu nome, a tua morada e a tua data de
nascimento. É como quando alguém se apresenta a um novo amigo. Gostamos
de saber antecipadamente alguns dados sobre o outro.
“Bem” — escreveu então Sofia.
— Sim, estás mesmo bem, Sofia? Tens de tentar conversar com frases
completas.”Obrigada, estou muito bem. Posso fazer-te uma pergunta?”“Por
favor, faz uma pergunta”. “Que idade tens?” — perguntou Sofia. “Fui construída
em Atlanta a 8 de Agosto de 1988, e traduzida para norueguês a 28 de Março de
1990 na Escola Superior Técnica Norueguesa.” “Bolas!”
“Eu disse que tinhas de falar com frases completas”.
“Eu disse: bolas”.
“Não percebo calão. Conheço mais de cem mil palavras, mas a palavra
“bolas” só conheço em relação a bola. De que é que estás a falar exatamente?”“Não sei”.
“Não saber alguma coisa é em geral um estádio na via para um novo
conhecimento”.
“Sócrates teria certamente dito o mesmo. Ou Descartes”.
“Sócrates era um filósofo grego que viveu entre 470 e 399 antes de Cristo.
Se queres saber mais, toca em F7. Descartes era um filósofo francês que viveu
entre 1596 e 1650. Se quiseres saber mais toca em F8”.
“Obrigada, é suficiente.
Posso perguntar-te outra coisa?”
“Pergunta outra coisa”.Alberto sorria. Sofia escreveu:
“Quem é Hilde Möller Knag?”
“Hilde Möller Knag mora em Lillesand e tem a mesma idade que Sofia
Amundsen”.
“Como é que sabes isso?”“Eu não sei como sei, mas encontrei-o no meu
disco rígido”.Sofia sentiu uma mão sobre o ombro.
-Eu dei-lhe o pouco que sabemos sobre Hilde. “Sabes mais alguma coisa
sobre Hilde?” — escreveu Sofia.”O pai de Hilde é observador da ONU no
Líbano. É major e envia postais à filha”. “Quero que o encontres”. “Não consigo.
Não o encontro em nenhum arquivo, e não estou ligada a mais nenhum
terminal”.
“Eu disse para o encontrares!!!!!!!”
“Estás irritada, Sofia?Tantos pontos de exclamação são um indício de sentimentos violentos”.
“Eu quero falar com o pai de Hilde!”
“Tens problemas em controlar a tua vontade. Se quiseres falar sobre a tua
infância, oca em F9”. Alberto colocou de novo a mão no ombro de Sofia.
— Ela tem razão. Isto não é nenhuma bola de cristal, minha filha. Laila é
apenas um programa de computador.
“Cala o bico” — escreveu Sofia.
“Como queiras, Sofia. As nossas relações duraram apenas treze minutos e
cinqüenta e dois segundos. Vou recordar tudo o que nós dissemos. Agora, vou
interromper o programa.” De novo, surgiu o sinal c: na tela.
— Agora, podemos voltar ao trabalho — disse Alberto.Mas Sofia já tinha escrito mais algumas letras. Escrevera “Knag”. No
momento seguinte, apareceu a seguinte informação na tela:
— Aqui estou! Alberto estremeceu. “Quem és tu?” — escreveu Sofia.
“Major Albert Knag, às ordens. Venho diretamente do Líbano. O que ordenam
os senhores”?
— Nunca me aconteceu nada tão terrível — gemeu Alberto. — Agora, o
malvado já se introduziu no disco rígido. Afastou Sofia da cadeira e sentou-se em
frente ao teclado.
Como diabo entraste no meu PC?”, escreveu ele. “Isto não é nada, caro
colega. Eu estou exatamente onde desejo estar.” “Seu vírus de computador
repugnante!” “Então, então! De momento, apresento-me como vírus de
aniversário. Posso enviar uma saudação muito especial?” “Obrigado, já temos
que cheguem”. “Mas eu vou ser rápido: tudo acontece apenas em tua honra,
querida Hilde. Eu dou-te os parabéns pelo teu aniversário. Tens de perdoar as
circunstâncias, mas gostaria que as minhas felicitações te seguissem por toda a
parte onde estejas. Beijos do pai que gostaria tanto de te ter nos braços!”.
Antes de Alberto poder escrever mais, apareceu de novo o c: na tela.
Alberto escreveu “dir knag”.”“ e obteve a seguinte informação:knag.lib 147.643 15-06-90
1247
knag.lil 326.439 23-06-90
Escreveu “erase knag”. E desligou o computador.
— Agora, apaguei-o — afirmou, — mas é impossível dizer onde surgirá de
novo.
Olhou fixamente para a tela, depois acrescentou: — O mais grave é o
nome. Albert Knag... Sofia só então se apercebeu da semelhança dos nomes.
Albert Knag e Alberto Knox. Mas Alberto estava tão irritado, que ela não se
atreveu a abrir a boca. Sentaram-se novamente à mesa.

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