CAPÍTULO XXXIII: A FESTA NO JARDIM

...um corvo branco...

Hilde estava sentada na cama como que paralisada. Sentia os braços
rígidos e as mãos, que seguravam no “dossiê”, tremiam. Eram quase onze. Tinha
lido durante mais de duas horas. Por vezes, rira alto, outras assustara-se.
Felizmente não havia ninguém em casa.
E o que ela lera em duas horas! Primeiro, Sofia tinha tentado atrair a
atenção do major quando voltava a casa, depois subira a uma árvore, o ganso
Morten viera do Líbano como anjo salvador.
Mesmo tendo passado muito tempo, Hilde nunca se esquecera de que o pai
lhe tinha lido “A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson Através da Suécia”.Durante muitos anos tinham usado entre si uma língua secreta que estava
relacionada com aquele livro. E agora, o seu pai trazia de novo à baila o velho
ganso.
Depois, Sofia estreara-se como freqüentadora de cafés.
Hilde lera com grande interesse as páginas nas quais Alberto explicara
Sartre e o existencialismo. Quase conseguira convencê-la, como de resto soubera
fazer muitas outras vezes.
No ano anterior, Hilde comprara um livro sobre astrologia, depois chegara
a casa com cartas do “tarot” e finalmente com um livro sobre o espiritismo.
Todas as vezes o pai a advertira a respeito da superstição, fazendo apelo ao seu
“sentido crítico”, mas agora chegara a hora da vingança. O contra-ataque tinha
sido muito forte. Era evidente que a filha não tinha intenções de abandonar
aquele tipo de leituras. E ele, por precaução, aparecera na tela de um televisor
numa loja de eletrodomésticos e fizera-lhe sinal. Não era preciso aquilo...
O que a espantava mais era a moça de cabelos escuros. Sofia, Sofia, quem
és? De onde vens? Porque entraste na minha vida? Por fim, Sofia recebera um
livro sobre si mesma. Seria o mesmo que Hilde tinha nas mãos naquele
momento? Mas era apenas um “dossiê”. Tanto fazia: como era possível
encontrar num livro sobre si mesma? O que aconteceria se Sofia tivesse
começado a ler aquele livro?O que sucederia agora? O que poderia suceder?
Hilde sentiu com os dedos que faltavam poucas páginas.
No ônibus que a levava a casa, Sofia encontrou a mãe. Que diabo! O que
diria se lhe visse o livro na mão? Sofia tentou pô-lo no saco juntamente com as
serpentinas e os balões comprados para a festa, mas não conseguiu.
— Olá, Sofia! As duas no mesmo ônibus? Que bom!
— Olá...
— Compraste um livro?
— Não.— “O Mundo de Sofia” — que estranho!
Sofia compreendeu que não tinha hipótese de mentir à mãe.
— Foi o Alberto que mo deu.
— Ah! Como já te disse várias vezes, estou ansiosa por conhecê-lo. Posso
ver o livro?
— Não podes esperar até chegarmos a casa? É o meu livro, mãe.
— Está bem, é o teu livro. Quero apenas dar uma vista de olhos à primeira
página... Então: “Sofia Amundsen regressava da escola. Percorrera com Jorunn
o primeiro trecho do caminho. Tinham conversado sobre robôs...
— É mesmo o que está aí escrito?— Sim, está escrito assim mesmo, Sofia. O autor é um certo Albert Knag.
Nunca ouvi falar dele. Como se chama o teu Alberto?
— Knox.
— Vais ver que esse homem estranho escreveu um livro inteiro sobre ti,
Sofia, usando um pseudônimo.
— Não é ele, mãe. Porque é que não desistes? De qualquer modo, não
compreenderias.
— Está bem. Amanhã é a festa: nessa altura tudo voltará ao normal.
— Albert Knag vive noutra realidade. Por isso, este livro é um corvo
branco.
— Não tinhas falado de um coelho branco?— Deixa estar!
A conversa entre a mãe e a filha foi interrompida pela chegada do ônibus
à paragem de Klöverveien. Aí, Sofia e a mãe depararam com uma
manifestação.
— Meu Deus! — exclamou a mãe de Sofia. — Julgava que estávamos a
salvo de manifestações nesta zona da cidade.
Não tinha mais do que dez ou doze pessoas. Nos cartazes estava escrito:
“O MAJOR CHEGA EM BREVE!”, “VIVA A BOA COMIDA PARA A
NOITE DE S. JOÃO” e “MAIS PODER PARA A ONU!”. Sofia teve pena da
mãe.
— Não te preocupes com eles — disse.— Que manifestação tão estranha, Sofia. Quase absurda.
— Não é nada importante.
— O mundo está a mudar cada vez mais depressa. Para dizer a verdade,
não me espanta.
— Devias espantar-te de não te espantares.
— De modo algum. Estes manifestantes não são violentos. Basta que não
tenham pisado as nossas roseiras. De resto, não sei para que serve uma
manifestação num jardim. Vamos para casa para ver.
— Era uma manifestação filosófica, Mamãe. Os verdadeiros filósofos não
pisam as roseiras.
— Sabes o que te digo, Sofia? Não sei se acredito na existência de
verdadeiros filósofos: hoje em dia quase tudo é artificial.Passaram a tarde e a noite ocupadas com os preparativos. Na manhã
seguinte começaram a decorar o jardim e a pôr a mesa. Jorunn chegou e
também ajudou.
— Meu Deus! — disse. — Os meus pais também vêm à festa. Tu é que és
a culpada, Sofia. Meia hora antes da chegada dos convidados estava tudo pronto.
As árvores no jardim tinham sido decoradas com serpentinas e lampiões de
papel.
Longos cabos elétricos partiam da cave. O portão, as árvores ao longo do
carreiro que levava ao jardim e a fachada da casa estavam decoradas com
balões. Sofia e Jorunn tinham passado duas horas a enchê-los.
Sobre a mesa estava já disposta a comida: frango assado, salada e
sanduíches. Na cozinha havia um bolo com natas, outro com chocolate, roscas,
mas no centro da mesa havia um bolo gigantesco com vinte e quatro andares
sobrepostos.
Em cima do bolo via-se uma pequena moça que ia ser crismada. A mãe
de Sofia assegurou que também podia ser uma moça de quinze anos não
crismada, mas Sofia estava convencida de que a figura estava no bolo porque
Sofia afirmara há pouco tempo que ainda não sabia se queria ser crismada.— Não, não poupamos nada — repetia constantemente a sua mãe.
Depois chegaram os convidados. As primeiras foram três colegas da
escola. Traziam camisas de verão e casacos de malha leves, com saias
compridas e uma sombra de maquiagem nos olhos. Depois, foi a vez de Jörgen e
Lasse entrarem pelo portão passeando vagarosamente com um misto de timidez
e de arrogância juvenil.
— Parabéns! — Agora, também és adulta! Sofia reparou que Jorunn e
Jörgen deitavam olhares furtivos um ao outro. Havia algo no ar: era a noite de S.
João.
Todos tinham trazido um presente. Uma vez que se tratava de uma festa
filosófica, muitos convidados tinham tentado descobrir o que era a filosofia e
encontrar um “presente filosófico”; nem todos tinham conseguido, mas a maior
parte tinha-se esforçado por escrever alguma coisa filosófica nos cartões de
parabéns.
Sofia recebeu um dicionário filosófico e um diário com cadeado que dizia:
“Osmeus apontamentos filosóficos”. À medida que os convidados entravam, a
mãe de Sofia servia sumo da maçã em copos altos.
— Bem vindo! Como se chama o jovem?... Não nos conhecemos... Que
bom teres vindo, Cecília!Só depois de todos os jovens terem chegado e quando já passeavam, com
os copos na mão, debaixo das árvores de fruto, é que o “Mercedes” branco dos
pais de Jorunn estacionou em frente do portão de entrada. O conselheiro
financeiro trazia um belo fato cinzento de corte elegante, enquanto a sua mulher
trazia um fato completo — casaco e calças vermelhas com lantejoulas vermelho
— escuro. Sofia calculou que tinha comprado uma “Barbie” com este fato numa
loja de brinquedos, e ido a um alfaiate para lhe fazer um fato igual. Havia outra
possibilidade: talvez o conselheiro financeiro tivesse comprado a boneca,
levando-a a um feiticeiro, que a transformara numa mulher de carne e osso.
Mas essa hipótese era tão pouco provável que Sofia a rejeitou.
Desceram do “Mercedes” e entraram no jardim, enquanto os jovens
olhavam espantados para eles. Foi o conselheiro financeiro a entregar um
embrulho comprido e estreito da parte da família Ingebrigtsen. Sofia tentou
manter a calma quando viu que se tratava justamente de uma “Barbie”. Jorunn
estava fora de si:
— Vocês estão doidos? A Sofia já não brinca com bonecas!
A senhora Ingebrigtsen interveio precipitadamente, e as suas lantejoulas
tiniram — também pode estar exposta como adorno, Jorunn.— Muito obrigada — disse Sofia, para acalmar a tensão. — Talvez
comece uma coleção. Entretanto, os convidados já estavam à volta da mesa.
— Só falta o Alberto — disse a mãe de Sofia com um tom de voz
simultaneamente excitado e inquieto. Os convidados já lhe tinham perguntado
várias vezes quando apareceria o convidado especial, o “verdadeiro filósofo”.
— Ele prometeu que vinha, logo não tardará a chegar.
— Entretanto, porque não nos sentamos?
— Sim, sentemo-nos.
A mãe de Sofia começou a sentar as pessoas à volta da mesa. Deixou um
lugar vago entre ela e Sofia. Disse algumas coisas sobre a comida, o bom tempo
e sobre o fato de Sofia ser quase uma mulher adulta.
Estavam sentados há meia hora quando um homem de meia-idade, comuma pêra negra e uma boina entrou pelo portão. Trazia nas mãos um grande
ramo com quinze rosas.
— Alberto!
Sofia levantou-se de um pulo e correu para ele. Lançou-lhe os braços ao
pescoço e recebeu as rosas. Alberto reagiu a esta recepção começando a
remexer nos bolsos do casaco. Tirou algumas bombinhas de carnaval que
acendeu e atirou para o ar. Enquanto se dirigia para a mesa, acendeu uma vela
mágica e colocou-a em cima do bolo antes de ocupar o lugar vago entre Sofia e
a mãe.
— É um grande prazer — disse Alberto com um sorriso.
Os convidados estavam estupefatos. A senhora Ingebrigtsen lançou ao
marido um olhar eloqüente. A mãe de Sofia, pelo contrário, estava tão aliviada
pela sua chegada que se sentia disposta a perdoar-lhe qualquer coisa. A festejada
só com todo o esforço conseguiu reprimir uma risada.
A mãe de Sofia tocou no seu copo e disse:— Vamos dar as boas-vindas a Alberto Knox nesta festa filosófica! Não é
o meu novo namorado, porque se bem que o meu marido esteja sempre no mar,
não tenho nenhum namorado. Este homem é o professor de Filosofia de Sofia.
Significa que sabe mais do que acender bombinhas. Este homem é, por exemplo,
capaz de retirar um coelho vivo de uma cartola. Ou era um corvo, Sofia?
— Obrigado, obrigado — disse Alberto, e sentou-se.
— Tchin, tchin! — exclamou Sofia e os presentes elevaram os copos e
beberam à sua saúde. Ficaram sentados algum tempo a comer frango e salada.
Mas a certa altura, Jorunn levantou-se e dirigiu-se a Jörgen com um passo
decidido e beijou-o na boca. Jörgen respondeu a esta tentativa de aproximação
tentando puxá-la para si para poder retribuir melhor o beijo.
— Acho que vou desmaiar — disse a senhora Ingebrigtsen.
— À mesa não, meninos — foi o único comentário da senhora Amundsen.
— Porque não? — Alberto voltou-se para ela.
— Que pergunta estranha.— Para um verdadeiro filósofo não há perguntas estranhas.
Naquele momento, dois rapazes que não tinham sido beijados começaram
a lançar os ossos do frango ao ar. Isso provocou também um comentário da parte
da mãe de Sofia.
— Parem com isso, por favor! É tão chato ter ossos de frango nas goteiras.
— Desculpe — disse um dos jovens, e passaram a atirar os ossos pela
sebe.
— A choque chegou a hora de recolher os pratos e de servir os doces —
disse a senhora Amundsen. — Quem quer café?
O casal Ingebrigtsen, Alberto e dois dos convidados levantaram o braço.
— Sofia e Jorunn podiam-me ajudar...Enquanto iam à cozinha, as duas amigas conversaram.
— Porque é que o beijaste?
— Vi a boca dele, e tive uma vontade terrível. Ele é tão legal.
— Como foi?
— Foi diferente do que eu tinha imaginado, mas...
— Então foi a primeira vez?
— Mas não será a última.Em seguida, havia café e bolo na mesa. Alberto distribuiu bombinhas pelos
jovens, mas naquele momento a mãe de Sofia pediu novamente a palavra.
— Não tenho intenção de fazer um grande discurso, mas tenho apenas
uma filha e esta é a primeira e a última vez que ela faz quinze anos. Fê-los há
uma semana e um dia, para ser exata. Como podem ver, não poupamos em
nada. O bolo tem vinte e quatro andares, ou seja, pelo menos um para cada.
Quem se servir primeiro pode tirar dois, porque começaremos por cima, e os
andares são progressivamente maiores. O mesmo sucede com a nossa vida.
Quando Sofia era pequena, movia-se timidamente em círculos pequenos, mas,
com o passar dos anos, os círculos tornaram-se cada vez maiores. Agora,
chegam à cidade. Além disso, tendo um pai que viaja muito, Sofia telefona para
o mundo inteiro. Parabéns pelos teus quinze anos, Sofia!
— Encantador! — exclamou a senhora Ingebrigtsen.
Sofia não sabia se aludia à sua mãe, ao discurso, ao bolo ou a ela. Os
convidados aplaudiram e um dos rapazes atirou uma bombinha para uma
pereira. Naquele momento, Jorunn pôs-se de pé e tentou fazer com que Jörgen se
levantasse da cadeira. Ele deixou-se levar e ambos começaram a beijar-se
deitados na relva, depois rolaram para debaixo dos arbustos.
— Hoje em dia são as moças a tomarem a iniciativa — afirmou o
conselheiro financeiro.Com estas palavras levantou-se e foi para junto dos arbustos para ver de
perto o que se passava ali. Todos os convidados seguiram o seu exemplo. Apenas
Alberto e Sofia ficaram sentados. Em seguida, os convidados estavam em
semicírculo à volta de Jorunn e Jörgen, que tinham abandonado os beijos
inocentes e tinham passado a beijos mais audazes.
— Ninguém os consegue deter! — disse a senhora Ingebrigtsen com um
certo orgulho.
— Não, o bom sangue não mente — disse o marido.
Olhou em redor com a esperança de obter uma espécie de aprovação
pelas suas palavras bem escolhidas. Teve apenas um sinal mudo de assentimento,
e acrescentou:
— Não se pode fazer nada contra.
Mesmo de longe, Sofia reparou que Jörgen tentava desabotoar a camisa
branca de Jorunn, que já estava suja de erva. Ela tentava desapertar o cinto dele.
— Cuidado para não apanharem uma constipação — aconselhou a senhoraIngebrigtsen.
Sofia olhou para Alberto com um olhar desesperado.
— As coisas estão a precipitar-se — disse Alberto. — Temos de nos
afastar daqui o mais rapidamente possível. Farei apenas um pequeno discurso.
Sofia bateu palmas.
— Podem sentar-se de novo? Alberto quer fazer um discurso.
Com exceção de Jorunn e Jörgen, todos voltaram ao seu lugar.
— Quer realmente fazer um discurso? — perguntou a mãe de Sofia —
Que amável!
— Agradeço-lhe a atenção.— Soube que gosta de passear! É tão importante mantermo-nos em forma.
E principalmente acho simpático levar consigo um cão. Chama-se Hermes, não
é verdade?
Alberto levantou-se e bateu com a colher na xícara.
— Querida Sofia — começou. — Quero antes de mais recordar que esta é
uma festa filosófica e por isso farei um discurso filosófico.
Foi imediatamente interrompido por aplausos.
— Nesta festa animada pode ser útil uma dose de razão... Mas, em
primeiro lugar, não nos esqueçamos de dar os parabéns à aniversariante pelos
seus quinze anos. Ainda não terminara a frase quando ouviram o ruído de um
avião: o aparelho passou pelo jardim em vôo rasante. Preso à cauda havia uma
longa faixa onde estava escrito:
“Parabéns pelos teus quinze anos!”O fato desencadeou aplausos mais ruidosos.
— Como podem ver — exclamou a senhora Amundsen — este homem
não sabe apenas acender bombinhas.
— Obrigado, não foi nada. Nestas últimas semanas, Sofia e eu levamos a
cabo uma grande investigação filosófica. Nesta ocasião, queremos expor-vos as
nossas conclusões: vamos revelar o grande segredo da nossa existência.
Entre os convidados reinava um tal silêncio que era possível ouvir os
pássaros cantar e os ruídos vindos dos arbustos.
— Continua! — disse Sofia.
— Após minuciosas investigações filosóficas, que vão desde os primeiros
filósofos gregos até hoje, descobrimos que vivemos as nossas vidas na
consciência de um major que se encontra no Líbano como observador na ONU e
que escreveu um livro sobre nós para a sua filha que vive em Lillesand. Ela
chama-se Hilde Möller Knag e fez quinze anos no mesmo dia que a Sofia. O livro
que fala de todos nós encontrava-se na sua mesinha de cabeceira quando
acordou na manhã do dia 15 de Junho. Mais precisamente, trata-se de um
volumoso “dossiê”. Neste momento, ela sente as últimas páginas passarem sob oseu indicador.
Um certo nervosismo começara a espalhar-se à volta da mesa.
— A nossa existência é apenas um presente de aniversário para Hilde
Möller Knag, porque todos nós fomos criados para servir de enquadramento ao
ensinamento filosófico que o major quer dar à filha. Isto significa, por exemplo,
que o “Mercedes” branco estacionado à entrada não vale um tostão furado. Não
vale mais do que todos os “Mercedes” brancos na cabeça do pobre major da
ONU, que acaba de se sentar à sombra para evitar uma insolação. No Líbano faz
muito calor, meus amigos.
— Que loucura! — exclamou o conselheiro financeiro. — Isso é um
absurdo.
— Cada um pode pensar o que quiser, naturalmente — continuou Alberto
impassível. — Mas na verdade o absurdo é toda esta festa. Aqui, a única dose de
razão é o discurso que eu estou a fazer.
O conselheiro levantou-se e disse:— Estamos a fazer o possível para cumprirmos o nosso dever a fim de que
as coisas corram bem. Temos o cuidado de fazer seguros em relação a tudo. E
de repente, vem um relaxado imbecil que tenta destruir tudo com base em certas
afirmações “filosóficas”.
Alberto acenou afirmativamente.
— Contra esta espécie de conhecimento filosófico não há seguro que sirva.
Estamos a falar de uma coisa pior do que qualquer catástrofe natural, senhor
administrador do erário e, como bem sabe, as seguradoras não cobrem este
gênero de coisas.
— Esta não é uma catástrofe natural.
— Não, é uma catástrofe existencial. Pode dar uma olhadela aos arbustos
e compreenderá o que quero dizer.
Não podemos assegurar-nos contra a destruição da nossa existência, como
não o podemos fazer contra o desaparecimento do sol.
— E temos que nos conformar? — perguntou o pai de Jorunn à esposa, queabanou a cabeça, como a mãe de Sofia.
— Que tristeza! — disse esta. — E nós que não quisemos poupar nada.
Os jovens olhavam para Alberto fixamente. Muitas vezes, estão mais
abertos em relação a novas idéias e pensamentos do que aqueles que viveram
mais tempo.
— Gostaríamos de ouvir mais — disse um rapaz de caracóis loiros e
óculos.
— Obrigado, mas não há muito mais a acrescentar. Visto que chegamos à
conclusão de que somos uma imagem onírica da consciência sonolenta de uma
outra pessoa, quanto a mim o mais inteligente é ficarmos calados. Mas posso
concluir aconselhando aos jovens um pequeno curso de história da filosofia.
Deste modo, podem desenvolver uma atitude crítica em relação ao mundo em
que vivem, principalmente em relação aos valores da geração dos vossos pais.
Aquilo que tentei ensinar a Sofia foi justamente como pensar de modo crítico.
Hegel chamou-lhe “pensar negativamente”.
O conselheiro financeiro ainda estava de pé, tamborilando com os dedos
na mesa.— Este agitador tenta destruir todos os valores sensatos que a escola, a
Igreja e nós próprios tentamos inculcar nas gerações jovens — a geração que é o
nosso futuro e herdará um dia os nossos bens. Se ele não for afastado
imediatamente desta festa, telefono ao meu advogado. Ele saberá o que há a
fazer.
— Não tem importância nenhuma o que julga dever fazer, porque o
senhor é apenas uma sombra. Além disso, Sofia e eu deixaremos esta festa
dentro em breve. Este curso de filosofia não foi um projeto puramente teórico:
teve também um lado prático. Quando chegar a altura, faremos o truque da
evaporação. Deste modo, conseguiremos fugir da consciência do major.
Helene Amundsen segurou Sofia pelo braço.
— Não me vais deixar, pois não, Sofia?
Sofia pôs-lhe um braço à volta dos ombros e olhou para Alberto.
— A mãe vai ficar tão triste...— Não, isso é ridículo. Não te podes esquecer do que aprendeste: é
justamente deste absurdo que nos temos de libertar. A tua mãe é uma senhora
muito simpática e carinhosa, tal como o cesto da Chapeuzinho Vermelho estava
cheio de bolos para a avó. E ela está tão triste como o avião que passou há pouco
precisava de gasolina para a sua manobra.
— Acho que compreendo o que queres dizer — disse Sofia. Voltou-se de
novo para a mãe. — Por isso, tenho que fazer o que ele diz, Mamãe. De qualquer
modo, eu teria de te deixar um dia.
— Vou ter saudades tuas — afirmou a mãe — mas se existe um céu
acima deste, tens mesmo de voar. Eu prometo tomar conta de Govinda.
Costumas dar-lhe uma ou duas folhas de alface por dia?
Alberto colocou-lhe a mão nos ombros:
— Nem a senhora nem nenhuma outra pessoa aqui sentirá a nossa falta
pela simples razão de que não existem, por isso não têm meio de o fazer.
— Isto é o pior insulto que já ouvi! — exclamou a senhora Ingebrigtsen. O
conselheiro financeiro concordou.— Podemos denunciá-lo por difamação. Vais ver que é comunista. Quer
levar-nos tudo o que nos é mais querido. É um patife, um perfeito canalha...
Alberto e o conselheiro financeiro sentaram-se ao mesmo tempo. Este
tinha o rosto vermelho de raiva. Naquele momento, Jorunn e Jörgen
reapareceram e sentaram-se nos seus lugares. Tinham as roupas sujas e
amarrotadas. Os cabelos loiros de Jorunn estavam cheios de erva e terra.
— Mamãe, vou ter um bebê — anunciou.
— Está bem, mas tens de esperar até chegarmos a casa.
Teve o apoio imediato do seu marido.
— Sim, só tem de se esperar, e se quiser o batismo esta noite, tem de se
arranjar sozinha.
Alberto olhou para Sofia com uma expressão séria.— Já é hora.
— Podes trazer-nos o café antes de partires? — perguntou a sua mãe.
— Claro, mamãe, vou já.
Sofia levou os termos da mesa. Tinha de fazer mais café. Enquanto
esperava que o café estivesse pronto, deu de comer aos pássaros e aos peixes. Foi
à casa de banho e pôs uma folha de alface na caixa de Govinda. Não viu
Sherekan, mas abriu uma lata de comida para gatos e deitou o conteúdo num
prato que deixou na escada. Observou que tinha os olhos úmidos.
Quando voltou com o café, a festa mais parecia a de um grupo de crianças
pequenas do que a festa de uma moça de quinze anos. Havia muitas garrafas
deitadas pela mesa, um pedaço de bolo de chocolate estava esborrachado na
toalha, o prato com os sanduíches no chão. Quando Sofia chegou, um dos rapazes
colocou uma bombinha no bolo de nata que explodiu, lançando creme e natas
pela mesa e pelos convidados, atingindo principalmente o fato vermelho da
senhora Ingebrigtsen.Curiosamente, ela e todos os outros assistiam a tudo com a máxima calma.
Jorunn agarrou numa fatia de bolo de chocolate e espalhou-a no rosto de Jörgen.
Logo em seguida, começou a lamber-lhe a cara.
A mãe de Sofia e Alberto tinham-se sentado a alguma distância no
balanço. Fizeram sinal a Sofia.
— Finalmente vocês podem falar a sós — disse Sofia.
— E tu tinhas toda a razão — disse a mãe num tom alegre. — O Alberto é
um grande homem. Confio-te aos seus fortes braços.
Sofia sentou-se entre os dois. Dois rapazes tinham conseguido subir ao
telhado. Uma das moças furava os balões com um gancho do cabelo. Naquele
momento, chegou um intruso de moto. No porta-bagagens tinha uma caixa com
garrafas de cerveja e aguardente. Foi acolhido de braços abertos por alguns
rapazes.
Imediatamente a seguir, o conselheiro financeiro levantou-se da mesa
bateu as palmas e disse:— Vamos jogar, meninos?
Agarrou numa garrafa de cerveja, bebeu-a de um trago e pô-la no meio
da relva. Depois dirigiu-se à mesa e pegou nos cinco últimos anéis do bolo.
Mostrou aos convidados como deviam lançar os anéis para ficarem à volta do
gargalo.
— As últimas convulsões — disse Alberto. — Agora temos mesmo que
desaparecer antes que o major escreva a palavra final e Hilde feche o “dossiê”.
— Tens de arrumar tudo sozinha, Mamãe.
— Não faz mal, minha filha. Acho que esta não era vida para ti. Se Alberto
conseguir oferecer-te uma existência mais feliz, ninguém ficará mais contente
do que eu. Tem um cavalo branco, não é verdade?
Sofia olhou ao seu redor. O jardim estava irreconhecível. Havia garrafas,
ossos de frango, sanduíches e balões pisados por toda a relva.
— Este já foi o meu pequeno paraíso — disse.— E agora és expulsa dele — respondeu Alberto.
Um rapaz sentara-se no “Mercedes” branco. Pô-lo em marcha, entrou
pelo portão, fez a curva para o caminho de saibro e continuou pelo jardim dentro.
Sofia foi agarrada pelo braço. Alguém a levava para a toca. Depois, ouviu
a voz de Alberto:
— Agora!
No mesmo instante, o “Mercedes” branco bateu contra uma macieira.
Choveram maçãs verdes sobre o “capot”.
— Isto é demais! — gritou o conselheiro financeiro. Exijo uma
indenização!
A mulher apoiou-o completamente:— A culpa é desse imbecil? Onde é que ele se meteu?
— Parece que foram engolidos pela terra — disse a mãe de Sofia com um
certo orgulho.
Levantou-se, dirigiu-se para a mesa que parecia um campo de batalha e
começou a levantá-la, perguntando:
— Alguém quer mais café?

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