O despertador indicava 23.55. Hilde olhava para o teto. Tentava deixar
fluir as associações livres que lhe vinham à mente. Cada vez que o curso dos
pensamentos se interrompia, tentava compreender por que motivo não conseguia
avançar.
Seria algo que tentava recalcar?
Se conseguisse eliminar toda a censura, talvez começasse a sonhar estando
desperta, pensamento que a assustava um pouco.Quanto mais tentava descontrair-se e abrir-se aos seus pensamentos e
imagens, mais tinha a sensação de estar na cabana do major junto ao lago, no
bosque.
O que estaria Alberto a maquinar? Bom, na verdade era o pai dela que
decidira que Alberto maquinasse qualquer coisa. Mas saberia exatamente o quê?
Talvez estivesse a tentar afrouxar tanto as rédeas que Alberto o surpreendesse
por fim? Faltavam poucas páginas: deveria dar uma olhadela à última? Não, isso
não seria correto. Mas não era só isso: Hilde não tinha a certeza de que já
estivesse decidido o que sucederia na última página.
Não era uma idéia estranha?
O “dossiê” estava ali, e o pai não podia acrescentar mais nada. No
máximo Alberto, se conseguisse. A surpresa...
Mas Hilde haveria de tratar de algumas surpresas por si mesma. O major
Knag não tinha controlo sobre ela. Mas teria ela controlo sobre si mesma?
O que era a consciência?Não seria um dos maiores mistérios do universo? O que era a memória? O
que é que faz com que “recordemos” tudo o que vimos e vivemos? Que tipo de
mecanismo nos faz criar sonhos fabulosos noite após noite? Enquanto refletia
sobre estas questões, Hilde fechava por vezes os olhos. Depois abria-os de novo e
voltava a fixar o teto. Por fim esqueceu-se de os reabrir.
Dormia.
Quando acordou com os gritos das gaivotas, o despertador indicava as 6.66.
Era um número estranho! Hilde saltou da cama. Como sempre, foi à janela e
observou a enseada: tinha-se tornado um hábito, tanto no Verão como no
Inverno.
Enquanto estava ali, teve subitamente a sensação de que na sua cabeça
explodia um conjunto de cores: lembrou-se do que sonhara. Mas fora mais do
que um sonho normal. Tivera cores e contornos tão vivos...
Sonhara que o pai regressara do Líbano, e todo o sonho era como uma
continuação do sonho de Sofia quando esta encontrara o seu crucifixo de ouro.
Hilde estava sentada na doca — exatamente como no sonho de Sofia.Depois ouvira uma voz muito suave a sussurrar-lhe: “Eu chamo-me Sofia!”.
Hilde tinha ficado imóvel, tentando compreender de onde vinha aquela voz
semelhante a um fraco crepitar, como se um inseto lhe estivesse a falar: “Deves
ser cega e surda!”. Em seguida, o pai chegara ao jardim no seu uniforme da
ONU. “Hilde!”, gritara. Hilde correra em direção a ele e lançara— lhe os braços
à volta do pescoço. O sonho terminara aí.
Recordou alguns versos de um poema de Arnulf Röverland:
“Acordei uma noite de um estranho sonho, era como se uma voz me
estivesse a falar, longínqua como uma corrente subterrânea... e eu levantei-me: o
que queres de mim?”
Enquanto estava à janela, a mãe entrou no quarto.
— Bom dia! Já estás acordada?
— Não sei...
— Volto cerca das quatro, como de costume.— Está bem.
— Desejo-te um bom dia, Hilde.
— Obrigada.
Mal ouviu a porta de entrada a fechar-se, voltou à cama e abriu o “dossiê”.
“Mergulharei nas profundezas do inconsciente do major, Sofia, e ficarei lá até
nos voltarmos a ver.”
Sim, chegara até ali.
Hilde continuou a ler. Com o indicador direito, sentiu que faltavam poucas
páginas para o fim.Quando Sofia deixou a cabana do major, viu que junto ao lago ainda havia
algumas personagens de Walt Disney, mas que se diluíam à medida que se
aproximava. Quando chegou ao barco, tinham desaparecido todas.
Enquanto remava e depois de ter puxado o barco para a margem, tentou
fazer caretas e agitar os braços: tinha de chamar a atenção do major, para que
Alberto pudesse trabalhar sem ser incomodado.
Enquanto corria pelo bosque, pôs-se a saltitar.
Depois, tentou caminhar como uma boneca de corda e, por fim, para
evitar que o major se aborrecesse, começou a cantar.
Por um momento, parou para refletir procurando compreender em que é
que consistiria o plano de Alberto... Mas quando se apercebeu do seu erro, ficou
tão arrependida que subiu em uma árvore.
Subiu tão alto quanto pôde. Quando estava quase no topo, percebeu que não
conseguiria descer imediatamente. Teria de fazer uma nova tentativa mais tarde,
mas não podia ficar quieta ali em cima — o major cansar-se-ia de ficar a vê-la
e começaria à procura de Alberto para descobrir o que estava a fazer.Sofia agitou os braços, por duas vezes tentou cantar como um galo, depois
cantou à tirolesa. Era a primeira vez que o fazia e estava muito contente com o
resultado.
Tentou descer, mas estava presa. De repente, um grande ganso pousou
sobre um dos ramos ao qual Sofia se segurava. Tendo visto recentemente as
personagens de Disney, Sofia não se admirou pelo fato de o ganso começar a
falar:
— Chamo-me Morten — disse. — Na verdade sou um ganso doméstico,
mas excepcionalmente venho hoje do Líbano com gansos selvagens. Pareces
precisar de ajuda para descer.
— Mas tu és demasiado pequeno para me ajudares — respondeu Sofia.
— Uma conclusão precipitada, minha jovem. Tu é que és demasiado
grande.
— Faz alguma diferença?— Fica a saber que eu transportei um camponês por toda a Suécia.
Chamava-se Nils Holgersson.
— Eu tenho quinze anos.
— E Nils tinha catorze. Um ou dois anos de diferença não tem
importância.
— Como conseguiste levá-lo?
— Dei-lhe uma bofetada ao de leve e ele perdeu os sentidos. Quando
voltou a acordar, estava tão pequeno como um polegar.
— Então podes tentar dar-me também uma leve bofetada. Eu não posso
ficar aqui sentada eternamente. No sábado dou uma festa filosófica.
— Isso é interessante.Então este é certamente um livro de filosofia. Quando voei pela Suécia
com Nils Holgersson, fiz escala em Marbacka na região de Vãrmland. Nils
encontrou aí uma senhora de idade que tinha a intenção de escrever um livro
sobre a Suécia: seria um livro para crianças, por isso devia ser instrutivo e conter
toda a verdade, dizia sempre.
Quando ouviu o que acontecera a Nils, decidiu escrever um livro sobre
aquilo que o rapaz vira no dorso de um ganso.
— Que estranho.
— Para dizer a verdade foi uma coisa um pouco irônica porque nós já
estávamos nesse livro.
Sofia sentiu uma bofetada na face e em seguida estava muito pequena. A
árvore parecia todo um bosque, e o ganso era tão grande como um cavalo.
— Sobe — disse o animal. Sofia caminhou ao longo do ramo e subiu para o
dorso do ganso. As penas eram macias, mas estava tão pequena que picavam em
vez de fazerem cócegas. Mal encontrou uma posição cômoda, o ganso levantou
vôo. Voaram alto sobre as árvores.Sofia olhou para o lago e para a cabana do major. Lá estava Alberto a
elaborar os seus planos complicados.
— Deves contentar-te com uma breve volta panorâmica — afirmou o
ganso batendo as asas.
Depois aterrou ao pé da árvore à qual Sofia subira há pouco. Quando o
ganso tocou o solo, Sofia escorregou para o chão. Depois de alguns trambolhões
na urze, sentou-se e verificou que tinha adquirido as suas dimensões normais.
O ganso bamboleou-se à sua volta algumas vezes.
— Muito obrigada pela ajuda — disse Sofia.
— De nada. Não disseste que este é um livro de filosofia?
— Não, tu é que disseste isso.— Bom, é a mesma coisa.
Por mim, ter-te-ia levado a voar através de toda a história da filosofia, tal
como levei Nils Holgersson a voar através da Suécia. Poderíamos ter dado uma
volta por Mileto e Atenas, Jerusalém e Alexandria, Roma e Florença, Londres e
Paris, Jena e Heidelberg, Berlim e Copenhagen...
— Obrigada, já chega.
— Mesmo para um ganso muito irônico seria muito difícil voar através dos
séculos: é mais fácil sobrevoar as regiões da Suécia. Dito isto, o ganso tomou
balanço e levantou vôo.
Sofia estava exausta, mas, quando entrou para o jardim pelo carreiro,
pensou que Alberto teria certamente ficado muito satisfeito com a sua manobra
de distração: era impossível que o major tivesse conseguido pensar em Alberto
na última hora. Caso contrário, sofria de um grave desdobramento de
personalidade.
Sofia tinha acabado de entrar em casa quando a mãe chegou do trabalho.Evitara assim ter de justificar o fato de um ganso doméstico a ter ajudado a
descer de uma árvore.
Após a refeição, começaram os preparativos para a festa.
Subiram ao sótão para irem buscar um tampo de mesa de quase quatro
metros de comprimento e levaram-no para o jardim; depois foi a vez dos pés.
Queriam pôr a mesa debaixo das árvores de fruto. A última vez que
tinham utilizado a mesa fora por ocasião do décimo aniversário do casamento
dos seus pais. Sofia tinha apenas oito anos, mas lembrava-se muito bem da
grande festa ao ar livre, na qual tinham participado todos os parentes e amigos.
A previsão do tempo era ótima. Desde o violento temporal na véspera do
aniversário de Sofia não caíra uma gota de chuva. Decidiram deixar a decoração
e a toalha da mesa para sábado de manhã. A mãe de Sofia já estava satisfeita
com o fato de a mesa estar no jardim.
À tarde fizeram pão usando dois tipos diferentes de massa. Haveria frango
assado e salada. E bebidas. Sofia receava que alguns rapazes da sua turma
trouxessem cerveja.Não queria problemas.
Quando Sofia se foi deitar, a mãe quis assegurar-se mais uma vez de que
Alberto viria realmente à festa.
— É claro que vem — exclamou Sofia. — Ele até prometeu fazer um
truque filosófico.
— Um truque filosófico... Que tipo de truque?
— Bom... se ele fosse um ilusionista, faria um número de magia, tirar um
coelho branco de uma cartola, por exemplo... — Outra vez a mesma história?
— ...mas uma vez que é filósofo, faz um truque de filosofia. Afinal é uma
festa filosófica. Estás a pensar em fazer algum número?
— Sim, não te preocupes.— Um discurso?
— Não digo nada. Boa noite!
Na manhã seguinte, Sofia foi acordada pela mãe que se queria despedir
antes de ir trabalhar. Deu a Sofia uma pequena lista de coisas que ela devia
comprar na cidade para a festa.
Mal saíra, o telefone tocou: era Alberto. Já sabia quando Sofia estava
sozinha em casa.
— Como vai o teu plano secreto?
— Chiu! Nem uma palavra. Ele não pode ter sequer a possibilidade de
pensar sobre isso.
— Acho que o distraí muito bem ontem.— Isso é bom.
— E a filosofia?
— É por isso que telefono. Já chegamos ao nosso século e a partir de agora
devias conseguir orientar-te sozinha. A coisa mais importante eram as bases.
Todavia, temos de nos encontrar para falarmos um pouco sobre o nosso tempo.
— Mas tenho que ir à cidade...
— Perfeito. Não te disse que vamos falar sobre o nosso tempo?
— E então?
— Será muito bom encontrarmo-nos lá.— Vou a tua casa?
— Não, não. Aqui há muita confusão! Ando à procura de microfones
escondidos por toda a parte.
— Ah...
— Abriram um bar novo na praça principal, o Café Pierre. Sabes onde é?
— Sim. A que hora nos encontramos?
— Pode ser ao meio-dia?
— Ao meio-dia no café.— Ficamos assim.
— Adeus.
Dois minutos após o meio-dia, Sofia entrou no Café Pierre. Era um dos
novos cafés na moda com mesinhas redondas e cadeiras negras e garrafas
voltadas e suspensas, baguetes e sanduíches.
O café não era muito grande, e Sofia apercebeu-se logo de que Alberto
não estava lá.
Havia muitas pessoas sentadas nas mesinhas, mas nenhuma tinha o rosto
de Alberto.
Não estava habituada a ir sozinha a cafés. Deveria sair e voltar mais tarde
para ver se Alberto tinha chegado?
Dirigiu-se ao balcão de mármore e pediu um chá de limão. Depois pegou
na xícara e foi sentar-se numa mesa livre. Fixou a porta de entrada. Muitas
pessoas entravam e saíam, mas Alberto não chegava.Se ao menos tivesse um jornal!
Passado um pouco, não resistiu à tentação de olhar em seu redor e alguém
lhe devolveu o olhar: por um momento sentiu-se uma mulher jovem.
Tinha apenas quinze anos, mas podia aparentar dezessete — ou pelo menos
dezesseis e meio.
O que pensariam todas aquelas pessoas sobre o fato de existirem? Quase
parecia que estavam simplesmente ali, que estavam sentadas por acaso.
Discutiam e gesticulavam, mas não pareciam falar de algo importante.
De repente, veio-lhe à mente o que Kierkegaard dissera: a característica
mais importante da multidão era a tagarelice irrelevante. Todas aquelas pessoas
viviam então no estado estético? Ou haveria algo realmente importante
existencialmente?Numa das suas primeiras cartas, Alberto escrevera que havia uma ligação
entre crianças e filósofos. Sofia pensou novamente que tinha medo de se tornar
adulta. E se acabasse por entrar no pêlo do coelho branco que é retirado da
cartola negra do universo?
Se bem que estivesse concentrada nos seus pensamentos, Sofia não
perdera de vista a porta de entrada. Alberto entrou de repente. Apesar de ser
Verão, trazia uma boina negra e um principalmente cinzento de meio
comprimento com padrão espinhado. Ele viu-a imediatamente e foi ter com ela.
Sofia pensou que um encontro com ele em público era algo
completamente novo.
— É meio-dia e um quarto! Seu pateta!
— Chama-se o quarto de hora acadêmico. Posso oferecer algo de comer à
jovem?
Sentou-se e fixou-a nos olhos. Sofia encolheu os ombros.
— Está bem. Pode ser um sanduíche.Alberto foi ao balcão. Voltou com uma xícara de café e baguetes grandes
com queijo e fiambre.
— Foi caro?
— Uma ninharia, Sofia.
— Não tens pelo menos uma desculpa para justificares o teu atraso?
— Não, não tenho, porque cheguei atrasado de propósito. Vou-te já
explicar o porquê.
Deu algumas mordidelas no seu sanduíche e depois disse:
— Agora vamos falar do nosso século.— Houve alguma coisa importante na filosofia?
— Muitas coisas, tantas que se estendem a todos os domínios. Para
começar falaremos de uma corrente que se chama “existencialismo”. Este
termo reúne diversas correntes filosóficas que têm como ponto de partida a
situação existencial do homem. Falamos também da filosofia existencial do
século XX. Muitos dos pensadores que se podem chamar existencialistas
basearam as suas idéias não apenas em Kierkegaard mas também em Hegel e
Marx.
— Ah... — Um outro filósofo que teve muita influência no século XX foi o
alemão “Friedrich Nietzsche” que viveu entre 1844 e 1900. Nietzsche também
reagiu à filosofia de Hegel e ao “historicismo” ale-mão proveniente dela. A um
interesse anêmico pela história contrapôs a própria vida. Exigia uma
“transformação de todos os valores”. Recusava principalmente a moral cristã —
a que chamou “moral dos escravos” — para que a força vital dos fortes não
fosse reprimida pelos fracos. Segundo Nietzsche, tanto o cristianismo como a
tradição filosófica se tinham afastado do mundo verdadeiro e dirigido para o
“céu” ou o “mundo das idéias”. Eram considerados o “verdadeiro mundo”, mas
eram na realidade um mundo falso. “Sede fiéis à terra”, disse. “Não deis ouvidos
àqueles que vos oferecem esperanças sobrenaturais.”
— Bem...
— Um filósofo existencialista que foi influenciado por Kierkegaard e porNietzsche foi o alemão “Martin Heidegger”. Mas vamos concentrar-nos no
existencialista francês “Jean-Paul Sartre”, que viveu entre 1905 e 1980.
Foi o filósofo existencialista mais influente, pelo menos para o grande
público. Elaborou o seu pensamento principalmente nos anos 40, após a II Guerra
Mundial. Em seguida aderiu ao movimento marxista francês, mas nunca foi
membro de nenhum partido.
— É por esse motivo que nos encontramos num café francês?
— Digamos que não foi por acaso. O próprio Sartre era um freqüentador
assíduo de cafés. Foi justamente num destes que encontrou a companheira da sua
vida, “Simone de Beauvoir”. Também ela foi uma filósofa existencialista.
— Uma filósofa?
— Sim.
— Já era tempo de a humanidade se tornar civilizada. — Mas a nossa
época é também um período de grandes preocupações.— Ias falar do existencialismo.
— Sartre afirmou: “Existencialismo é humanismo.” Significa que o
existencialismo parte exclusivamente do homem. Podemos acrescentar que o
humanismo de Sartre vê a situação do homem de uma forma diferente e mais
sombria do que o humanismo do Renascimento.
— E por quê?
— Kierkegaard e alguns existencialistas do nosso século eram cristãos, mas
Sartre defende o que chamamos um existencialismo ateu.
A sua filosofia pode ser considerada uma análise impiedosa da situação
humana desde que “Deus morreu”, uma expressão de Nietzsche.
— Continua!— A palavra-chave da filosofia de Sartre, como para Kierkegaard, é
“existência”, um termo que não significa o mesmo que “existir”. Também as
plantas e os animais existem, ou seja, vivem, mas não sabem o que isso
“significa”.
O homem é o único ser vivo consciente da sua existência. Sartre diz que as
coisas físicas são “em si”, mas o ser humano é também “para si”. Ser homem é,
portanto, diferente de ser uma coisa.
— Estou de acordo.
— Sartre afirma também que a existência humana é anterior ao seu
significado: o fato de eu existir é anterior ao que eu sou. “A existência precede a
essência”, afirmou.
— Que frase complicada.
— Com essência entendemos aquilo que uma coisa é realmente, a
“natureza” de uma coisa. Para Sartre, o homem não tem nenhuma natureza
deste gênero, por isso deve criar-se a si mesmo: deve criar a sua natureza ou
“essência” porque esta não está dada a “priori”.— Acho que compreendo o que queres dizer.
— Durante toda a história da filosofia, os filósofos tentaram responder à
questão de o que é um homem — ou qual é a natureza do homem. Segundo
Sartre, por seu lado, o homem não possui nenhuma “natureza” eterna. Por isso é
inútil procurar o significado da vida em geral.
Por outras palavras, estamos condenados a improvisar.
Somos como atores que são mandados para cena sem ter um papel, um
guia ou um ponto que nos possa sussurrar aquilo que devemos fazer. Nós próprios
temos de escolher como queremos viver.
— De certo modo é verdade.
Seria bom se bastasse consultarmos a Bíblia ou um manual de filosofia
para sabermos como devemos viver.
— Compreendeste. Mas quando o homem sente que vive, e que vai morrerum dia, e principalmente quando não vê sentido em tudo isto, gera-se a
“angústia”, segundo Sartre. Talvez te lembres de que a angústia era também um
elemento importante na descrição que Kierkegaard fizera do homem que se
encontra numa situação existencial. — Sim, lembro-me.
— Sartre diz ainda que o ser humano se sente “estranho” num mundo
privado de sentido.
Quando descreve a “alienação” do homem, aceita idéias centrais de Hegel
e de Marx. A sensação humana de se ser um estranho no mundo gera um
sentimento de desespero, tédio, náusea e absurdo.
— É normal sentir-se deprimido ou frustrado.
— Sim, Sartre descreve o homem do século XX. Recordas que os
humanistas renascentistas tinham afirmado quase triunfalmente a liberdade e a
independência do homem?
Sartre sentia a liberdade humana como uma maldição. “O homem está
condenado a ser livre”, afirmou. Condenado porque não se criou a si mesmo,
mas, todavia, é livre, porque quando é posto no mundo é responsável por tudo o
que faz.— Não pedimos a ninguém que nos criasse como seres livres.
— É essa a questão, segundo Sartre. Porém, nós “somos” indivíduos livres
e a nossa liberdade faz com que durante toda a vida estejamos condenados a
escolher. Não existem nem valores eternos nem normas pelas quais nos
possamos orientar. Por isso é ainda mais importante a “escolha” que fazemos,
porque somos totalmente responsáveis pelas nossas ações. Sartre põe em
evidência justamente o fato de o homem não poder negar a sua responsabilidade
pelo que faz: deve tomar as suas decisões e não pode, para se subtrair a essa
responsabilidade, afirmar que “devemos” trabalhar ou “devemos” orientar-nos
por determinadas perspectivas burguesas acerca do mundo no qual “devemos”
viver.
Quem se envolve assim na massa anônima é apenas um homem
massificado e impessoal: foge de si mesmo e vive uma vida de mentiras. A
liberdade humana, pelo contrário, impõe-nos que façamos algo de nós mesmos,
que existamos “de um modo autêntico”.
— Compreendo.
— Isso é válido principalmente para as nossas escolhas éticas. Não
podemos nunca atribuir a culpa à “natureza humana”, à “fraqueza humana”, ou
coisa semelhante. Por vezes sucede que certos homens se comportam de modo
ignóbil e empurram a sua responsabilidade para o “velho Adão”, que
supostamente têm em si. Mas esse “velho Adão” não existe, é apenas umapersonagem a que recorremos para fugirmos à nossa responsabilidade.
— Devia haver um limite para aquilo de que o homem pode ser acusado.
— Se bem que Sartre afirme que a vida não tem significado algum a
“priori”, isso não significa que queira que seja assim: Sartre não era um
“niilista”.
— O que é isso?
— Um niilista é uma pessoa para a qual nada tem significado e tudo é
possível. Para Sartre, a vida deve ter um significado, mas somos nós que o
devemos criar para a nossa vida: existir é criar a nossa própria existência.
— Podes explicar isso um pouco melhor?
— Sartre tenta demonstrar que a consciência não é nada antes de perceber
alguma coisa, porque consciência é sempre consciência de alguma coisa. E essa
coisa depende tanto de nós como do ambiente que nos rodeia: nós próprios temos
um papel ativo no que percebemos, escolhendo o que é importante para nós.— Tens um exemplo?
— Duas pessoas podem estar presentes no mesmo local e senti-lo de um
modo completamente diferente, porque, quando percebemos o mundo externo,
fazemo-lo partindo do nosso ponto de vista ou dos nossos interesses. Por exemplo,
uma mulher grávida pode ter a sensação de ver grávidas em todo o lado. Isso não
significa que antes não houvesse, mas a gravidez fez com que o mundo adquirisse
para ela um novo significado. Uma pessoa doente pode ver ambulâncias por toda
a parte...
— Acho que compreendo.
— A nossa existência contribui, portanto, para determinar o modo como
percebemos as coisas: se uma coisa não é importante para mim, não a vejo.
Agora posso explicar-te o motivo do meu atraso.
— Disseste que foi de propósito, não é verdade?
— Quero saber o que viste quando entraste aqui.— A primeira coisa em que reparei foi que tu não estavas.
— Não é um pouco estranho que a primeira coisa que tenhas visto fosse
algo que não estava aqui?
— Talvez, mas eu tinha um encontro contigo.
— Sartre serve-se justamente de um encontro no café para explicar o
modo como nós “destruímos” o que não tem importância para nós.
— Foi apenas para mostrar isso que chegaste atrasado?
— Sim, eu queria que compreendesses esse ponto importante na filosofia
de Sartre. Podes vê-lo como um pequeno exercício.
— Safa!— Se estás apaixonada e esperas uma chamada do teu namorado, “ouves”
durante todo o tempo que não te telefona. Reparas justamente no fato de ele não
te telefonar. Se tens de ir ter com ele à estação, e há um mar de gente nas
plataformas, tu não vês as pessoas: apenas perturbam, são insignificantes para ti.
Se calhar até as achas desagradáveis e repugnantes. Ocupam muito espaço. A
única coisa em que reparas é que ele não está lá.
— Compreendo.
— Simone de Beauvoir tentou aplicar o existencialismo à análise dos
papéis dos sexos. Sartre tinha afirmado que o homem não tem uma natureza
eterna a que se agarre. Nós próprios criamos o que somos.
— Sim?
— Isso também se aplica à nossa concepção dos sexos. Simone de
Beauvoir defende que não existe uma “natureza feminina” e uma “natureza
masculina”. Mas esta é a opinião tradicional. Por exemplo, afirmou-se sempre
que o homem tem uma natureza “transcendente”, ou seja, que supera o mundo
sensível, e por isso procura sempre um significado e um objetivo fora do domínio
doméstico. E que a mulher, pelo contrário, tem uma orientação de vida oposta:
ela é “imanente”, ou seja, quer estar onde está. Por isso se preocupa com a
família, com a natureza e com as coisas próximas. Hoje diz-se que a mulher está
mais interessada do que o homem nos aspectos mais suaves e doces da vida.— Mas Simone de Beauvoir pensava desse modo?
— Não, não me ouviste com atenção. Segundo Simone de Beauvoir não
existe uma natureza feminina ou masculina desse gênero. Pelo contrário:
segundo ela, as mulheres e os homens devem libertar-se desses preconceitos.
— Estou de acordo.
— O seu livro mais importante foi publicado em 1949 e tinha o título “O
Segundo Sexo”.
— O que é que queria dizer com esse título?
— Pensava na mulher, que na nossa cultura foi sempre considerada o
“segundo sexo”. Só um homem aparece como sujeito nesta cultura. A mulher é
tratada como o objeto do homem e por isso é privada da responsabilidade pela
sua vida.— Continua.
— Para Simone de Beauvoir, a mulher deve reconquistar esta
responsabilidade. Deve recuperar-se a si mesma e não ligar a sua identidade ao
homem. Com efeito, não é apenas o homem que oprime a mulher, a mulher
também se reprime a si mesma não assumindo a responsabilidade pela sua vida.
— Somos nós que decidimos de que modo queremos ser livres e
independentes?
— Exato. O existencialismo também influenciou a literatura desde os anos
quarenta até hoje. Isso é válido principalmente para o teatro. O próprio Sartre
escreveu romances e obras teatrais. Outros autores importantes são o francês
“Albert Camus”, o irlandês “Samuel Beckett”, o romeno “Eugène Ionesco” e o
polaco “Witold Gombrowicz”. A característica comum a estes e a muitos outros
escritores, foi a tendência para enfatizar a presença do “absurdo” na vida, um
termo que é usado principalmente quando se fala de teatro.
— Bom.
— Compreendes o que se entende por “absurdo”?-Não significa uma coisa
que não tem sentido ou é irracional?— Exato. O “teatro do absurdo” nasceu por contraposição ao “teatro
realista” e queria mostrar em cena a falta de sentido da existência. Esperava-se
que os espectadores não apenas vissem, mas também reagissem. Mas não se
tratava de um culto do absurdo. Pelo contrário, mostrando e pondo a nu o
absurdo, por exemplo, nos acontecimentos de todos os dias, o público era forçado
a refletir na possibilidade de uma existência mais autêntica e verdadeira.
— Continua.
— Muitas vezes, o teatro do absurdo apresenta situações completa-mente
banais: por isso podemos falar de uma espécie de “hiperrealismo”. O homem é
representado exatamente como é. Mas se se mostra no palco de um teatro aquilo
que acontece numa casa de banho de um dia qualquer numa casa qualquer, o
público começa a rir. Este riso pode ser interpretado como uma defesa por se ser
posto a nu em cena. — Sim, é possível.
— O teatro do absurdo também pode ter conotações surrealistas: muitas
vezes as personagens encontram-se enredadas nas situações mais improváveis e
quase oníricas. Se aceitam tudo sem se espantarem, o público é obrigado por seu
lado a reagir com perplexidade. Isto também vale para os filmes mudos de
“Charles Chaplin”: o aspecto cômico das suas obras cinematográficas consiste
freqüentemente na ausência de espanto do protagonista perante as situações
absurdas nas quais se encontra. O público é levado a entrar em si mesmo para
procurar algo mais verdadeiro e mais autêntico.— É incrível ver como as pessoas toleram certas situações.
— Por vezes pode ser melhor “fugir”, mesmo que não se saiba aonde ir.
— Se a casa arde, devo deixá-la mesmo que não tenha outra onde ir
morar. — Sim, é mesmo assim. Queres mais chá, ou preferes uma “coca-cola”?
— Pode ser coca-cola. De qualquer modo não devias ter chegado
atrasado. Alberto voltou com um expresso e uma “coca-cola”.Enquanto isso,
Sofia tinha chegado à conclusão de que lhe agradava a vida nos cafés. Já não
estava tão convencida de que as conversas nas outras mesas eram tão
insignificantes. Alberto bateu com a garrafa da “coca-cola” na mesa: o ruído fez
alguns dos presentes voltarem-se.
— E com isto chegamos ao fim — disse.
— Queres dizer que a história da filosofia termina com Sartre e o
existencialismo?
— Não, seria um exagero dizer isso. O existencialismo teve uma grande
importância em todo o mundo. Como vimos, tinha as suas raízes na história, eatravés de Kierkegaard poder-se-ia voltar a Sócrates. Outras correntes filosóficas
do passado também tiveram seguimento no nosso século.
— Podes dar-me exemplos? — O “neo-tomismo” recupera idéias que
pertencem à tradição de S. Tomás de Aquino.
A chamada “filosofia analítica” ou o “empirismo lógico” parte de Hume e
do empirismo britânico e da lógica de Aristóteles. E, além disso, no nosso século,
o “neo-marxismo”, com todas as suas diferentes ramificações, teve uma grande
importância. Já falamos sobre “neo-darwinismo” e depois sobre a influência da
“psicanálise” na cultura e na filosofia do nosso século.
— Compreendo.
— Uma última corrente que vale a pena citar é o materialismo, que tem
raízes profundas na história. A ciência moderna pode sugerir-nos um
paralelelismo com os esforços dos pré-socráticos: por exemplo, continua à
procura daquela “partícula elementar” indivisível da qual é formada toda a
matéria. Mas ninguém nos consegue ainda explicar com exatidão o que é a
“matéria”.
As ciências modernas, por exemplo, a física nuclear ou a bioquímica, são
tão fascinantes que se tornaram uma parte importante na concepção de vida de
muitas pessoas.— Um misto de velho e novo, portanto.
— Podemos dizer isso porque as mesmas perguntas com que iniciamos o
nosso curso não tiveram ainda uma resposta. Sartre tocou um ponto importante
ao dizer que as questões existenciais nunca terão uma resposta definitiva: uma
questão filosófica é por definição uma coisa que cada geração, sim, cada ser
humano, deve colocar a si mesmo novamente.
— Um pensamento um pouco triste.
— Não sei se estou de acordo. Não é justamente colocando-nos estas
questões que sentimos que estamos vivos? Além disso, não sucedeu sempre que
quando o homem se esforçou por encontrar uma resposta às grandes questões,
encontrou respostas claras e definitivas a questões menores? Ciência,
investigação e técnica nasceram, por assim dizer, da reflexão filosófica. No
fundo, não foi o espanto do homem pela existência que o levou por fim à Lua?
— É verdade.
— Quando Neil Armstrong pôs o pé na lua, comentou: “É um pequenopasso para o homem, mas um grande salto para a humanidade”. E incluía assim
todos os homens que viveram antes dele na sensação que sentia dando o primeiro
passo na Lua. Não era apenas mérito seu.
— Claro que não.
— O nosso tempo também teve de defrontar problemas completamente
novos, principalmente os ambientais. Uma nova corrente filosófica surgiu, a
filosofia ecologista, ou “ecofilosofia”. Muitos filósofos ecologistas mostraram que
toda a civilização ocidental está na via errada, em rota de colisão com aquilo que
o nosso planeta pode suportar. Estes filósofos tentaram ir mais fundo, para além
dos fenômenos concretos de poluição e destruição ambiental, e concluíram que
há algo de errado no próprio modo de pensar do Ocidente.
— Acho que têm razão.
— Os filósofos ecologistas debateram, por exemplo, o próprio conceito de
desenvolvimento. Este conceito baseia-se na premissa de que o homem é
superior na natureza, que é o seu dono. Precisamente este modo de pensar pode
ser perigoso para toda a vida do planeta. — Irrito-me sempre que penso nisso. —
Na sua crítica a este modo de pensar, os ecofilósofos tiveram em conta as idéias
e reflexões de outras culturas, por exemplo, a indiana. Estudaram também o
modo de pensar dos chamados “povos primitivos”, para retornar àquilo que
perdemos.— Compreendo.
— Nos próprios meios científicos muitas vozes se levantaram nos últimos
anos para explicar que o nosso modo científico de pensar se encontra perante
uma “mudança paradigmática”, ou seja, uma trans-formação fundamental. Em
alguns campos específicos vimos já os primeiros frutos, por exemplo, em
“movimentos alternativos” que põem a tônica num pensamento global e
trabalham para um novo estilo de vida.
— Isso é bom.
— Todavia, como sempre em tudo o que os homens fazem, temos de
separar o trigo do joio. Alguns anunciaram que estamos a entrar numa nova
época, ou “New Age”. Mas nem tudo o que é novo é melhor, assim como nem
tudo o que é velho deve ser deitado fora. Também por este motivo te ofereci um
curso de filosofia: agora tens uma bagagem histórica tal que te permitirá
orientares-te sozinha na vida.
— Obrigada pela atenção.
— Verificarás, acho, que muito do que é entendido por New Age é apenas
absurdo. “Neo-religiosidade”, “neo-ocultismo”, “superstição moderna”
invadiram o mundo moderno nas últimas décadas. Tornaram-se uma grande
indústria. Aproveitando a menor influência do cristianismo, as novas ofertas nomercado das concepções de vida apareceram como cogumelos.
— Tens um exemplo?
— A lista é tão extensa que nem ouso começar. De resto, não é fácil
descrever o nosso próprio tempo. Mas agora proponho-te irmos dar uma volta
pela cidade, quero mostrar-te uma coisa.
Sofia encolheu os ombros.
— Não tenho muito tempo. Não te esqueceste da festa de amanhã, pois
não?
— Claro que não, porque vai acontecer alguma coisa extraordinária.
Temos apenas que terminar o curso de filosofia de Hilde. O major não pensou
em mais nada e por isso perderá também uma parte da sua vantagem.
Levantou a garrafa da “coca-cola”, que já estava vazia, e bateu com ela
na mesa. Saíram para a rua. Pessoas muito apressadas corriam de um lado para
o outro ocupadas como formigas num formigueiro. Sofia perguntou a si mesma
que coisa lhe quereria Alberto mostrar. Passaram junto a uma loja deeletrodomésticos: vendiam de tudo, desde televisores a câmaras de vídeo, das
antenas parabólicas aos telefones portáteis, dos computadores ao telefax. Alberto
apontou para a vitrina da loja e disse:
— Eis o século XX, Sofia. A partir do Renascimento podemos dizer que o
mundo explodiu: os europeus começaram então a viajar por todo o mundo. Hoje
sucede o contrário: podemos chamar-lhe uma explosão ao contrário, ou
“implosão”.
— O que queres dizer?
— Quero dizer que o mundo está concentrado numa única rede de
comunicação: não passou muito tempo desde que os filósofos tinham de viajar de
cavalo e carroça para se encontrarem com outros pensadores ou conhecer o
mundo. Hoje podemos encontrar-nos em qualquer parte do mundo e
recolhermos toda a informação humana numa tela de computador.
— É uma idéia fantástica, mas simultaneamente um pouco assustadora.
— O problema é se a história se está a aproximar do fim ou se pelo
contrário estamos no limiar de uma nova era. Já não somos apenas cidadãos de
uma cidade ou de um único Estado, vivemos numa civilização planetária.— É verdade.
— O desenvolvimento técnico, principalmente no que diz respeito às
comunicações, foi mais rápido nos últimos trinta, quarenta anos, do que em toda
a história. Talvez seja apenas o início...
— Era isto que me querias mostrar?
— Não, é do outro lado da igreja, lá em baixo.
Quando se preparavam para prosseguir, na tela de um televisor apareceu a
imagem de alguns soldados da ONU.
— Olha! — exclamou Sofia.Via-se um soldado em grande plano. Tinha
quase a mesma barba negra de Alberto.De repente, levantou um cartaz onde
estava escrito: “Chego dentro em pouco, Hilde!”. Acenou e depois desapareceu.
— É louco! — exclamou Alberto.— Era o major?
— Nem quero responder.
Atravessaram o parque em frente à igreja e chegaram à rua principal.
Alberto estava ligeiramente nervoso e, naquele momento, apontou para uma
livraria. Chamava-se Libris e era a maior da cidade.
— Queres mostrar-me alguma coisa aqui?
— Vamos entrar. Na livraria, Alberto apontou para a estante maior. Tinha
três secções: NEW AGE, ESTILOS DE VIDA ALTERNATIVOS E
MISTICISMO.
Nas estantes, havia livros com títulos muito empolgantes:
“Haverá Vida para Além da Morte?, Os Segredos do Espírito, Tarot, OFenômeno OVNI, Healing, O Regresso dos Deuses, A Reencarnação, O Que é a
Astrologia?”, e muitos outros. Havia mais de cem títulos diferentes. Sobre um
banco via-se uma pilha de livros semelhantes.
— Isto também é o século XX, Sofia. Este é o templo do nosso tempo.
— Não acreditas nestas coisas?
— Muito disto é absurdo, mas vende tão bem como pornografia. De fato,
muito do conteúdo destes livros pode ser definido como uma espécie de
pornografia. Aqui, os jovens podem comprar exatamente aquilo que mais lhes
interessa. Todavia, a relação entre a verdadeira filosofia e estes livros é
comparável à relação que existe entre o amor verdadeiro e a pornografia.
— Não estarás a exagerar?
— Vamos sentar-nos no parque.
Saíram da livraria e encontraram um banco livre em frente à igreja.
Debaixo das árvores, alguns pombos pavoneavam-se e havia um ou outro pardal
agitado.— É a parapsicologia ou PES — explicou Alberto. — Ou “telepatia”,
“clarividência”, “psicocinética”, ou “espiritismo”, “astrologia” e “ovnilogia”.
— Mas diz-me: achas que isso é tudo uma fraude?
— Não seria digno de um filósofo tratar tudo da mesma maneira. Mas não
quero excluir a hipótese de que os termos que referi possam formar um mapa
bastante detalhado de uma paisagem que não existe. E há muito daquilo a que
Hume chamava “ilusão e engano” e queria lançar às chamas. Em muitos destes
livros não se encontra uma única experiência autêntica.
— Mas então porque são escritos tantos livros deste gênero?
— É um dos negócios mais lucrativos do mundo e é isto que muitas pessoas
gostam de ler.
— E porque é que achas que gostam de ler estas coisas?— Porque sentem um desejo de algo “místico”, de algo “diferente” que
quebre a monotonia do quotidiano. É andar à procura de uma coisa que está à
frente do nariz.
— O que queres dizer?
— Fazemos parte de uma aventura maravilhosa. Em frente a nós há uma
obra, a criação. À luz do dia, Sofia! Não é inacreditável?
— Sim.
— Porque havíamos de ir à procura da cigana que lê a sina ou de saguões
acadêmicos para experimentar algo de “empolgante” ou “transcendente”?
— Achas que aqueles que escrevem estes livros contam apenas mentiras?
— Não, não foi isso que eu disse. Vou-te explicar de um modo darwinista.— Estou a ouvir!
— Pensa em tudo o que se passa no decorrer de um único dia. Limita-te a
um dia da tua vida. Pensa em tudo o que vês e experimentas.
— Sim?
— Por vezes, há coincidências estranhas. Entras numa loja, por exemplo, e
gastas vinte e oito coroas. Mais tarde encontras Jorunn que te restitui as vinte e
oito coroas que lhe tinhas emprestado, finalmente vão ao cinema e dão-te o lugar
número vinte e oito.
— Sim, seria uma estranha coincidência.
— Mas seria uma coincidência. A questão é que algumas pessoas
“recolhem” coincidências deste tipo. Reúnem-se experiências misteriosas ou
inexplicáveis e quando elas, fruto da vida de alguns milhares de pessoas, são
reunidas num livro, podem dar a impressão de ser um imponente material de
prova. E o material aumenta constantemente. Mas neste caso, também estamos
perante uma loteria onde apenas os bilhetes vencedores são visíveis.— Não há pessoas videntes ou “médiuns” que têm experiências destas
constantemente?
— Sim, há. E se excluirmos os vigaristas, encontramos também uma outra
explicação para essas experiências místicas”.
— Diz!
— Recordas que falamos de Freud e da sua teoria do inconsciente?
— Quantas vezes tenho de te dizer que a minha memória é boa?
— Já Freud mostrara que muitas vezes nos podemos comportar como se
fôssemos médiuns do nosso inconsciente. Podemos fazer ou dizer coisas de
repente sem conseguirmos compreender o porquê. O motivo disso é o fato de nós
termos mais experiências, pensamentos e recordações do que aqueles de que
temos consciência.
— E então?— Por vezes, as pessoas falam ou andam enquanto dormem. Chamamos a
este gênero de fenômenos “automatismo psíquico”. Mesmo sob hipnose, os
homens podem dizer ou fazer coisas que sucedem “por si”. E lembras-te dos
surrealistas, que tentavam escrever “automatic-mente”. Tentavam tornar-se
assim médiuns da sua própria consciência.
— Ainda me lembro disso.
— Com intervalos regulares, neste século, surgem notícias de homens, de
médiuns, que conseguem entrar em contato com defuntos. Falando com a voz do
morto, ou servindo— se da escrita automática, o médium receberia uma
mensagem de um ser humano que tinha vivido há muitos séculos. Estes fatos são
usados como prova de que existe uma vida além da morte ou de que um homem
vive muitas vidas.
— Compreendo.
— Não estou a dizer que todos estes médiuns sejam vigaristas: alguns
agiram de boa fé. De fato, foram médiuns, mas do seu inconsciente. Houve
bastantes médiuns que em estado de transe mostraram capacidades e
conhecimentos que nem eles próprios nem os outros sabiam explicar. Por
exemplo, uma mulher que não sabia hebraico, começou a falar nessa língua. Das
duas uma: ou tinha vivido uma vida anterior ou estava em contato com o espírito
de um morto.— O que te parece?
— Soube-se depois que a mulher tinha tido uma “baby -sitter” judia quando
era pequena...
— Ah...
— Ficaste desiludida? De qualquer modo, é fantástico ver até onde vai a
capacidade de algumas pessoas de acumularem no inconsciente experiências
anteriores.
— Compreendo o que queres dizer.
— Muitas coisas estranhas quotidianas também podem ser explicadas à luz
da teoria do inconsciente. Se recebo uma chamada de um amigo que não vejo há
muitos anos, justamente quando estava à procura do seu número de telefone...— Sinto um arrepio...
— A explicação pode ser, por exemplo, que ambos ouvimos uma velha
canção na rádio, uma canção que ouvimos juntos na última vez que nos vimos. O
ponto fundamental é o fato de esta relação oculta não ser consciente...
— Então, ou é trapaça... ou o truque do bilhete vencedor na loteria... ou o
inconsciente?
— De qualquer modo, é melhor aproximarmo-nos com ceticismo destas
estantes, principalmente para um filósofo. Em Inglaterra existe uma associação
dos cépticos. Há muitos anos, esta associação ofereceu uma grande soma de
dinheiro à primeira pessoa que conseguisse um único exemplo verificável de
uma coisa sobrenatural. Não era necessário ser um milagre, bastava um pequeno
exemplo de transmissão de pensamento. Até agora, ninguém se apresentou.
— Compreendo.
— Uma coisa completamente diferente é admitirmos que há muitas coisas
que não compreendemos. Talvez não conheçamos ainda todas as leis da
natureza. No século passado, muita gente considerava o magnetismo e a
eletricidade como uma espécie de magia. Aposto que a minha bisavó abriria os
olhos de espanto se eu lhe falasse da televisão ou dos computadores.— Então não acreditas em nada de sobrenatural?
— Já falamos disso. A própria expressão “sobrenatural” é um pouco
bizarra. Não, acho que existe uma única natureza, que em compensação é
espantosa.
— E todos aqueles fenômenos de que falam os livros que me mostraste?
— Todos os verdadeiros filósofos devem manter os olhos abertos. Mesmo
que não tenhamos visto nenhum corvo branco, não devemos deixar de o
procurar. E um dia, mesmo um céptico como eu será obrigado a aceitar um
fenômeno em que não acreditara anteriormente. Se não mantivesse aberta esta
possibilidade, seria um dogmático, e não um verdadeiro filósofo.
Sofia e Alberto ficaram sentados no banco em silêncio.
Os pombos estendiam o pescoço e arrulhavam, e de quando em quando
assustavam-se com uma bicicleta ou com o movimento brusco de um transeunte.— Tenho de ir para casa preparar a festa — disse por fim Sofia.
— Mas antes de nos separarmos, quero mostrar-te um corvo branco. Está
mais próximo do que pensamos.
Levantou-se e fez sinal para entrarem de novo na livraria.
Desta vez passou por todos os livros sobre fenômenos sobrenaturais para
parar em frente de uma estante muito pequena que se encontrava no fundo da
livraria. Sobre a estante estava escrito FILOSOFIA. Alberto indicou um livro e
Sofia teve um sobressalto quando leu o título: O MUNDO DE SOFIA.
— Queres que eu to compre?
— Não sei se tenho coragem para o ler.
Um pouco mais tarde, voltava para casa com o livro numa mão e um saco
com o que tinha comprado para a festa na outra.

Nenhum comentário :
Postar um comentário
Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.
Please, no spoilers!
Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●
⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐
◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂●
●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●