Quarenta e nove dias antes

DOIS DIAS DEPOIS, numa segunda-feira – na realidade, o primeiro dia
de feriado –, passei a manhã fazendo o trabalho final de Religião e, à tarde, fui
até o quarto da Alasca. Ela estava lendo na cama.
“Auden”, ela anunciou. “Quais foram as últimas palavras dele?”
“Não sei. Não conheço.”
“Nã o conhece? Pobre menino sem instrução. Olha só esse verso.”
Caminhei até ela e olhei para seu dedo indicador. “Amai teu vizinho pervertido/
Com vosso pervertido coração”, li em voz alta. “Legalzinho”, eu disse.
“Legalzinho? Claro, bufritos são gostosinhos. Sexo é divertidinho. O sol é
quentinho. Santo Deus, esse verso diz tanto sobre o amor e a tristeza – é perfeito.”
“É.” Eu assenti com a cabeça, pouco entusiasmado.
“Você não tem jeito. Quer procurar uns filmes pornôs?”
“Quê?”
“Não podemos amar nossos vizinhos se não soubermos quão pervertidos
são seus corações. Não gosta de pornografia?”, ela perguntou sorrindo.
“Hmm”, eu respondi. A verdade era que eu não tinha visto muitos filmes
pornôs, mas a perspectiva de ver filmes pornôs com a Alasca parecia
interessante.
Começamos pela ala dos quartos 50 e tantos e fomos caminhando
sentido anti-horário em torno do hexágono – ela abria as janelas dos fundos
enquanto eu ficava de olho para ver se alguém estava passando.
Eu nunca tinha entrado em tantos quartos diferentes. Depois de três
meses, eu conhecia a maioria das pessoas, mas não falava com todo o mundo –
apenas com o Coronel, a Alasca e o Takumi, para ser sincero. Mas, em poucas
horas, passei a conhecer meus colegas muitíssimo bem.
Wilson Carbod, o segundo pivô dos Nada de Culver Creek, tinha
hemorroidas ou, pelo menos, escondia a pomada para hemorroidas na última
gaveta da escrivaninha. Chandra kilers, uma garota bonitinha que amava
Matemática de maneira um tanto excessiva e que Alasca acreditava ser a futura
namorada do Coronel, colecionava bonecas. Não estou dizendo que ela
colecionava quanto tinha, tipo, cinco anos. Ela colecionava agora – dezenas delas
–, negras, brancas, latinas e asiáticas, meninos e meninas, bebês vestidos como
fazendeiros e futuros empresários. Holly Moser, uma Guerreira de Dia de
Semana do último ano, gostava de se desenhar nua com carvão, representando
suas formar rotundas em toda sua largura.
Fiquei impressionado com a quantidade de pessoas que tinham bebida.
Até mesmo os Guerreiros de Dia de Semana, que podiam ir para casa todo fim
de semana, escondiam cerveja e outras bebidas nos lugares mais diversos, desdeassentos de banheiro até cestos de roupa suja.
“Meu Deus, eu podia ter dedurado qualquer um”, Alasca disse
suavemente enquanto desenterrava uma garrafa de um litro de cerveja Magnum
d o closet de Longwell Chase. E eu me perguntei por que ela tinha escolhido o
Paul e a Marya.
Alasca descobria os segredos de outros tão depressa que fui levado a
pensar que ela já tinha feito isso antes, mas ela não poderia ter sabido os segredos
de Ruth e Margot Blowker, as gêmeas do nono ano que eram novas na escola e
que pareciam se socializar ainda menos do que eu. Depois de entrar pela estreita
abertura da janela, Alasca fez uma busca rápida e foi até a estante de livros.
Olhou para o móvel, desconfiada, puxou a Bíblia do Rei Jaime e ali atrás – uma
garrafa de Maui Wowie.
“Bem pensado”, ela disse, girando a tampa. Bebeu tudo em dois longos
tragos, depois anunciou: “Maui WOWIE!”
“Vão saber que você entrou no quarto!”, eu gritei.
Seus olhos se arregalaram. “Ah! Você está certo, Gordo!”, ela disse.
“Elas vão reclamar com o Águia que alguém roubou o vinho delas!” Depois riu e
se inclinou para sair pela janela, atirando a garrafa vazia no gramado.
Encontramos muitas revistas pornográficas enfiadas desleixadamente
entre a armação das camas e os colchões. Hank Walsten, por sinal, gostava de
algo mais do que basquete e maconha: gostava da revista Peitões. Mas só fomos
achar um filme no Quarto 32, ocupado por dois garotos do Mississippi chamados
Joe e Marcus. Eles estavam em nossa aula de Religião e, às vezes, almoçavam
comigo e com o Coronel, mas eu não os conhecia muito bem.
Alasca leu a etiqueta na fita. “As putas de Madison. Que maravilha.”
Fomos correndo para a sala de tevê, fechamos as persianas, trancamos a
porta e colocamos o filme. Começava com uma mulher de pé numa ponte, as
pernas abertas enquanto um cara lhe fazia sexo oral. Acho que não havia tempo
para diálogos. Quando eles começaram a transar, Alasca mostrou toda sua
justificada indignação. “Eles simplesmente não conseguem fazer com que o sexo
pareça divertido para a mulher. A garota é só um objeto. Olha! Olha!”
Eu já estava olhando, é claro. Uma mulher ficou de quatro, apoiando-se
nas mãos e nos joelhos, enquanto um cara se ajoelhava atrás dela. Ela dizia
“Isso! Isso!” e gemia, e, embora seus olhos, castanhos e vazios, traíssem sua falta
de interesse, eu não pude deixar de tomar algumas notas mentais. Colocar as
mãos nos ombros dela, observei. Rápido, mas não rápido demais para não acabar
rápido demais. Procurar gemer um pouco.
Como se tivesse lendo meus pensamentos, ela disse, “Credo, Gordo.
Nunca seja tão violento. Isso machuca. Parece uma tortura. E ela não faz nada?
Fica ali parada, só levando? Isso não é um homem e uma mulher. É um pênis e
uma vagina. Onde está o erotismo? Onde estão os beijos?”“Dada a posição deles, acho que não vão conseguir se beijar”, observei.
“É o que eu estou tentando dizer. Essa posição em si já é uma
objetificação. Ele nem consegue olhar para o rosto dela! É isso o que acontece
com algumas mulheres, Gordo. Essa mulher é filha de alguém. É isso o que
vocês nos obrigam a fazer por dinheiro.”
“Bem, eu não”, disse defensivamente. “Tecnicamente, não. Eu não faço
filmes pornográficos.”
“Olhe nos meus olhos e diga que isso não deixa você excitado, Gordo.”
Não consegui. Ela riu. Era normal, ela disse. Saudável. Então se
levantou, parou a fita, deitou de bruços no sofá e resmungou alguma coisa.
“O que disse?”, perguntei caminhando até ela e colocando a mão nas
suas costas, na região da cintura.
“Shhhh”, ela disse. “Estou dormindo.”
Simples assim. De centenas de quilômetros por hora ao repouso em um
nano segundo. Eu queria tanto me deitar ao lado dela, envolve-la nos meus
braços e adormecer. Não queria transar, como nos filmes. Nem mesmo fazer
amor. Só queria dormir com ela, no sentido mais inocente da palavra. Mas eu
não tinha coragem. Ela tinha namorado. Eu era um palerma. Ela era
apaixonante. Eu era irremediavelmente sem graça. Ela era infinitamente
fascinante. Então voltei para o meu quarto e desabei no beliche de baixo,
pensando que, se as pessoas fossem chuva, eu era garoa e ela, um furacão.

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