arrastando os pés, Takumi se sentou ao meu lado e escreveu uma mensagem na
beira do seu caderno. Almoço no McIncomível.
Escrevi um rápido ok quando o Sr. Hyde começou a falar sobre o
sufismo, a seita mística do islã. Eu só tinha passado os olhos pelo texto – àquela
altura estava estudando apenas o necessário para não ser reprovado -, mas, em
minha breve leitura, tinha encontrado excelentes últimas palavras. Um sifista
pobre e andrajoso entra numa joalheria de um comerciante rico e lhe pergunta:
“Sabe como vai morrer?” O comerciante responde: “Não, ninguém sabe como
vai morrer.” E o sufista diz: “Eu sei.”
“Como?” Pergunta o comerciante.
O sufista se deita no chão, cruza os braços e diz: “Assim”, e morre.
Então, na mesma hora, o comerciante abre mão da loja e vai viver uma vida de
pobreza em busca da riqueza espiritual que o sufista morto possuía.
Mas o Sr. Hyde estava contando uma história diferente, uma das que eu
tinha pulado. “Karl Max disse numa passagem famosa que a religião era o ‘ópio
do povo’. O budismo, principalmente em sua manifestação mais popular,
promete a evolução através do karma. O islamismo e o cristianismo prometem
um paraíso eterno para os fiéis. E isso é um ópio poderoso, é claro, a promessa
de uma pós-vida melhor. Mas há uma parábola sufista que desmente essa noção
de que as pessoas acreditam em Deus apenas porque precisam de seu ópio.
Rabe’a AL-Adiwiy ah, uma mulher santa de grande importância para o sufismo,
foi vista correndo pelas ruas de sua cidade natal, Basra, segurando uma tocha
numa das mãos e um balde de água na outra. Quando lhe perguntaram o que ela
estava fazendo, responde: ‘Vou derramar este balde de água sobre as chamas do
inferno e depois vou queimar os portões do paraíso com esta tocha para que as
pessoas amem Deus não por desejarem o paraíso e por temerem o inferno, mas
por ele ser Deus.’”
Uma mulher tão poderosa que é capaz de queimar os portões do paraíso
e inundar o inferno. Alasca teria gostado dessa tal Rabe’a, escrevi em meu
caderno. No entanto, a pós-vida importava para mim. O céu, o inferno, a
reencarnação. Por mais que eu quisesse descobrir as circunstâncias da morte da
Alasca, o que eu mais queria saber era onde ela estava agora, se estava em
algum lugar. Gostava de imaginá-la olhando por nós lá de cima, ainda consciente
de nossa existência, mas isso me parecia uma fantasia. E eu nunca tinha sentido
nada daquilo – como o Coronel disse no funeral: ela não estava lá, não estava em
lugar nenhum. Para ser sincero, eu só conseguia pensar nela morta, o corpo
apodrecendo em Vine Station, e o resto um mero fantasma que vivia apenas emnossas lembranças. Como Rabe’a, eu não achava que as pessoas deveriam
acreditar em Deus só por causa do céu e do inferno. Mas também não sentia
necessidade de sair correndo por aí com uma tocha. Não se pode incendiar um
lugar inventado.
Depois da aula, enquanto o Takumi revirava suas batatas fritas no
McIncomível, escolhendo apenas as mais crocantes, eu senti todo o peso de sua
perda, ainda abalado com a idéia de ela ter se ausentado não só deste mundo
como de todos os outros.
“Como tem passado?”, perguntei.
“Humm”, ele disse, a boca cheia de batatas fritas, “não muito bem. E
você?”
“Não muito bem.” Dei uma mordida no meu cheeseburger. Tinha
ganhado um carrinho de plástico junto com o McLanche Feliz, e ele ficou ali,
capotado sobre a mesa. Girei as rodas.
“Sinto falta dela.”, Takimi disse, empurrando a bandeja de lado,
dispensando o restante das batatinhas moles e gordurosas.
“É, eu também. Sinto muito, Takumi.”, eu disse, no sentido mais amplo
da expressão. Sentia muito por termos terminado daquele jeito, girando rodinhas
no McDonalds. Senti muito pela morte da garota que nos aproximara. Sentia
muito por tê-la deixado morrer. Sinto muito por não ter falado com você, mas não
podia lhe contar a verdade sobre o Coronel e eu. Odiava ficar na sua companhia e
ter de fingir que meu sofrimento era algo simples – fingir que ela tinha morrido e
que eu sentia sua falta, em vez de me sentir culpado por sua morte.
“Eu também. Você ainda está namorando a Lara?”
“Acho que não.”
“Certo, ela queria saber.”
Eu vinha ignorando minha namorada, e, depois de um tempo, ela
também passou a me ignorar, então pensei que estivesse acabado, mas talvez
não. “Bem”, disse para o Takumi, “não dá para... Não sei, cara. É complicado.”
“Certo. Ela vai entender. Claro. Não se preocupe.”
“Tudo bem.”
“Olha só Gordo. Eu, bem... Sei lá. É horrível, não é?”
“É, sim.”

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