Vinte dias depois

ERA DOMINGO. O Coronel e eu tínhamos decidido não jantar no
refeitório. Em vez disso, saímos do campus a pé e atravessamos a Rodovia 119
até a loja de conveniência, onde nos regalamos com uma refeição bem
balanceada, composta de duas bolachas com recheio de aveia para cada um.
Setecentas calorias. Energia suficiente para alimentar um homem por um dia.
Nós nos sentamos na calçada da loja, e terminei meu jantar em quatro mordidas.
“Vou ligar para o Jake amanhã, só estou avisando. Peguei o número dele
com o Takumi.”
‘Tudo bem”, eu disse.
Ouvi um sininho irritante atrás de mim e me virei para a porta da loja.
“Estão de vagabundagem aí”, disse a mulher que tinha nos vendido o
jantar.
“Estamos comendo”, o Coronel respondeu.
A mulher balançou a cabeça e nos expulsou como se fôssemos cães.
“Xô.”
Contornamos a loja e fomos nos sentar perto da lata de lixo fedorenta
dos fundos.
“Corta essa de Tudo bem’, Gordo. Está ficando ridículo. Vou ligar para o
Jake amanhã e anotar tudo o que ele disser. Depois vamos nos sentar e tentar
descobrir o que aconteceu.”
“Não. Você está sozinho nessa. Não quero saber o que aconteceu entre
ela e o Jake.”
O Coronel bufou e pegou um maço de cigarros-pagos-pelo-Gordo no
bolso do jeans. “Por que não?”
“Porque não! Será que preciso fazer um relatório completo sobre todas
as minhas decisões?”
O Coronel acendeu um cigarro com o isqueiro que eu lhe comprei e
tragou. “Que seja. O caso precisa ser solucionado. E eu preciso de você, porque
nós dois a conhecíamos muito bem. Então está decidido.
Eu me levantei e o encarei, sentado no chão presunçosamente. Ele
soprou um fiozinho de fumaça na minha cara, e eu me descontrolei. “Já estou
cansado de seguir suas ordens, seu babaca! Não vou me sentar com você para
discutir os detalhes do relacionamento dela com o Jake. Porra! Não dá pra ser
mais claro: Não quero saber sobre eles. Já sei o que ela me disse, e é tudo o que
preciso saber. Você pode bancar o babaca arrogante quanto quiser, mas não vou
me sentar com você para discutir o quanto ela amava o Jake! Agora me dá meus
cigarros!” O Coronel jogou o maço no chão e ficou de pé num piscar de olhos,
segurando meu suéter com a mão fechada, tentando inutilmente me trazer parabaixo com seu peso.
“Você não se importa com ela!”, disse. “Só se importa com essa maldita
fantasia de que vocês dois tinham um caso secreto, de que ela ia largar o Jake
para ficar com você e viver feliz para sempre. Mas ela beijou um monte de
caras, Gordo. E, se ainda estivesse viva, nós dois sabemos que ela seria a
namorada do Jake e haveria uma enorme tensão entre vocês dois – nada de
amor, nada de sexo, só você morrendo de amores por ela, e ela, tipo: ‘Você é
fofo, Gordo, mas eu amo o Jake.’ Se ela realmente amava você, por que o deixou
naquela noite? E, se você realmente a amava, por que a deixou ir embora? Eu
estava bêbado. Mas e você? Qual é a sua desculpa?”
O Coronel soltou meu suéter. Eu me abaixei e catei os cigarros. Sem
gritar, sem trincar os dentes e sem veias pulsando na testa, mas calmamente.
Calmamente. Olhei para o Coronel e disse: “Vai se foder.”
Os gritos e as veias pulsando vieram mais tarde, depois que eu atravessei
correndo a Rodovia 119, o circulo dos dormitórios e o campo de futebol, descia a
estrada de terra até a ponte e cheguei ao Buraco do Fumo. Peguei uma das
cadeiras azuis e a joguei contra a parede de cimento. O baque metálico do
plástico chocando-se contra o concreto ecoou embaixo da ponte. A cadeira caiu
de lado, imóvel. Então me deitei de barriga para cima, as pernas balançando no
precipício, e gritei. Gritei porque o Coronel era um babaca, orgulhoso e
arrogante. Gritei porque ele estava certo, eu realmente queria acreditar que eu
tinha tido um caso secreto com a Alasca. Será que ela me amava? Será que teria
largado o Jake para ficar comigo? Ou será que aquilo tinha sido apenas mais um
de seus momentos impulsivos? Não era o bastante ser seu último beijo. Eu queria
ser seu último amor. Mas sabia que não era. Sabia e a odiava por isso. Eu a
odiava por não se importar comigo. Eu a odiava por ter me deixado naquela
noite. E odiava a mim mesmo por tê-la deixado ir embora, porque, se eu tivesse
sido suficiente, ela não teria querido ir embora. Simplesmente teria se deitado
comigo, conversado e chorado. E eu a teria ouvido e teria beijado as lágrimas
que caíam dos seus olhos.
Virei a cabeça e vi uma das cadeirinhas de plástico azuis tombada de
lado. Indaguei-me se chegaria o dia em que não pensaria em Alasca, se deveria
ansiar pelo dia em que ela se tomaria uma memória distante – recordada apenas
nos aniversários de morte, ou semanas mais tarde, lembrada apenas depois de ter
sido esquecida.
Eu sabia que outras pessoas iriam morrer. Os corpos iriam se empilhar.
Será que cada um deles teria seu espaço em minha memória ou será que eu
esqueceria um pouco da Alasca todos os dias pelo resto da minha vida?
Certa vez, no começo daquele ano, nós dois caminhamos até o Buraco
do Fumo, e ela entrou na água de chinelo. Atravessou o regato, pulando com
cautela sobre as pedras cobertas de musgo, e pegou um graveto molhado no leitodo rio. Enquanto eu observava, sentado no concreto, os pés balançando acima da
água, ela revirou as pedras com o graveto e me mostrou os lagostins deslizando
pelo chão.
“A gente ferve e depois chupa a cabeça”, disse empolgada. “E a melhor
parte – a cabeça.”
Ela me ensinou tudo o que eu sabia sobre lagostins, beijos, vinho tinto e
poesia. Ela me mudou.
Acendi um cigarro e cuspi no regato. “Você não pode me mudar e
depois ir embora”, disse para ela, em voz alta. “Porque eu estava bem, Alasca.
Estava bem, só eu, as últimas palavras e os amigos da escola. Você não pode me
mudar e depois morrer.” Pois ela tinha personificado o Grande Talvez – tinha me
mostrado que valia a pena deixar minha vidinha e sair em busca de talvezes
maiores, mas agora ela estava morta, assim como minha esperança no talvez.
Eu podia dizer “Tudo bem” para tudo que o Coronel dizia ou fazia. Podia
tentar fingir que não me importava, só que nunca mais seria verdade. Você não
pode simplesmente se materializar e depois morrer, Alasca, porque agora eu
estou irremediavelmente mudado. Sinto muito por tê-la deixado ir, mas você fez
sua escolha. Você me deixou carente de talvezes preso à porcaria do seu
labirinto. E, agora, nem mesmo sei se você escolher a saída rápida e direta,
deixando-me de proposito. Eu nunca a conhecia, não é? Não posso me lembrar,
pois nunca conheci.
Enquanto me levantava para voltar ao quarto e fazer as pazes com o
Coronel, tentei imagina-la naquela cadeira, mas não consegui me lembrar se ela
cruzava as pernas. Ainda podia vê-la sorrindo para mim com seu meio sorriso de
Mona Lisa, mas não conseguia me lembrar de suas mãos suficientemente bem
para vê-la segurando um cigarro. Eu precisava, decidi, conhecê-la de verdade,
pois queria ter mais coisas para lembrar. Antes de começar o vergonhoso
processo de esquecimento dos “comos” e dos “por quês” envolvendo sua vida e
sua morte, eu precisava descobri-los: Como. Por quê. Quando. Onde. O quê.
No Quarto 43, depois de um pedido de desculpas rapidamente aceito, o
Coronel disse: “Vamos mudar nossa estratégia e desistir temporariamente de
telefonar para o Jake. Precisamos procurar outros caminhos antes.”

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo