MINHA MÃE ME LEVOU na consulta, claro. E óbvio que eu
percebi
rápido que psiquiatra não é um profissional que cuida de
maluco ou de
gente anormal, mas um cara que faz as pessoas pensarem, se
avaliarem e
se conhecerem melhor.
Quando a porta da sala do doutor Romildo se abriu e ele me
chamou
para entrar, vi que ele era um simpático senhor grisalho com
óculos
divertidos.
– Você é a próxima, pode vir – ele falou olhando para mim,
fazendo
sinal para eu entrar.
– Eu não vou com ela? – quis saber minha mãe, já em pé.
– Não, a senhora pode aguardar aqui. Ou, se quiser dar um
passeio,
pode voltar em 50 minutos, tudo bem? – ele disse na maior
calma.
– Não, vou ficar aqui mesmo. Ai, meu Deus! Vê se fala tudo,
hein,
Tetê? Abre seu coração, bebê. Qualquer coisa, já sabe, mamãe
está bem
aqui.
“Bebê” ninguém merece…
– Tá bem… – reagi, resignada.
– Mamãe te ama! Mamãe te ama, bebê! – gritou ela antes que a
porta
do consultório se fechasse.
Doutor Romildo riu.
– É sempre assim?
– Quase sempre – respondi, sincera. Mas aí olhei em volta e
fiquei
confusa sobre como agir. Resolvi perguntar. – Nunca fui a um
psiquiatra. O que eu tenho que fazer? Sento, fico em pé,
deito, tiro o
sapato?
Doutor Romildo riu de novo.
– Fica do jeito que quiser, como se sentir mais à vontade.
Pode
sentar ali. Respira, relaxa. E então é só falar o que vier à
sua cabeça,
Teanira.
Pausa! Pausa!
Sim! Você leu certo! Lástima das lástimas! Terror dos
terrores! Meu
nome é realmente Teanira. TE-A-NI-RA. Tem como uma pessoa
que se
chama Teanira ser cem por cento feliz?
Não, não tem, obrigada.
– Bom, podemos começar com meu nome, já que o senhor tocou
no
assunto. Acho que parte da minha tristeza vem dele –
comecei. – É a
junção de Tércio com Djanira, os nomes do meu avô paterno e
da minha
avó materna. Homenagem legal e tal… Mas isso é uma tremenda
de uma
sacanagem, o senhor não acha, doutor Romildo?
– Pode me chamar só de Romildo, querida. E de você.
– Ah, obrigada, Romildo. Então… Graças a Deus desde pequena
eu
sou conhecida como Tetê, porque Teanira não dá! Não dá
mesmo! –
desabafei, notando que aquilo não estava sendo tão estranho
quanto
tinha imaginado. – Mas não é só o nome diferente que me
angustia. Eu
sei que estou longe do padrão de beleza atual, uso óculos
pra corrigir
meus cinco graus e meio de miopia, aparelho pra botar os
dentes tortos
no lugar, sofro com espinhas constrangedoras na testa e não
sou
convidada para festas ou eventos sociais. E eu concordo com
a minha
mãe: não sou de sorrir muito.
– E por que você não sorri, Tetê?
– Sei lá, acho nada a ver gastar sorriso à toa, sabe?
Ele não respondeu nem que sim nem que não. Nem um levantar
de
sobrancelhas, nem uma balançada de cabeça. Fiquei sem saber
se ele
estava ou não concordando comigo. Com as mãos, ele fez sinal
para que
eu prosseguisse.
– É pra falar mais de mim, né? Bom… sou sensível a ponto de
chorar
em último capítulo de novela que nunca acompanhei, não gosto
de
raspar as axilas, acho isso uma coisa machista, e não sinto
a menor
necessidade de tacar cera quente no buço. Ele sempre foi bem
ralinho,
juro, mas, depois do ataque que a minha mãe deu hoje de
manhã, estou
repensando o assunto.
– Arrã…
Arrã? Só isso? Eu falando de um assunto sério como buço e
ele me
manda um arrã? Um mísero “arrã”? Ai, eu sabia que não ia
rolar
química entre o psiquiatra e eu…
– Arrã? – fiz, para ele ver que “arrã” não é coisa que se
diga para
uma menina que está confessando intimidades, desabafando
tudo sobre
os pelos do próprio corpo.
– E seus amigos?
Ah, tá… Entendi. Ele queria que eu falasse de coisas mais
assim…
Como posso dizer? Profundas. E importantes. Amigo é mais
importante
que bigode e sovaco, fato.
Mas…
– Eu não tenho amigos.
– Não?
Não. Se estou dizendo que não tenho é porque não tenho, eu
tive
vontade de dizer. Já estava louca para sair dali. Minha
bunda enorme
suava em bicas (sim, eu suo na bunda). Não sei se de tédio
ou
nervosismo.
Nervosismo. Fato.
Logo entendi que o Romildo queria que eu desenvolvesse o
assunto.
Mas eu não queria desenvolver o assunto…
– Não – repeti, seca.
– Por que você não tem amigos?
Droga! Eu nem sabia por onde começar a falar sobre amizade.
– Sei lá. A única amiga que tive foi a Jade, uma menina que
parecia
gostar de verdade de mim, que virava bicho pra me defender,
muito
legal. Mas depois de três anos ela se mudou para o Mato
Grosso e eu
fiquei de novo me sentindo solitária e desprotegida.
– Solitária e desprotegida? Hum… Interessante escolha de
palavras…
– É? – indaguei, cabreira. O que seria uma “interessante
escolha de
palavras”? Achei melhor me explicar: – Eu me sinto solitária
porque
não sou de conversar, porque meu nome é timidez, porque não
tenho
amigos, e me sinto desprotegida porque choro pelos cantos de
vez em
quando. E amo música triste. Às vezes, ficou ouvindo Adele
em looping,
“I’m with you”, da Avril Lavigne, ou qualquer música que me
dê vontade
de chorar.
– Você chora muito?
– Já chorei mais. Sempre acho que eu sou a pessoa mais
triste do
mundo. E nem sei se tenho um motivo, vários ou nenhum pra
pensar
isso, sabe? Ou não sabe? Às vezes é um motivo qualquer, uma
coisa que
parece boba, tipo o sabor do chiclete.
– O sabor do chiclete?
– É! Todo mundo na minha família sabe que eu ODEIO canela,
mas
eles só compram chiclete de quê? De canela! Aí distribuem
entre si e eu
fico sem mascar nem um chicletinho sequer! Depois eles falam
que não
querem que eu me sinta excluída…
– Hum…
Hum? Só isso de novo? Mandei logo uma frase de efeito para
ele
parar de reagir daquele jeito bocó aos meus sentimentos:
– Eu acho a vida uma enorme injustiça.
E ele mandou uma inacreditável frase:
– Por causa do chiclete de canela?
– Não! Não mesmo!
– Estou brincando.
Nossa, você não sabe brincar..., eu quis resmungar.
– Prossiga – pediu ele.
– Já pensei em me matar. Mas isso nunca ninguém soube. Tenho
até
vergonha de contar.
– Não tenha vergonha de falar nada, Tetê. Nada do que for
dito aqui
vai sair daqui.
Ufa… Menos mal…
– Tenho vergonha porque… Passou logo, mas foi um impulso
ignorante que tive quando descobri a verdade sobre o Gustavo
Sampaio.
Só de me ouvir dizer aquele nome dava uma tremedeira louca
dentro
de mim.
– Eu gostava do Gustavo Sampaio e achei que o Gustavo
Sampaio
gostasse de mim. Mas achei nada a ver me matar por causa de
um garoto.
Então preferi tomar uma decisão mais inteligente: nunca mais
amar
ninguém.
E é verdade! Não exagerei para o doutor, não! Estava
decidido,
decididésimo, decididão. Se amar é sofrer, prefiro sofrer
por outras
coisas. E não são poucas as coisas que me fazem sofrer. A
grande
decepção da minha vida foi o Gustavo Sampaio. Na minha
escola antiga,
na Barra, onde moramos até o fim do ano passado, ele foi o
único que um
dia falou comigo.
– Ninguém gostava de mim, sabe, Romildo? E eu nunca entendi
isso.
Então um dia, na hora do recreio, o Gustavo Sampaio se
aproximou e eu
desabafei. Disse pra ele que me sentia um repelente humano.
Tendo a
ser um pouco dramática algumas vezes, mas juro que as
palavras foram
do coração direto pro ouvido do Gustavo Sampaio. E me lembro
até hoje
da reação dele. Foi assim, ó:
– Claro que não. As pessoas têm inveja de você, Tetê. Você é
a
queridinha dos professores, só tira notas boas.
– E isso lá é motivo pra ter inveja?
– Claro. Você é inteligente, mas não passa cola, não divide
seu
conhecimento. E ainda é bonita. Ninguém aguenta menina
inteligente e gata.
– Gata. Ga-ta. O Gustavo Sampaio me chamou de gata. Quase
morri.
Romildo, você não tem noção do que é ser elogiada por um
cara como o
Gustavo Sampaio! Ele era perfeito. Sabe garoto perfeito?
Muito
perfeito?
O psi me deixou no vácuo. Tentei explicar para ele o que
significava
uma menina desajeitada, gordinha e excluída ser elogiada
pelo Gustavo
Sampaio:
– Cara, nunca ninguém, NINGUÉM, do sexo masculino, que não
fosse
da minha família, tinha me chamado de bonita. Se bem que…
Pensando
bem, elogios à minha fisionomia nunca fizeram parte da minha
realidade. Nem meu pai, nem meu avô, nem meus primos, tios…
Ninguém abre a boca pra falar da minha beleza, nem da
ausência dela.
Aí vem um Gustavo Sampaio, coisa louca de lindo e, vráááá!
– Vrá?
– Vrá! Me faz um elogio e vrá!
Pensa que Romildo se manifestou? Disse nada! Mesmo com a
quantidade de informações relevantes que eu tinha acabado de
dar.
Custava ele agora fazer o cara legal e falar que eu era
linda mesmo? Tá,
linda é exagero, ok. Mas bonita, pelo menos? Eu sei que não
sou, mas
psiquiatras e psicólogos não existem para botar a gente para
cima? Não,
né…? Tá bem, acabou o surto. Voltando à minha sessão de
terapia…
– Eu sorri com todos os dentes quando ouvi o elogio do
Gustavo
Sampaio. Sabe sorriso de bocão? Sorriso de boca toda? Boca
louca, boca
descontrolada? Hum… Pela sua cara você não sabe. O fato é
que não dava
pra parar de sorrir! Simplesmente não dava! Bom, daquele dia
em
diante, o Gustavo Sampaio e eu passamos a nos relacionar.
Viramos uma
dupla dinâmica. Ele ia na minha casa, eu fazia meu
sensacional cupcake
pra ele, estudava com ele, via TV com ele, assistia a vídeos
do YouTube
com ele… Quando ele contou que eu era odiada pelo simples
fato de ser
boa aluna, cheguei a pensar em tirar notas ruins de
propósito, pra ser
aceita, mas ele, sempre incentivador, me tirou essa ideia da
cabeça.
– E o que aconteceu?
– Ah, Romildo… Em vez de eu virar uma aluna péssima, fiz as
notas
dele aumentarem. Em pouco tempo, Gustavo Sampaio estava
craque em
Português, História, Geografia, Matemática… Aí eu virei o
retrato da
alegria ao lado daquele menino lindo. Passávamos o recreio
juntos,
ríamos das mesmas piadas… Eu estava perdidamente apaixonada
por
ele. Gustavo Sampaio era meu porto seguro, meu amigo, meu
amor. Não
ligava pras minhas espinhas, meus quilos a mais, meus
milhões de
defeitos, meu cabelo volumoso e sem corte, minha falta de
vaidade,
minha pele mais branca que papel. Ele me respeitava, gostava
de mim
como eu era.
– Olha só…
Olha só? A minha mãe tá pagando esse cara para ele fazer
ESSE tipo
de comentário? Bufei, mas continuei:
– Até que um dia, depois de meses de relacionamento,
estranhei o
fato de ele nunca ter me dado um beijo. Eu sou totalmente
BV, Romildo!
Nem selinho em brincadeira de salada mista eu dei. Até
porque nunca
ninguém me chamou pra participar desse tipo de brincadeira.
– BV?
– Não vai me dizer que não sabe o que é, Romildo!
– Barata Voadora? Barraqueira Venenosa? Boa Vigarista?
Que fofo! Ele fez piada (sem graça, mas fez)! Gostei do
Romildão
(mesmo ele tendo rido da piada sem graça que ele mesmo fez)!
– É Boca Virgem, o que quer dizer boca zero-quilômetro. Nem
o
espelho eu beijei pra treinar, tenho nojo da minha baba.
Ninguém
nunca encostou a boca na minha boca. Entendeu?
– Eu sei o que é BV! Atendo vários adolescentes. Estava
brincando
com você!
– Ah, bom! Que alívio. Então continuando: eu resolvi
conversar com
o Gustavo Sampaio, mandar a real pro menino. Mentira. Eu
parti mesmo
pra cima dele, num acesso súbito de falta de timidez, com a
boca em
formato de bico pra dar a ele um entendimento imediato do
recado.
– Taí uma atitude corajosa. Como foi?
– Ele gritou.
– Gritou? Por quê?
– De medo. Ele ficou com a maior cara de medo que eu já vi,
fato. Sei
que sou exagerada, mas não estou exagerando. Juro.
– Não precisa jurar, eu acredito em você.
Segui contando ao Romildo que, refeito do susto, Gustavo
Sampaio
disse que gostava de mim como amiga e acrescentou que tinha
se
aproximado por interesse, já que seus pais só o levariam à
Disney se as
notas dele melhorassem. Eu quis matar o Gustavo Sampaio, mas
decidi
não matar. Ele queria ir para a Disney, tadinho. E foi
sincero. Demos um
abraço e eu me contentei com o fato de não ter um namorado,
mas pelo
menos ter um amigo para sempre, como ele jurou que seria.
– Então tudo terminou bem?
– Não exatamente. Ele espalhou pros amigos, pros não amigos
e pros
ex-amigos da escola que eu estava desesperada pra arrumar
alguém,
louca pra beijar qualquer coisa que respirasse, carente
irremediável e,
catástrofe das catástrofes, que meu sovaco fedia a molho de
tomate
vencido. E meu sovaco nunca fedeu! Nunca! Sou bem limpinha!
Nessa
época eu tomava banho quase todos os dias, e sempre que me
lembrava
eu passava desodorante. Ok, ficou meio nojenta essa frase,
mas juro que
eu sou limpinha e cheirosa.
– Não precisa jurar, Tetê…
– Desculpa, é mania. Bom, minha vida virou um inferno depois
da
traição do Gustavo Sampaio. Eu era zoada diariamente na
escola. Muito
zoada. A ponto de desejar voltar no tempo, pros meses em que
eu era só
ignorada. Foi péssimo. As pessoas agora me conheciam e me
achavam a
louca encalhada! Pior! Virei alvo de pseudoengraçadinhos que
não
perdiam a chance de fazer piada com minha atitude, com meu
jeito, com
meu nome… Ganhei uns apelidos bizarros: Tetê-deprê,
Tetê-encalhadaê,
Tetê-não-me-mordê, e um que virou o preferido da escola,
Tetê do Cecê.
Tetê do Cecê!!! Ninguém merece, Romildo!!
Fiquei feliz que ele não riu. Nem fez cara de pena.
Continuou com
sua cara de caneca vazia. Cara de nada.
– Foi bem difícil suportar as “brincadeiras”. Engordei oito
quilos.
Todo dia era leite condensado com sucrilhos no café da
manhã. E eu
comecei a fazer doces incríveis, né? Bolos, mousses, pudins…
Fiquei
mais calada do que já era, minhas notas caíram e eu só
queria ficar na
cama, comendo e chorando. Foi devastador.
Nessa hora eu comecei a chorar no consultório, na frente do
Romildo.
Bateu uma vergonha… Mas não consegui segurar as lágrimas. O
legal é
que ele tinha uma caixinha com lenços de papel ao lado dele
e me
ofereceu para enxugar meu rosto. E só então eu percebi que
outros
pacientes deviam chorar ali, o que me deu um certo alívio.
Respirei
fundo e continuei:
– Mesmo tendo prometido pra mim mesma nunca mais amar
ninguém, eu logo me apaixonei pelo Alexandre Bueno, de outra
sala. Ele
era baixinho mas tinha os ombros largos, o que eu achava
lindo. Mas,
analisando o conjunto da obra, ele era bem feinho. Sabe
filhote
prematuro de capivara? Não sabe? Bom, o que eu quero dizer é
que ele
era perfeito pra mim! Decidi que, no papel de feia, tinha
que gostar de
um feio. O hálito do Bueninho não era exatamente de flores,
daí o
simpático apelido de “Boca de Cocô”, mas ele era engraçado –
descrevi,
cada vez mais confortável em dividir minha história com o
Romildão.
É, já éramos íntimos na minha cabeça.
– E é sempre bom estar por perto de gente engraçada, não é?
– Super é! – me empolguei na resposta. – Aí começaram a
brincar
dizendo que Tetê do Cecê, euzinha, e Boca de Cocô, Bueninho,
tinham
que ficar juntos. Mas ele um dia mandou um “Sai pra lá! Essa
menina,
além de porca, é horrorosa!”. Assim, meu coração foi partido
duas vezes
no mesmo ano. E eu mantive a promessa de que nunca mais iria
me
apaixonar por ninguém. Ninguém! Ninguém!
– E é por essas histórias que sua mãe quer que você faça
terapia?
– É, acho que sim. Minha mãe diz que não estou normal. Eu
até acho
que não tenho como estar totalmente normal, sabe? Porque
enquanto
tudo isso acontecia na minha vida, em casa o negócio estava
mais
sinistro ainda, porque eu acompanhava em silêncio as brigas
dos meus
pais. Eles nem tentavam disfarçar, quebravam o pau todos os
dias na
minha frente, sem a menor cerimônia. Depois de um tempo,
eles
decidiram se separar. E eu respirei aliviada. Sabia que ia
ser melhor
pros dois. Eu me sinto meio culpada de ficar aliviada com
uma
separação, mas…
– Não tem que se culpar, Tetê. As brigas dos seus pais não
são culpa
sua, e ninguém gosta mesmo de viver em um ambiente assim.
Com aquelas palavras, Romildão tirou um piano muito pesado
das
minhas costas. Até suspirei aliviada. Prossegui:
– Quando minha mãe começou a procurar apartamento pra morar,
meu pai perdeu o emprego na multinacional em que ele
trabalhava fazia
séculos. Ele era respeitado, eu acho, e ganhava bem… Não era
rico, mas
nossa vida era legal na Barra, nunca faltou nada lá em casa.
Mas a crise
chegou, você sabe, e a empresa cortou muitas cabeças,
inclusive a dele –
contei.
Dois lagos gigantes se formaram nos meus olhos assim que eu
dei
uma pausa no meu desabafo. Baixei a cabeça.
– Pode chorar à vontade, Tetê – disse Romildão fofo,
passando de
novo a caixa com lencinhos de papel.
E eu chorei, mas só um pouquinho. Tinha muito mais coisas
para
dividir com o psi.
– Pior de tudo foi descobrir que meu pai gastava todo o
dinheiro que
sobrava apostando em cavalos, e, além disso, ele devia a um
e a outro,
devia pro banco e acabou poupando praticamente nada durante
todo o
tempo de empresa. Resultado: ficou sem dinheiro.
– E como isso bateu em você?
– Mal, né? Malzão. A gente acha que nossos pais são
perfeitos e tal, e
nesse dia descobri que ele não era. Nem economizar ele
sabia. Fiquei
bem magoada com o descaso dele com a minha mãe e comigo.
Então eles
decidiram dar mais uma chance ao casamento. Mas acho que
essa
decisão não tem nada a ver com amor. Tem a ver com grana.
Mais fácil
pro meu pai ficar casado do que bancar nós duas longe, duas
casas,
essas coisas…
Era difícil demais relembrar aquilo tudo… Mas falar e,
principalmente, me ouvir falar tinha um poder de melhora
avassalador.
A minha alma parecia mais leve.
– E como você encarou essa mudança?
– Achei uó! Uó! Tivemos que mudar de mala e cuia pra
Copacabana,
pra casa dos meus avós, na rua Siqueira Campos, porque meus
pais
precisaram vender o apê em que a gente morava no Jardim
Oceânico, na
Barra, pra pagar as dívidas e ter algum dinheiro pra viver,
já que meu
pai ainda estava desempregado! E eu, que sempre gostei de
ser sozinha,
passei a dividir o teto com pai, mãe, vô, vó e meu bisavô,
pai da minha
avó.
– Sei…
– E na semana que vem, eu vou começar em uma escola nova e,
pior, é
uma nova fase, é o Ensino Médio. Estou morrendo de medo. E
se a zoação
e o bullying rolarem de novo? E se eu não conseguir me
enturmar? Todo
mundo já deve se conhecer por ser da mesma escola desde o
Fundamental. Mas eu vou ser a nova, o peixe fora d’água… Estou
bem
insegura com tudo!
Tive vontade de perguntar pro Romildão: tem como eu ser uma
adolescente felizinha e serelepe? Tem? Tem? Mas eu mesma
responderia: Não! Não tem!
– Sim, escola nova, Ensino Médio… É compreensível a
insegurança.
Mas veja pelo lado bom, Tetê. Quem sabe não vai ser uma
experiência
muito melhor que na escola anterior? E é uma oportunidade de
fazer
amigos também.
– É… Olhando por esse lado, pelo menos aquele horror da
escola da
Barra, os apelidos e o Gustavo Sampaio eu não vou ter que encarar
mais.
– Sim, é isso. Mas, voltando ao assunto da sua família, sua
mãe
trabalha, não é?
– É, ela trabalha num escritório grande de advocacia, na
parte de
contabilidade, mas odeia o que faz. E o que ela ganha não
daria pra
manter a vida que a gente tinha. Agora ela diz que meu pai é
um
acomodado, e usa muito essa palavra pra falar dele. Aliás,
os dois
continuam brigando. Meu pai se nega terminantemente a
procurar
emprego. Então é ela quem lê o jornal à procura de
oportunidades de
trabalho. Circula várias vagas que têm a ver com o perfil
dele, mas ele
dispensa todas, diz que são oportunidades insignificantes,
que não vai
se sujeitar a um trabalho menor do que sua “imensa
capacidade
intelectual”. Nunca achei meu pai essa inteligência toda,
mas
autoestima equivocada é isso aí, né? Um dia teve um diálogo
bizarro
entre os dois – e imitei meus pais falando para o psi:
– Às favas com a sua intelectualidade, Reynaldo Afonso!
Emprego é
emprego. Você tem que trabalhar para botar dinheiro em casa.
Eu
sozinha não dou conta!
– Vai aparecer, Helena Mara! Calma! Essa sua pressão não faz
nada bem para mim.
– Ah, sim. Meu pai se chama Reynaldo Afonso e minha mãe
Helena
Mara. E sempre que eles brigam usam os dois nomes, e parece
que a
agressão fica maior ainda.
– Também não faz bem para os meus pais ter você de encosto,
vivendo à custa deles,Reynaldo!
– Sei… Falando nos seus avós, como está sendo a experiência
de
morar com eles? – quis saber Romildão.
– Nada de mais. Estamos lá há dois meses e 22 dias. O passatempo
preferido da vovó Djanira é falar dos outros, de mim
inclusive, se
metendo na minha vida, e ler o obituário no jornal. Não sei
por que tanto
interesse em saber quem morreu. Ela tem uma certa fixação
com o
assunto morte e acha enterro um programão. Um dia me chamou
pra
passear no cemitério com ela, e “apreciar a beleza do
silêncio”. Eu
estava deitada lendo A culpa é das estrelas pela milésima
vez quando
ela veio me chamar pra uma “volta no paraíso”. Depois eu que
sou a
louca.
Romildo apenas deu um leve sorriso.
– A minha família se comunica aos berros, mil decibéis acima
do
normal.
– Olha só, e você fala tão baixinho, tão pra dentro…
– Exato. Adoraria saber como é viver numa casa sem gritos –
desabafei. – Agora estou me adaptando ao fato de dividir o
quarto com
meu bisavô. Ele tá ficando surdo e quando ronca parece que
tem uma
orquestra sinfônica no peito, sabe? Não, não sabe, claro…
– Sei sim, querida – interagiu ele, com um sorrisinho
discreto. –
Bom, mas infelizmente nosso tempo acabou.
Pensei: Já? Só não verbalizei. Por dentro eu não sabia se
queria falar
mais, se queria repetir a dose outro dia, se queria vê-lo
novamente nesta
vida…
– E qual é meu diagnóstico? Eu sou normal? Sou maluca? –
perguntei, morta de medo da resposta.
– Nunca uso essas palavras, Tetê. Como psiquiatra e
psicólogo, eu
diria que você é uma típica adolescente, com questões
próprias da sua
idade. Está passando por uma fase delicada com sua família,
sim, e a
terapia pode ajudar você a superar seus problemas e a
colaborar para
que se socialize mais, mas precisa querer. Tem que partir de
você a
vontade de vir uma vez por semana, e não da sua mãe. É você
que tem
que querer, certo? Essa decisão tem que ser exclusivamente
sua.
Amei Romildão.
Levantamos e fomos saindo em direção à sala de espera. Minha
mãe
estava aflitíssima me esperando e foi logo querendo
conversar com
Romildão e saber dos meus “problemas sérios”.
– São muitos remédios que o senhor prescreveu, doutor? –
mamãe
logo perguntou.
– Nenhum remédio.
– Nenhum remédio? Como?
– Calma, dona Helena Mara, não é nada que preocupe muito, é
coisa
da idade. A decisão de fazer terapia é inteiramente dela.
Semana que
vem eu ligo para a senhora pra ver o que a Tetê decidiu.
Caso ela queira
continuar, falaremos sobre horários e honorários. Mas eu
deixo aqui
uma sugestão: ela deveria fazer alguma atividade física ao
ar livre, isso
ajuda muito. Endorfina! Também recomendo se matricular em um
curso
de teatro, para vencer a timidez e fazer amigos.
Concordei com a cabeça, sabendo que jamais faria nenhuma
atividade ao ar livre. Detesto natureza. E teatro neeeem
pensar. Sou
muito envergonhada.
Saí de lá aliviada.
– Viu, mãe? Não sou anormal nem maluca! – falei triunfante.
– Você é que pensa! Péssimo esse médico. Péssimo. Vou
perguntar
no trabalho se alguém conhece outro bom profissional. Quero
uma
segunda opinião. Nunca mais confio nas indicações do Moacyr,
aquele
amigo do seu pai. Não sei por que fui pedir ajuda logo para
ele…
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