12 ANOS (Abraçando o teatro)

Minha querida primogênita resolveu entrar para um curso de teatro. Achei ótima idéia, teatro solta a cabeça, faz pensar, ler, criar, fantasiar, imaginar – e, como disse Albert Einstein, “imaginação é mais importante do que conhecimento”. Dei a maior força. Em pouco tempo, Maria de Lourdes ficou menos tímida, mais segura de si, mais articulada, muito mais comunicativa. E muito amável. Mas amável demais. Aquele tipo de amável que beira o exagerado. Do dia para a noite, minha amabilíssima filha resolveu virar uma abraçadora profissional. É um tal de abraça para cá, abraça para lá... a menina agora abraça Deus e o mundo. Me pega na cozinha, me agarra e me aperta com força e me enche de beijo. Com o pai e os irmãos, a mesma coisa. E é assim aqui em casa, na escola, no teatro, na praia, nas festas.
Povo de teatro é muito dado, muito liberal. Não é que eu seja preconceituosa, longe de mim, mas a verdade é que artista é muito amiguinho de todo mundo e, para eles, é normal amiguinho beijar boca de outro amiguinho. Minha filha não chegou (e espero que não chegue nunca! Nunca!) a essa fase de dar selinho torto e a direito. Por enquanto é só abraço.
- Querida... depois de abraçar com vontade o pipoqueiro, o jornaleiro, a professora, a Alice, o nosso porteiro e o seu Mathias, da farmácia, você tinha mesmo que abraçar o Pedro, do 209, daquele jeito? Eu achei aquilo meio... 
- Meio o quê, mãe? – irritou-se 
- Meio desnecessário, meio oferecido. Você mal o conhece. 
- Não viaja! O primo do Pedro faz teatro comigo e ele esta sempre lá com a gente. Ele é praticamente povo de teatro e povo de teatro sabe abraçar superbem. Diferente de muita gente, que tem abraço frouxo ou que foge de abraço, que não consegue dar um abraço apertado, cheio de energia. Povo de teatro se entrega nos abraços, dá abraços demorados, apertados, com emoção - tentou filosofar.

- Minha filha, essa troca de energia é bonita e tal, mas é atiradinha demais para o meu gosto. Agora você vive pendurada em um monte de gente. Quem não conhece a beleza de tanta energia, deve te achar uma menina... como é que vou dizer isso? Fácil.
- Fala sério, mãe! Que comentário mais sem noção! Eu não estou nem ai para o que pensam ou deixam de pensar de mim. Ninguém tem nada com a minha vida. 
- Claro, você esta certíssima. Mas eu acho esse amor excessivo e nada em excesso é bom... 
- Mãe, eu gosto de trocar carinho com as pessoas, só isso. Nunca ninguém me abraçou com vontade aqui em casa. Abraço na nossa família sempre foi de longe, rápido, sem força, sem vida. Um abraço pode ser a melhor coisa do mundo por alguns segundos. E quem não quer a melhor coisa do mundo? Abraçar com vontade quem eu gosto não quer dizer que eu seja uma menina facinha. Aliás, eu sou a menina menos fácil que conheço, achei que você soubesse.
Papéis invertidos. Levei uma senhora bronca da minha pirralha. Uma bronca elegantérrima, mas uma bronca. E dou razão a ela por cada palavra, por cada sentimento que ela pôs em seu discurso. Fiquei orgulhosa de sua entrega, das suas verdades... do seu coração. Antes de ir para o quarto, ela pediu: 
- Dá cá um abraço?
Ufa! Fiquei aliviada ao constatar que mesmo depois da bronca ela queria me abraçar. Dei nela um abração. Apertado, esmagado, asfixiado, do tipo que não vai acabar nunca. E não é que sua teoria do abraço estava certa? Com vontade e entrega, usando cada músculo do corpo e da face, das mãos e dos dedos, um abraço pode mesmo ser a coisa mais gostosa do mundo. E que bom que ela descobriu isso tão novinha e ensinou para mim.



 Beijo de língua



Estava sentada no meu computador lendo uns e-mail quando, por conta de umas fotos de bebês que um amigo me mandou, lembrei de como parece que foi ontem que meus filhos eram pequenas bolotas cheias de dobrinhas. É engraçado perceber que muitas vezes Maria de Lourdes, a menos parecida fisicamente comigo, faz gestos e olhares que eu faria, toma atitudes que eu tomaria... é muito bacana pensar que criei meus filhos para o mundo, mas deixei neles a minha marca. 
A minha Maria de Lourdes anda numa fase engraçada. Esta se achando gente, mais mulher, comprando roupas menos infantis, querendo livros com temas mais adultos. No fundo, claro, continua uma criança. Criança enorme, já, já está mais alta do que eu. Às vezes queria voltar no tempo só para poder carregá-la como um bebê de novo. Por alguns segundos gostaria de ter aquela sensação gostosa de volta. Mas a verdade é que ela ainda é a minha neném.
- Ooooi! – disse ela, ao chegar em casa fazendo a bagunça de sempre, deixando a mochila num canto, agente noutro. 
- Oi, amor de mãe! Estava pensando em você pequenininha e deu uma saudade... vem cá me dar um beijo? 
Ela veio, encheu-me de beijos e, sentada no meu colo, perguntou: 
- Lembra que eu fui ao cinema no sábado? 
- Lembro, claro. 
- Sabe o que rolou lá? 
- O filme, ué. 
- Não, mãe! Além do filme... 
- Pipoca? Refrigerante? Jujuba? 
- Que mane jujuba, mãe? Pensa mais um pouco. 
- Chiclete? 
- Caraça, não acredito que você não deu uma dentro! Rolou um beijo, mãe. Beijo!
-O quê? Suas amigas já estão beijando? Não me diga, Maria de Lourdes. Aposto que foi essa tal de Alice, sempre achei essa menina muito saidinha. 
- Fui eu, mãe. Eu que beijei. 
Hãããããããã!? Muita calma nessa hora! Tentei agir naturalmente. 
- Você? Olha só, filha... você beijou... que bom...- reagi, sem um pingo de animação com o assunto, admito.
- Só isso? Não quer saber como foi? Com quem foi? Achei que você ia morrer de curiosidade.
- Nossa, estou louca, LOUCA para saber esses detalhes, minha filha, você não faz idéia – menti descaradamente.
- só espera um minuto que mamãe vai pegar um copo d‟água. Quer também? 
Eu precisava mastigar a novidade.
- Não, obrigada! – respondeu ela. 
Deixei Maria de Lourdes na sala e corri para a cozinha. Eu pensando que ela ainda era um bebê e já tem marmanjo de olho na minha pequena? Que mundo mais apressadinho! Maria de Lourdes ainda é uma criança, seu, seu... como é o nome do rapaz? Será que rolou um cheirinho no cangote? Uma lambidinha na orelha? Ai, não! Jamais posso perguntar isso para ela. Mas quero saber tantas coisas... não! Não quero saber nada! Nada! Não está muito cedo para uma criança começar a beijar? Uma criança, meu Deus! Precisava recompor minhas energias e fazer cara de mãe melhor amiga, entediada tambem como “nossa, que novidade bacana você está me contando, filha!”. Respirei fundo e fui para a sala. O Armando talvez leve isso com mais naturalidade, mas eu sou meio antiquada para esses assuntos de beijo, de sexo, de relacionamento... na minha adolescência nós nunca conversamos sobre isso lá em casa.
- Então, filha, agora sou toda ouvidos. Quem é ele? 
- É o Nando, primo da Alice. 
- Não acredito que é parente dessa Alice... 
- Mãe! – bronqueou ela. 
- Desculpa, desculpa, não está mais aqui quem falou. 
- Ele mora em Friburgo, veio passar o feriadão aqui no Rio. 
- Interessante. E... foi... foi assim... – baixei os olhos e a voz, como se fosse falar uma enorme indecência. – foi beijo de língua? 
- Dââââ!
-Que é isso, Maria de Lourdes, olha o respeito! Foi ou não foi de língua? – questionei, com a testa franzida. 
- Claaaaaro que foi, mãe! Você acha que eu ia dar um selinho num menino de 15 anos? 
- 15!? Menina, mas ele é um homem! Deve ser um galalau, se bobear tem barba e tudo! Maria de Lourdes, você conhece os pais desse rapaz? Ele é de boa família? De boa índole?
- Ai, mãe, que coisa mais antiga! Que "rapaz"? Quem é que fala "rapaz" hoje em dia? E por que é que eu tenho de conhecer os pais de um menino só porque dei um beijo nele? Que coisa mais sem nexo. 
- O quê? Foi você que deu o beijo nele? 
- Ah, tipo assim... eu tomei a iniciativa, mas ele já estava me azarando desde a lanchonete. 
- Você tomou a iniciativa? Isso é coisa de menina fácil, Maria de Lourdes! 
- Mas meninos são lentos, às vezes precisam de um empurrão básico. Além do mais, eu não aguentava mais ser BV, né? 
- BV? O que é BV, Maria de Lourdes?
- Boca Virgem, mãe! Que desatualizada! 
- Mas que bobagem! Sabia que no meu tempo a gente só beijava... 
- Alou! Não estamos no seu tempo! Vai começar esse papo chato de "no seu tempo" de novo? 
- Está bom, desculpa. 
- Não vai perguntar sse foi bom? 
Ela estava realmente decidida a ir fundo no tema. E eu sem a menor vontade de saber como foi. Precisava de tempo para digerir as informações anteriores. Mas Maria de Lourdes estava numa ansiedade frenética, queria porque queria contar tudo. Logo. E eu, que sempre quis bancar a mãe moderna, a mãe bem resolvida, a mãe antenada... tive de aguentar, com pinta de superinteressada. Mantive a pose: 
- Sim, querida, claro. É... como foi? 
- Foi molhado. Mas aí, mãe, muito, muuuuito molhado. 
Ui! E eu tendo de reagir naturalmente. 
- Molhado? Veja você, não me diga... 
- Digo. Foi bem gostoso, mas também foi, assim, meio nojentinho, sabe? Muito estranho ter a língua de outra pessoa no meio da boca. - Menos detalhes, Maria de Lourdes! Não precisa contar cada segundo desse beijo, ande logo, encurte essa história! 
- O primeiro foi uma baba só - continuou, para meu total desespero. Não queria ouvir aquilo. Era horrível visualizar uma língua cheia de cuspe dentro da boca da minha filhinha. 
- Shhh! Olha o vocabulário chulo, Maria de Lourdes! Espera aí! Como assim primeiro? Teve mais de um? - assustei-me.
- Óbvio. Mais um, mais dois, mais três... e a cada beijo ia ficando mais gostoso e menos nojentinho. Tão bom, mãe! Tão bom! Não vi nada do filme. 
- Foi, filha? Nossa, que interessante... Mas vocês não ficaram de saliência no escurinho do cinema, não, né? 
- Fala sério, mãe! Não acredito que você disse essa palavra! Saliência? Nem a vovó diria isso. Mas, para a sua informação, não, não fiquei de "saliência" no cinema. Eu me comportei muito direitinho. 
- Está bem, desculpa. Fico feliz em saber que foi bom, filha. E agora? Vocês... vocês estão namorando? 
- Dâââ! Claro que não! Ele mora longe. E eu não estou nem um pouco a fim de namorar! 
Ai, que alívio! Uma queima de fogos tomou conta do meu peito nessa hora, era muita felicidade. Apoiei veementemente sua decisão. 
- Isso mesmo, fihota! Vai aproveitar o restinho da sua infância, brincar, pular amarelinha, correr, jogar, é isso que você tem que fazer. 
- Mãe, o que eu ia dizer é que eu quero ficar com os meninos, não namorar com eles. no máximo um namorix . 
- Namorix? Que diabo é isso? 
- É um namorado que nao é namorado sério, é só um namorix. É mais sério que ficar e menos sério do que namorar sério. 
- Sério? 
- Sério. Sacou? 
- Saquei... - respondi, meio zonza com tanta informação nova. - Além do mais, se eu posso ter vários por que vou me prender a um só? Quando isso acontecer, eu vou estar apaixonada, pensando e querendo estar com o menino vinte e quatro horas por dia. Antes disso, quero beijar muitas bocas e ser feliz pra caramba! Ela me deu uma bitoca estalada na bochecha antes de voar para o chuveiro. Nem percebeu que eu ainda estava de queixo caído. E me deixou a pensar. A pensar que essa menininha que eu tanto amava e queria carregar novamente no colo havia poucos minutos tinha ido embora mesmo. Um pouco mais cedo do que eu gostaria, mas fazer o quê?
Hoje, ela escolhe roupas, livros e CDs sozinha e já beija de língua no escuro do cinema. É a menina cedendo lugar não à mulher, mas a uma linda mocinha. A minha mocinha. Que tem vontade e pensamentos próprios, opiniões formadas, certezas, desejos e verdades que borbulham na sua cabecinha adolescente. Cabeça que se orgulha de ter idéia e ideais, que me ensina muito, diariamente, e que se expressa com clareza e coerência através de gestos, atitudes e, principalmente, palavras.
É, palavras. A partir de agora, tenho certeza, ela já pode falar por si própria.




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