CAPÍTULO XXIX: MARX

...um fantasma assombra a Europa...

Hilde levantara-se da cama e assomou à janela que dava para a enseada.
Tinha começado o sábado a ler sobre o aniversário de Sofia. No dia anterior fora
o seu próprio aniversário. Se o pai calculara que ela já tivesse chegado até aí no
aniversário de Sofia, sobrestimara-a. No dia anterior, ela de fato “só” tinha lido!
Por outro lado, recebera só mais uma felicitação: quando Alberto e Sofia tinham
cantado os parabéns. Isso fora embaraçoso para Hilde.
Sofia tinha convidado amigos para uma “festa filosófica ao ar livre” no dia
em que o seu pai voltava do Líbano. Hilde estava convencida de que nesse dia
sucederia qualquer coisa de que nem ela nem o pai tinham uma idéia clara.Uma coisa era certa: antes de o pai voltar para Bjerkely, devia receber
uma pequena bronca. Era o mínimo que ela podia fazer por Alberto e Sofia,
pensou Hilde. Eles tinham-lhe pedido ajuda...
A mãe ainda estava no barracão. Hilde desceu silenciosamente para o piso
de baixo e dirigiu-se ao telefone. Procurou o número de Anne e Ole em
Copenhagen e marcou.
— Anne Kvamdal.
— Olá, é a Hilde.
— Que simpática! Como vão as coisas em Lillesand?
— Muito bem, estou de férias. E agora falta apenas uma semana para o
pai voltar do Líbano.
— Vai ser bom, não achas, Hilde?— Claro, estou ansiosa. E sabes, é justamente por isso que te estou a
telefonar...
— Ah, sim?
— Acho que ele chega no dia 23 a Kastrup, por volta das cinco da tarde.
Vocês vão estar em Copenhagen?
— Acho que sim.
— Queria saber se me podiam fazer um favor.
— É claro que podemos.
— Mas é um favor um pouco especial. Não sei sequer se é possível.— Estou a ficar curiosa.
Hilde contou. Falou sobre o “dossiê”, sobre Alberto e Sofia e tudo o resto.
Teve de recomeçar várias vezes porque ela e a tia desatavam a rir. Mas, quando
desligaram, o plano de Hilde estava decidido.
Em casa também tinha de fazer certos preparativos. Bom — não havia
pressa.
Hilde passou o resto da tarde e a noite com a mãe. Acabaram por ir de
carro a Kristiansand e foram ao cinema, como uma espécie de substituição de
festa de anos, visto que no dia anterior não tinham festejado verdadeiramente.
Quando passaram pelo desvio para o aeroporto, Hilde juntou mais algumas peças
ao grande “quebra-cabeça” em que pensara ininterruptamente desde manhã.
Só quando foi para a cama nessa noite continuou a ler o grande “dossiê”.
Quando Sofia entrou pelo carreiro, eram quase oito. A mãe estava a
trabalhar nos canteiros à entrada, quando ela apareceu.— Donde é que vens?
— Da sebe.
— Da sebe?
— Não sabes que há um caminho do outro lado?
— Onde é que estiveste, Sofia? Não vieste para o jantar, sem me
informares.
— Desculpa. O tempo estava tão bom. Dei um grande passeio.
A mãe levantou-se e olhou para ela.— Por acaso não te encontraste de novo com esse filósofo?
— Sim, encontrei-me. Eu contei-te que ele gosta de passear.
— Mas ele vem à festa?
— Sim, claro, está ansioso.
— Eu também, Sofia. Conto os dias.
Não havia um tom severo na sua voz? Por precaução, Sofia disse:
— Estou contente por ter convidado também os pais de Jorunn. De outro
modo, seria um pouco embaraçoso.
— Bom... pelo menos, vou falar com esse Alberto de adulto para adulto.— Vocês podem ir para o meu quarto. Tenho a certeza de que vais gostar
dele.
— Espera. Chegou uma carta para ti.
— Ah...
— No carimbo está escrito: “Contingente da ONU”
— Então é do irmão do Alberto.
— Acho que já é demais, Sofia.
Sofia refletiu febrilmente e, passado alguns segundos, lembrou-se de uma
resposta adequada. Um espírito solícito parecia tê-la inspirado.— Eu disse a Alberto que coleciono selos raros. Podes ver para que
servem os irmãos. Com esta resposta, conseguiu acalmar a mãe.
— O jantar está no frigorífico — disse ela, num tom um pouco mais
amigável.
— Onde está a carta?
— Em cima do frigorífico.
Sofia correu para a cozinha. A carta tinha o carimbo de 15-6-1992. Abriu o
envelope e retirou uma folha bastante pequena: “Então que vale a eterna
criação? Coisas criadas ao nada reduzir!”
Não, para esta pergunta, Sofia não tinha resposta. Antes de comer, juntou a
folha a todas as outras coisas que reunira no armário nas semanas anteriores.
Haveria de saber na altura devida por que motivo esta pergunta lhe fora feita.
Na manhã seguinte, Jorunn visitou-a. Primeiro, jogaram “badminton”,depois se ocuparam novamente com a planificação da festa filosófica.
Precisavam de algumas surpresas para o caso de não haver a atmosfera
desejada.
Quando a mãe de Sofia veio do trabalho, ainda estavam a falar sobre a
festa. A mãe estava sempre a repetir uma frase: “Não, não vamos poupar em
nada.” Não o dizia ironicamente. Ela parecia estar fortemente convencida de que
uma festa filosófica era exatamente o que Sofia precisava para pôr novamente
os pés na terra, após tantas semanas de lições intensivas de filosofia. Por fim,
chegaram a acordo sobre tudo — desde as tortas e lampiões nas árvores até ao
questionário filosófico com um livro de filosofia para jovens como Prêmio. Caso
houvesse um livro desse tipo. Sofia não tinha a certeza.
Na quinta-feira, dia 21 de Junho — apenas dois dias antes da noite de São
João, Alberto voltou a telefonar.
— Sofia.
— Alberto.— Como estás?
— Muito bem. Acho que encontrei a solução.
— Solução para quê?
— Tu sabes. Para a prisão espiritual em que vivemos há demasiado tempo.
— Ah, isso...
— Mas eu só posso falar sobre o plano quando tudo estiver em curso.
— Não é muito tarde? Tenho que saber no que me estou a envolver.
— Estás a ser ingênua. Sabes bem que somos espiados sempre e em toda a
parte. O mais sensato seria guardarmos silêncio...— É assim tão grave?
— Claro. O mais importante sucede quando não falamos um com o outro.
— Oh...
— Vivemos a nossa vida numa realidade fictícia, por detrás das palavras
de uma longa história. Cada letra é batida pelo major numa máquina de escrever
portátil barata. Nada do que é escrito pode escapar à sua atenção.
— Não, eu compreendo. Mas como nos podemos esconder dele?
— Chiu!
— O quê?— Nas entrelinhas também acontecem coisas. É justamente aí que
procuro agir com toda a minha astúcia.
— Ah...
— Temos de nos encontrar hoje e também amanhã. No sábado acontece
tudo. Podes vir imediatamente?
— Vou já. Sofia pôs comida aos pássaros e aos peixes, deu a Govinda uma
folha de alface e abriu uma lata de comida para Sherekan. Ao sair colocou o
prato com a comida na escada.
Depois, enfiou-se pela sebe e saiu para o caminho do outro lado. Após ter
andado um bocado descobriu no meio da urze uma grande escrivaninha. Atrás da
escrivaninha estava sentado um homem velho. Parecia concentrado a fazer
contas. Sofia foi ter com ele e perguntou-lhe o nome.
— Scrooge — disse e voltou a debruçar-se sobre os seus papéis. — Eu
chamo-me Sofia. És um homem de negócios?Ele acenou afirmativamente.
— E podre de rico. Não se pode desperdiçar nem um centavo. Por isso,
tenho de me concentrar na minha contabilidade.
— Como é que agüentas?
Sofia acenou-lhe com a mão e prosseguiu. Mas não andara muito quando
viu uma moça sentada sozinha debaixo de uma árvore grande. A pequena estava
vestida com andrajos e parecia pálida e doente.
Quando Sofia passou, enfiou a mão num pequeno saco e tirou uma caixa
de fósforos.
— Queres comprar fósforos? — perguntou. Sofia procurou no seu bolso.
Ainda tinha uma coroa.— Quanto custam?
— Uma coroa.
Sofia deu a coroa à pequena e ficou imóvel com a caixa de fósforos nas
mãos.
— És a primeira pessoa que me compra alguma coisa há mais de cem
anos. Às vezes, passo fome, às vezes, fico com frio.
Sofia pensou que não era de admirar que a pequena não conseguisse
vender fósforos no meio do bosque. Mas lembrou-se do homem de negócios rico.
A moça não tinha necessidade de passar fome, se ele tinha tanto dinheiro.
— Vem comigo — disse Sofia. Pegou na mão da pequena e levou-a
consigo para junto do homem rico.
— Tens de fazer com que esta moça tenha uma vida melhor — afirmou.
O homem levantou os olhos dos seus papéis e declarou:— Isso custa dinheiro, e eu já te disse que não se pode desperdiçar um
centavo sequer.
— Mas é injusto que tu sejas tão rico e ela tão pobre — insistiu Sofia.
— Que absurdo! Só há justiça entre iguais.
— O que queres dizer com isso?
— Eu venci pelo trabalho e o trabalho deu os seus frutos. Chama-se a isso
progresso.
— Vejam só!
— Se não me ajudas, eu morro — disse a moça pobre.O homem de negócios voltou a levantar os olhos dos papéis. Depois, atirou
com a pena para a mesa num gesto impaciente.
— Tu não fazes parte da minha contabilidade. Por isso, vai para o asilo.
— Se não me ajudas, incendeio o bosque — disse a moça pobre. O
homem só então se levantou da sua escrivaninha, mas a moça já tinha acendido
um fósforo. Levou-o a alguns tufos de erva seca que se incendiaram
imediatamente. O homem rico agitava freneticamente os braços.
— Socorro — gritou. — Fogo!
A moça olhou para ele com um sorriso malicioso.
— Certamente não sabias que eu era comunista.
No momento seguinte, a moça, o homem de negócios e a escrivaninha
tinham desaparecido. Sofia estava ali sozinha, enquanto a erva ardia cada vez
mais. Tentou apagar as chamas com o pé e, passado pouco tempo, conseguiu.Graças a Deus! Sofia olhou para os tufos de erva negros. Segurava na mão
uma caixa de fósforos. Não teria sido ela a deitar o fogo? Quando encontrou
Alberto em frente à cabana, contou-lhe o que tinha sucedido.
— Scrooge é um capitalista avarento em “Um Conto de Natal” de Charles
Dickens. A moça com os fósforos conhece-a certamente do conto de Hans
Christian Andersen.
— Mas não é estranho que eu os tenha encontrado aqui no bosque?
— Não, de modo algum. Este não é um bosque normal. E uma vez que
vamos falar de “Karl Marx” é bom que tenhas visto um exemplo das enormes
lutas de classes em meados do século passado. Mas vamos lá para dentro. Apesar
de tudo, estamos um pouco mais protegidos do major. Sentaram-se à mesa junto
da janela que dava para o lago.
Sofia ainda se lembrava bem como vira o pequeno lago depois de ter
bebido da garrafa azul. Nesse momento, a garrafa vermelha e a garrafa azul
estavam sobre a consola da lareira. Na mesa havia uma reprodução em
miniatura de um templo grego.— O que é isto? — perguntou Sofia.
— Cada coisa de sua vez, minha filha.E Alberto começou a falar sobre
Marx:
— Quando Kierkegaard foi para Berlim em 1841, talvez tenha estado
sentado ao lado de Marx nas lições de Schelling. Kierkegaard escreveu uma tese
sobre Sócrates e Karl Marx escreveu na mesma altura uma tese sobre
Demócrito e Epicuro — ou seja, sobre o materialismo na Antiguidade. Assim, já
tinham definido o curso futuro da sua filosofia.
— Porque Kierkegaard se tornou um existencialista e Marx materialista?
— Marx é definido como um materialista histórico. Mas ainda vamos
voltar a esse ponto.
— Continua!
— Seja Marx, seja Kierkegaard, tiveram como ponto de partida a filosofia
de Hegel. Ambos foram influenciados pelo seu modo de pensar, mas também
ambos se distanciaram da idéia de Hegel de um espírito do mundo — ou daquiloa que chamamos o “idealismo” de Hegel.
— Isso era um pouco vago.
— Exato. De um modo geral, dizemos que a época dos grandes sistemas
filosóficos terminou com Hegel. Depois dele, a filosofia segue uma orientação
completamente nova. Em lugar de grandes sistemas especulativos surgem as
chamadas “filosofias da existência”, ou também “filosofias da ação”. Em
relação a isto, Marx dizia que até então os filósofos apenas tinham interpretado o
mundo, em vez de o transformar. Estas palavras caracterizam um ponto de
mudança importante na história da filosofia.
— Depois de ter encontrado Scrooge e a mocinha dos fósforos, não tenho
dificuldade em compreender o que Marx tinha em mente.
— O pensamento de Marx tinha uma finalidade prática — e política.
Devemos também reparar que ele não era apenas filósofo. Era também
historiador, sociólogo e economista.
— E foi inovador em todos esses domínios?— Pelo menos, nenhum outro filósofo teve tanta importância para a
política prática. Por outro lado, temos que nos precaver de identificar com o seu
pensamento tudo o que foi designado por “marxista”.
Diz-se que Marx se tornou “marxista” por volta de 1845; mas ele não
gostou da designação durante toda a vida.
— Jesus era cristão?
— Isso também é discutível.
— Continua.
— Desde o início, o seu amigo e colega “Friedrich Engels” contribuiu para
aquilo que mais tarde foi designado por marxismo. No nosso século, “Lenine,
Estaline e Mao” desenvolveram o marxismo. Nos países de Leste falava-se de
“marxismo-leninismo”, a partir de Lenine.
— Então eu proponho que nos limitemos a Marx. Disseste que era um
“materialista histórico”?— Não era um materialista filosófico como os atomistas da Antiguidade e
os materialistas mecanicistas do século XVII e XVIII. Segundo ele, são antes de
mais as condições materiais de vida numa sociedade que determinam o nosso
pensamento e a nossa consciência. Estas relações materiais são também
determinantes para o desenvolvimento histórico.
— Isso parece totalmente diferente do “espírito” de Hegel.
— Hegel defendera que o desenvolvimento histórico derivava da tensão
entre os opostos, que desapareciam por meio de mudança súbita — e com eles a
tensão. Marx achou correta esta idéia. Mas considerava que Hegel tinha colocado
tudo de pernas para o ar.
— Não para todo o sempre, espero?
— Hegel chamava à força que faz avançar a história “espírito do mundo”
ou “razão do mundo”. Segundo Marx, esta perspectiva invertia a verdade. Ele
queria provar que as transformações das condições materiais são determinantes
para a história. Não são as condições espirituais numa sociedade que levam a
alterações materiais, mas o inverso: as relações materiais determinam em última
análise as espirituais. São principalmente as forças econômicas numa sociedade
que provocam as transformações em todos os outros domínios e dirigem a
história.— Podes dar-me um exemplo?
— A filosofia e a ciência da Antiguidade tinham um fim puramente
teórico. Não interessava aos filósofos da Antiguidade que o seu saber teórico
implicasse quaisquer vantagens práticas.
— Ah, sim?
— Isso tinha a ver com o modo como as sociedades em que viviam
estavam organizadas. A vida e a produção de bens nas sociedades antigas eram
baseadas principalmente na mão-de-obra escrava. Por isso, os cidadãos não
achavam necessário melhorar a produção por meio de inventos práticos. Isso é
um exemplo do modo como as relações materiais numa sociedade podem nela
influenciar o pensamento filosófico.
— Compreendo.
— Marx designava estas relações materiais, econômicas e sociais como a
base da sociedade. O modo como se pensa numa sociedade as suas instituições
políticas, as suas leis, e também a sua religião, a moral, a arte, a filosofia e aciência eram designados por Marx a sua “superestrutura”.
— Base e superestrutura, portanto. — E agora, podes-me passar o templo
grego?
— Faz favor.
— É uma cópia em miniatura do antigo Partenon na Acrópole. Na
realidade já o viste.
— Em vídeo, queres tu dizer.
— Vês que o templo tem um telhado elegante e com muitos orna-mentos.
Talvez seja o telhado e o frontão que atraem primeiro a atenção. É isto que
poderíamos designar por superestrutura. Mas o telhado não fica suspenso no ar.
— É sustentado por colunas.— Todo o edifício precisa de um fundamento sólido, uma base que
sustente toda a construção. Segundo Marx, as relações materiais sustentam de
certo modo todos os pensamentos e idéias que há na sociedade. Significa que a
superestrutura de uma sociedade é um reflexo da sua base material.
— Queres dizer com isso que a teoria das idéias de Platão é apenas um
reflexo da olaria daquela época e da viticultura ateniense?
— Não, também não é assim tão simples, e Marx chamou a atenção para
isso. Naturalmente, a estrutura e superestrutura de uma sociedade influenciam-se
reciprocamente. Se Marx tivesse negado isso, teria sido um “materialista
mecanicista”, mas uma vez que admitiu que entre a estrutura e a superestrutura
existia também uma relação recíproca, uma tensão, dizemos que Marx é um
“materialista dialético”. Ainda te lembras do que Hegel entendia por
desenvolvimento dialético. E, além disso, podes reparar que Platão não era nem
oleiro nem viticultor.
— Compreendo. Queres dizer mais alguma coisa sobre o templo?
— Sim. Observando bem a base, podes fazer-me uma descrição dela?
— As colunas estão sobre um fundamento constituído por três níveis ou
degraus.— Analogamente, podemos distinguir três níveis na base da sociedade. Em
baixo está aquilo que Marx designa por condições de produção de uma
sociedade. Por isto, entende as condições e recursos naturais de uma sociedade,
ou seja, o tipo de vegetação, o clima, as matérias primas, as riquezas do solo,
entre outras coisas. Constituem os verdadeiros alicerces de uma sociedade, e
estes alicerces estabelecem limites claros para o tipo de produção possível na
sociedade. Desse modo, estabelecem também claros limites para o tipo de
sociedade e cultura que podem existir num local.
— No Sara é impossível a pesca do arenque. E na Lapônia é impossível o
cultivo de tâmaras.
— Entendeste perfeitamente. Mas numa cultura nômade, os homens
pensam de um modo completamente diferente do de uma aldeia de pescadores
no norte da Noruega. O nível seguinte é constituído pelas forças produtivas de
uma sociedade. Marx refere-se à mão-de-obra humana, mas também aos seus
utensílios, aos seus instrumentos e às suas máquinas, os chamados meios de
produção.
— Antigamente pescava-se em barcos a remos, hoje o peixe é apanhado
por arrastões enormes.
— E, desse modo, chegas ao terceiro nível da base de uma sociedade.
Torna-se mais complicado, porque diz respeito a quem possui os meios deprodução numa sociedade e ao modo como o trabalho é nela organizado, ou seja,
diz respeito às relações de propriedade e à divisão do trabalho. Marx chama-lhes
as relações de produção numa sociedade.
Constituem o terceiro nível.
— Compreendo.
— Até agora, podemos pois verificar que, segundo Marx, o modo de
produção numa sociedade determina as relações políticas e ideológicas que
encontramos nela. Não é um acaso o fato de pensarmos hoje de um modo
diferente — e termos uma moral um pouco diferente — da dos membros de
uma sociedade feudal.
— Então Marx não acreditava num direito natural válido eternamente?
— Não, a resposta à pergunta do que é moralmente correto era para Marx
um produto da base social. De fato não é por acaso que numa antiga sociedade
camponesa os pais decidiam com quem os filhos iriam casar. Era um problema
ligado à herança da terra.Numa grande cidade moderna, as relações sociais são diferentes e por isso
as pessoas também escolhem os seus companheiros de um modo diferente.
Podemos conhecer os nossos futuros companheiros numa festa ou na discoteca,
se estamos bastante apaixonados vamos morar juntos.
— Eu não aceitaria que os meus pais me escolhessem o marido.
— Não, porque tu és filha do teu tempo. Marx acentua ainda que
geralmente é a classe dominante numa sociedade que determina o que é falso e
o que é correto, porque toda a história, segundo ele, é a história da “luta de
classes”, ou seja, de lutas para decidir quem possuirá os meios de produção.
— Então os pensamentos e as idéias dos homens não contribuem para
mudar a história?
— Sim e não. Marx sabia que as relações na superestrutura de uma
sociedade influenciam a sua base; mas negava que a superestrutura tivesse uma
história independente. Aquilo que faz a história progredir desde a sociedade da
Antiguidade baseada na “escravidão” até à sociedade industrial foi acima de
tudo, segundo ele, transformações na estrutura.
— Sim, já disseste isso.— Em todas as fases da história existia, segundo Marx, uma oposição entre
duas classes sociais dominantes. Na “sociedade escravagista” da Antiguidade,
havia a oposição entre os cidadãos livres e os escravos, na sociedade feudal da
Idade Média entre os senhores feudais e os servos e, mais tarde, entre nobres e
burgueses. Mas mesmo no tempo de Marx, numa sociedade burguesa ou
capitalista, a oposição existia principalmente entre capitalistas e trabalhadores ou
proletários — ou seja, entre aqueles que detinham os meios de produção e
aqueles que não os possuíam.
E visto que a classe dirigente nunca cederia o seu poder voluntaria-mente,
só por meio de uma revolução poderia haver mudança.
— E quanto à sociedade comunista?
— Marx preocupava-se principalmente com a questão da passagem de
uma sociedade capitalista para uma sociedade “comunista”. Ele faz uma análise
detalhada do modo de produção capitalista. Mas, antes de tratarmos disso, temos
de falar um pouco sobre a sua concepção do trabalho humano.
— Diz.— Antes de se tornar comunista, o jovem Marx tinha-se interessado pelo
que sucede verdadeiramente com os homens quando trabalham. Hegel também
o tinha analisado e vira um efeito recíproco ou “dialético” entre o homem e a
natureza. O jovem Marx defendeu a mesma tese: quando o homem modifica a
natureza, o próprio homem é modificado.
Ou, dito de outra forma: quando o homem trabalha, intervém na natureza e
influencia-a; mas neste processo de trabalho a natureza também intervém no
homem e influencia o seu modo de pensar.
— Diz-me que trabalho fazes e dir-te-ei quem és.
— Exato. Marx achava que o modo como trabalhamos influencia a nossa
consciência, e que a nossa consciência também influencia o modo como
trabalhamos. Podes dizer que existe uma relação recíproca entre “mão” e
“cabeça”. Deste modo, o conhecimento do homem está estreitamente
relacionado com o seu trabalho.
— Então deve ser terrível ser-se desempregado.
— Sim, quem não tem trabalho sente-se de certo modo vazio. Já Hegel
falara neste aspecto. Para Hegel e Marx, o trabalho é uma coisa positiva, que diz
respeito à natureza, que tem a ver com o ser humano.— Então é positivo ser-se trabalhador?
— Sim. Mas, justamente nesse ponto, Marx faz uma crítica demolidora ao
modo de produção capitalista. — Diz!
— No sistema capitalista, o trabalhador trabalha para outra pessoa. E
assim, o trabalho torna-se exterior a ele — ou uma coisa que não lhe pertence. O
trabalhador torna-se estranho ao seu próprio trabalho — e conseqüentemente, a si
mesmo. Ele perde a sua dignidade humana. Marx, usando uma expressão
hegeliana, fala de alienação.
— Eu tenho uma tia que embrulha bombons numa fábrica há mais de vinte
anos, e por isso percebo perfeitamente o que queres dizer. Ela diz que odeia
quase todos os dias ir para o trabalho.
— E se ela odeia o trabalho, Sofia, tem de se odiar a si mesma.
— Pelo menos odeia bombons.— Na sociedade capitalista, o trabalho está organizado de tal forma que
um trabalhador executa na realidade um trabalho de escravo para uma outra
classe social.
Deste modo, o trabalhador não “aliena” apenas a sua mão-de-obra, mas
toda a sua natureza humana.
— É assim tão grave?
— Estamos a falar do modo como Marx via as coisas. Por isso, temos de
ter como ponto de partida as relações nas sociedades européias em meados de
1850. E aí, a resposta tem de ser um sim. Os trabalhadores tinham um dia de
catorze horas em recintos gelados. O salário era tão baixo que até crianças e
parturientes tinham de trabalhar, o que deu origem a condições sociais
indescritíveis. Muitas vezes, uma parte do salário era paga em aguardente barata
e muitas mulheres tinham de se prostituir, e os seus clientes eram os melhores
senhores da cidade: exatamente aquilo que devia dignificar o homem, o trabalho,
fazia do trabalhador um animal de carga.
— Isso põe-me furiosa.
— Também Marx se enfureceu. Ao mesmo tempo, os filhos da burguesiapodiam tocar violino em salas grandes e quentes após terem tomado um banho
refrescante.
— Que injustiça!
— Marx também pensava assim. No ano de 1848, publicou juntamente
com Friedrich Engels o famoso “Manifesto do Partido Comunista”. A primeira
frase neste manifesto diz: “Um espectro assombra a Europa — o espectro do
comunismo”.
— Estou a ficar assustada.
— Foi o que se passou com os burgueses, porque os proletários
começaram a sublevar-se. Queres ouvir como o “manifesto” termina?
— Sim.
— Os comunistas rejeitam ocultar as suas opiniões e intenções. Declaram
publicamente que os seus objetivos apenas podem ser alcançados pelo derrube
violento de toda a organização social existente. As classes dominantes que
tremam perante uma revolução comunista. Os proletários não têm nada a perdersenão as suas correntes. Têm um mundo a ganhar. “Proletários de todos os
países, uni-vos!”.
— Se as relações eram de fato tão más como disseste, eu também
subscreveria isso. Mas hoje são diferentes, não são?
— Na Noruega, sim, mas não em toda a parte. Ainda hoje muitos homens
vivem em condições desumanas. Ao mesmo tempo, produzem mercadorias que
tornam os capitalistas cada vez mais ricos. A isso chama Marx “exploração”.
— Podes explicar um pouco melhor essa palavra?
— Quando o trabalhador produz uma mercadoria, esta mercadoria tem
um certo valor de venda.
— Sim.
— Se tu retirares ao preço de venda do produto o salário do trabalha-dor e
outros custos de produção, sobra uma quantia. A esta soma chama Marx maisvalia
ou lucro. Significa que o capitalista se apodera de um valor que na verdade
foi o trabalhador a produzir. E a isso chama Marx exploração.— Compreendo.
— Nesse caso, o capitalista pode investir uma parte do lucro em novo
capital — por exemplo, na modernização das instalações de produção, na
expectativa de poder produzir artigos ainda mais baratos e, conseqüentemente,
aumentar ainda mais o seu lucro no futuro. — Sim, é lógico.
— Pois, pode parecer lógico, mas sob este aspecto e ainda sob outros,
Marx previa que, em longo prazo, as coisas não se passam como o capitalista
imagina.
— O que é que isso significa?
— Segundo Marx, o modo de produção capitalista era contraditório em si.
O capitalismo era um sistema econômico autodestrutivo, porque lhe faltava um
governo racional.
— De certo modo, é um bem para os oprimidos.— Pode-se dizer isso. Marx estava certo de que o sistema capitalista
caminhava para a ruína devido às suas contradições. O capitalismo era
“progressivo” — ou seja, orientado para o futuro —, mas apenas porque era um
estádio necessário a caminho do comunismo.
— Podes dar-me um exemplo do fato de o capitalismo ser autodestrutivo?
— Sim. Falamos do capitalista que tem muito dinheiro de sobra e
moderniza a sua empresa com uma parte deste excesso; Ao mesmo tempo, tem
de pagar as lições de violino dos filhos e, além disso, a esposa adquiriu certos
hábitos caros.
— Sim? — Mas isso não é tão importante neste contexto. Ele moderniza, ou
seja, compra novas máquinas e por isso não precisa de tantos empregados. Fá-lo
para aumentar o poder concorrencial.
— Compreendo.
— Mas não é o único a pensar assim. Significa que o conjunto da produção
num ramo é constantemente racionalizado. As fábricas são cada vez maiores e
pertencem a menos pessoas. E o que acontece então, Sofia?— Hm...
— É preciso menos mão-de-obra. E cada vez mais trabalhadores ficam
desempregados. Por isso, há problemas sociais cada vez maiores e essas crises,
segundo Marx, são um indício de que o capitalismo se aproxima do declínio. Mas
o capitalismo tem ainda mais características autodestruidoras. Se há cada vez
mais lucro com os meios de produção sem se criar simultaneamente mais-valia
suficiente para manter a produção a preços concorrenciais... Sim? O que faz o
capitalista nessa altura? Sabes-me dizer?
— Não, não sei mesmo.
— Mas imagina que tinhas uma fábrica, e não consegues atingir os teus
objetivos. Temes a falência. E agora pergunto-te: de que modo podes poupar
dinheiro?
— Talvez baixando os salários.
— Esperta! Sim, isso é o mais inteligente que podes fazer. Mas se todos os
capitalistas são tão inteligentes como tu — e são-no — os trabalhadores ficam tão
pobres que já não te podem comprar nada. Dizemos então que o poder decompra numa sociedade diminui. E caímos num círculo vicioso. Para a
propriedade particular capitalista é a hora fatal, porque nos encontramos numa
situação que se torna revolucionária.
— Compreendo.
— Para resumir: Marx acreditava que, por fim, os proletários se sublevariam
e se apoderariam dos meios de produção.
— E depois? — Segundo Marx, há por algum tempo uma nova sociedade
de classes, na qual os proletários submetem a burguesia pela força. A esta fase
de transição chamava Marx “ditadura do proletariado”. Em seguida a ditadura do
proletariado era substituída por uma sociedade sem classes, o “comunismo”. E
seria uma sociedade em que os meios de produção pertencem “a todos” — ou
seja, ao povo. Nessa sociedade cada um trabalharia “segundo a sua capacidade”
e “receberia de acordo com as suas necessidades”. O trabalho pertenceria ao
povo e por isso deixaria de haver alienação.
— Isso soa muito bem, mas o que se passou de fato? Deu-se a revolução?
— Sim e não. Hoje, os economistas podem provar que Marx errou em
vários pontos importantes, inclusivamente na sua análise das crises do
capitalismo. Marx também não teve em conta a exploração da natureza que hoje
é cada vez mais perigosa. Mas — porque há um grande mas...— Sim?
— O marxismo levou a grandes transformações. Não há dúvida de que o
socialismo, que se baseia em Marx na sua luta por justiça social, mesmo que não
o siga em tudo e recuse, por exemplo, a ditadura do proletariado, conseguiu
vencer na luta por uma sociedade mais humana. Sem dúvida vivemos hoje na
Europa numa sociedade mais justa e solidária do que no tempo de Marx. E
devemo-lo também a todo o movimento “socialista”.
— Podias explicar mais exatamente o que é o movimento socialista?
— Depois de Marx, esse movimento dividiu-se em duas correntes
principais: de um lado a “social-democracia”, de outro o “leninismo”. A socialdemocracia,
que queria seguir uma via progressiva e pacífica para uma
organização mais justa, tornou-se dominante na Europa ocidental. Podemos dizer
que esta via consiste numa revolução lenta. O leninismo, que continuava a
acreditar que apenas a revolução podia combater a antiga sociedade de classes,
foi importante para a Europa de este, Ásia e África. Cada um destes
movimentos, à sua maneira, lutou contra a miséria e a opressão.
— Mas não se criou uma nova forma de opressão? Por exemplo, na União
Soviética e na Europa de Leste?— Sem dúvida. E aqui vemos novamente que tudo aquilo em que o
homem toca se torna uma mistura de bem e de mal.
Seria errado responsabilizar Marx pelos erros e pelos aspectos negativos
dos países socialistas cento e cinqüenta anos após a sua morte. O que se pode
dizer é que ele refletiu pouco sobre o fato de que mesmo o comunismo, se viesse
a existir, não seria levado a cabo sem os homens — e os homens cometem erros.
Por isso, acho difícil imaginar um paraíso na terra. Os homens arranjarão
sempre novos problemas.
— Claro.
— E com isto, terminamos com Marx.
— Um momento! Não disseste que apenas há justiça entre iguais?
— Não, foi Scrooge que disse isso.— Como é que sabes que ele disse isso?
— Bom, nós dois temos o mesmo escritor. Deste modo, estamos muito
mais estreitamente ligados do que possa parecer a uma observação superficial.
— Maldita ironia!
— Dupla, Sofia, foi uma ironia dupla.
— Mas voltemos a essa questão da injustiça. Disseste que, para Marx, o
capitalismo era uma sociedade injusta. Como definirias uma sociedade justa?
— Um filósofo moral de inspiração marxista, “John Rawls”, tentou dar
uma definição, servindo-se deste exemplo: imagina que eras membro de um
conselho supremo que tem de fazer todas as leis de uma sociedade futura. —
Consigo muito bem imaginar-me num conselho desses.
— Eles têm de pensar em tudo, porque mal estiverem de acordo e tiverem
subscrito todas as leis, morrem.— Que horror!
— E segundos mais tarde acordarão na sociedade cujas leis fizeram. O
truque é o fato de não fazerem idéia de onde acordarão nessa sociedade, ou seja,
qual será a sua posição nela.
— Compreendo.
— Uma sociedade destas seria uma sociedade justa. Cada um estaria entre
iguais.
— E cada “uma” entre iguais.
— É evidente. Porque no jogo de Rawls também não saberíamos se íamos
acordar como homem ou como mulher. E uma vez que a probabilidade é de
cinqüenta para cinqüenta, a sociedade seria organizada de forma igual para
mulheres e homens.— Isso parece fascinante.
— Diz-me então. A Europa no tempo de Marx era uma sociedade assim?
— Não!
— Então talvez me possas indicar uma sociedade semelhante no mundo de
hoje.
— Bem...
— Reflete sobre isso. Terminamos com Marx.
— O que é que disseste?
— Fim de capítulo!

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