Na manhã de domingo, Hilde acordou com um estrondo. O “dossiê” caíra
ao chão. Tinha lido até tarde sobre Sofia e Alberto, que falavam sobre Marx.
Depois adormecera meio sentada, com o “dossiê” sobre a coberta. A lâmpada
tinha ficado acesa toda a noite.
O despertador na mesa de cabeceira indicava em números verdes as 8.59.
Hilde sonhara com fábricas gigantescas e cidades enegrecidas pela fuligem. A
um canto de uma rua uma menininha vendia fósforos. Pessoas bem vestidas,
com casacos compridos, passavam sem prestar atenção.
Quando Hilde se levantou, lembrou-se dos legisladores que haviam deacordar numa sociedade organizada por eles mesmos. Hilde estava contente por
acordar em Bjerkely .
Gostaria de acordar na Noruega sem saber exatamente onde e quando? Na
Idade Média, por exemplo — ou numa sociedade da Idade da Pedra há dez mil
anos? Hilde procurou imaginar como seria estar sentada à entrada duma
caverna. Talvez estivesse a raspar uma pele. Como teria vivido uma moça de
quinze anos antes de ter existido qualquer coisa como a civilização? Como
pensaria, se fosse essa moça de quinze anos?
Hilde vestiu um pulôver, levantou o “dossiê” do chão e sentou-se na cama
com ele para continuar a ler o que o pai escrevera.
Mal Alberto dissera “Fim de capítulo!”, alguém bateu à porta da cabana do
major.
— Não temos outra escolha, pois não? — perguntou Sofia.
— Não — resmungou Alberto.
Lá fora estava um homem muito velho com cabelos compridos e barba.Na mão direita trazia um bordão de viandante, na esquerda um grande cartaz que
mostrava um barco. No barco havia animais de todo o gênero.
— E quem é este senhor? — perguntou Alberto.
— O meu nome é Noé.
— Já imaginava.
— Teu antepassado, meu rapaz. Mas já não está na moda lembrarmo-nos
dos antepassados, pois não?
— O que tens aí na mão?
— Uma imagem de todos os animais que foram salvos do Dilúvio
Universal. Toma, minha filha, isto é para ti.Sofia pegou no grande cartaz e o velho disse:
— E agora tenho que ir para casa, regar as videiras.
Deu um pequeno salto, bateu os calcanhares no ar e foi a saltitar em
direção ao bosque, como só os homens muitos velhos e com bom humor sabem
fazer.
Sofia e Alberto voltaram para dentro e sentaram-se. Sofia olhou para o
grande cartaz, mas ainda não vira muito quando Alberto lho arrancou das mãos.
— Primeiro, temos de nos concentrar nas grandes linhas.
— Então começa.
— Esquecemo-nos de referir que Marx passou os últimos trinta e quatro
anos da sua vida em Londres. Mudou-se em 1849 para Londres e lá morreu em
1883. Durante todo este tempo, “Charles Darwin” também viveu nos arredores
de Londres. Morreu em 1882 e foi sepultado com todas as honras na abadia de
Westminster como um dos grandes filhos da Inglaterra. Mas não foi apenas no
tempo e no espaço que os caminhos de Marx e Darwin se cruzaram.Marx quis dedicar a edição inglesa da sua grande obra, “O Capital”, a
Darwin, mas este recusou. Quando Marx morreu, um ano após Darwin, o seu
amigo Friedrich Engels disse: “Tal como Darwin descobriu a lei da evolução da
natureza orgânica, também Marx descobriu a lei da evolução da história
humana.”
— Compreendo. — Um outro pensador importante que também pode ser
relacionado com Darwin é o psicólogo “Sigmund Freud”.
Também ele passou, mais de meio século mais tarde, os seus últimos anos
de vida em Londres. Freud apontou para o fato de a teoria da evolução, tal como
a sua psicanálise, ter ofendido os homens no seu “ingênuo amor próprio”.
— São nomes a mais. Vamos falar de Marx, Darwin ou Freud?
— Num sentido lato, podemos falar também de uma “corrente naturalista”
que se estendeu de meados do século XIX até ao nosso. Por “naturalismo”
entendemos uma concepção da realidade que não aceita nenhuma outra
realidade além da natureza e do mundo sensível. Um naturalista,
conseqüentemente, vê também o homem como uma parte da natureza. Primeiro
que tudo, um investigador naturalista parte apenas dos fatos dados pela natureza
— logo, não parte nem de especulações racionalistas nem de qualquer forma de
revelação divina.— E isso é válido tanto para Marx como para Darwin e para Freud?
— Exato. Em meados do século XIX, as palavras-chave eram “natureza”,
“ambiente”, “história”, “evolução” e “crescimento”. Marx tinha referido que a
consciência humana era um produto da base material de uma sociedade. Darwin
provou que o homem é o resultado de uma longa evolução biológica, e o estudo
de Freud do inconsciente revelou que as ações do homem se devem freqüentemente
a certos impulsos ou instintos “animais” que residem na sua natureza.
— Acho que compreendo mais ou menos o que queres dizer com
naturalismo. Mas não devíamos falar de um de cada vez?
— De Marx já falamos. Falemos então sobre Darwin. Talvez ainda te
lembres de que os pré-socráticos queriam encontrar “explicações naturais” para
os processos da natureza. Do mesmo modo, para isso tinham de se libertar de
antigas explicações mitológicas, Darwin teve de se libertar da doutrina cristã
vigente sobre a criação do homem e dos animais.
— Mas ele era um filósofo?— Darwin era biólogo e naturalista. Foi o cientista que nos últimos tempos
fez vacilar a visão bíblica do lugar do homem na Criação, mais do que qualquer
outro.
— Então vais falar sobre a teoria da evolução de Darwin.
— Vamos começar pelo próprio Darwin. Nasceu em Shrewsbury em
1809. O seu pai, o doutor Robert Darwin, era um médico conhecido e foi muito
severo na educação do filho. Quando Charles freqüentava a escola superior de
Shrewsbury, o reitor descreveu-o como um rapaz que vadiava e dizia bobagens,
sem fazer nada de útil. Por útil, entendia ele o estudo dos verbos gregos e latinos.
E quando falava de vadiar pensava no fato de Charles colecionar todo o tipo de
coleópteros.
— Deve ter-se arrependido dessas palavras.
— Ainda durante o seu curso de teologia, Darwin já se interessava mais
por aves e insetos que pelos estudos. Por isso, não fez nenhum exame em teologia
com boa nota. Mas, paralelamente ao curso de teologia, conseguiu obter uma
certa fama como naturalista. Interessava-se também por geologia, que era
naquela época a ciência mais em expansão.
Depois de ter feito o seu exame final de teologia em Cambridge, em Abril
de 1813, viajou pelo Norte do País de Gales, para estudar formações rochosas eprocurar fósseis. Em Agosto do mesmo ano, com apenas vinte e dois anos,
recebeu uma carta que havia de ser determinante para toda a sua vida...
— O que estava escrito nessa carta?
— A carta era do seu amigo e professor John Steven Henslow. Escreveu
que lhe tinham pedido para dar o nome de um naturalista que pudesse viajar com
o capitão Fitzroy, o qual recebera da parte do governo o encargo de desenhar
uma carta geográfica da ponta meridional da América do Sul, e que achava
Darwin a pessoa mais qualificada para essa tarefa. Não sabia nada sobre o
salário para o investigador procurado, mas a viagem duraria dois anos...
— Como consegues fixar tudo de memória?
— Nada mais fácil, Sofia.
— E ele aceitou?
— Ele tinha uma grande vontade de aproveitar a oportunidade, mas
naqueles tempos os jovens não faziam nada sem o consentimento dos pais.Darwin perguntou ao pai, que concordou depois de muita hesitação — e
ainda pagou a viagem do filho. No que diz respeito ao salário, viu-se logo que não
estava previsto...
— Ah...
— O navio pertencia à Marinha Inglesa e chamava-se “H. M. S. Beagle”.
Largou de Plymouth a 27 de Dezembro de 1831 em direção à América do Sul e
só regressou a Inglaterra em Outubro de 1836. Os dois anos passaram a cinco e a
viagem à América do Sul tornou-se uma volta ao mundo. E estamos a falar da
viagem de investigação mais importante da época moderna.
— Eles viajaram mesmo à volta do mundo?
— No verdadeiro sentido da palavra, sim. A partir da América do Sul, a
viagem prosseguiu pelo Pacífico em direção à Nova Zelândia, Austrália e África
do Sul.
Daqui, navegaram novamente para a América do Sul para regressarem
finalmente a Inglaterra. O próprio Darwin afirmou que a viagem com o Beaglefora o acontecimento mais importante de toda a sua vida.
— Não devia ser fácil ser naturalista no mar, pois não?
— Durante o primeiro ano, o “Beagle” navegou de um lado para o outro
ao longo costa sul-americana. Isso deu a Darwin a oportunidade de se
familiarizar em terra com o continente. De importância decisiva foram também
os numerosos desembarques nas ilhas Galápagos no oceano Pacífico, a oeste da
América do Sul. Deste modo, ele recolheu material precioso que era
progressivamente enviado para o seu país. Guardou para si as numerosas
reflexões que fez sobre a natureza e a evolução da vida. Quando regressou a
casa, com apenas vinte e sete anos, era já um famoso naturalista. E
secretamente tinha já uma idéia clara daquilo que seria a sua teoria da evolução.
No entanto, passaram muitos anos até ele publicar a sua obra principal. Porque
Darwin era um homem cauteloso, Sofia, e assim deve ser sempre um naturalista.
— Como se chama essa obra principal?
— Bom, houve várias. Mas o livro que desencadeou em Inglaterra os
debates mais acesos foi “A Origem das Espécies”, publicado em 1859. O seu
título completo era “On the Origin of Species by Means of Natural Selection or
the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life”. Este título comprido
é basicamente um resumo da teoria de Darwin.— Então devias traduzi-lo para mim.
— Isso não é fácil, porque os conceitos que aparecem nele foram
traduzidos de diversos modos desde então. Uma tradução atual poderia ser:
“Sobre a Origem das Espécies por Meio de Seleção Natural ou a Preservação
das Raças Favorecidas na Luta pela Vida”.
— É um título muito rico em conteúdo.
— Vamos analisá-lo parte por parte. Na “Origem das Espécies”, Darwin
apresentou duas teorias ou teses principais: primeiro, partiu do princípio de que
todas as plantas e animais existentes hoje descendem de formas anteriores
primitivas. Pressupôs também uma evolução biológica.
Em segundo lugar, afirmou que esta evolução se devia à “seleção natural”.
— Por que motivo são os mais fortes que sobrevivem?
— Vamos concentrar-nos primeiro na idéia de evolução. Isso por si só não
era particularmente original. Em certos meios, a aceitação de uma evolução
biológica já estava muito difundida cerca do ano 1800. O zoólogo francês “Jeande Lamarck” já dera o tom. Ainda antes dele, o avô de Darwin, “Erasmus
Darwin”, apresentara a teoria segundo a qual plantas e animais tinham evoluído a
partir de algumas espécies primitivas.
Mas ninguém tinha fornecido uma explicação aceitável para o modo como
essa evolução se tinha dado. E, por isso, também não eram adversários muito
perigosos para a Igreja.
— Ao contrário de Darwin?
— Sim, e havia um motivo para isso. Tanto os religiosos como muitos
cientistas seguiam a doutrina bíblica segundo a qual as diversas espécies vegetais
e animais são imutáveis. Partiam do princípio de que cada espécie animal tinha
nascido de uma vez para sempre através de um único ato criador. E, além disso,
esta concepção cristã estava de acordo com a de Platão e Aristóteles.
— Como assim?
— A teoria das idéias de Platão pressupunha que todas as espécies animais
eram imutáveis, uma vez que eram criadas segundo o arquétipo da respectiva
idéia ou forma. O fato de as espécies animais serem imutáveis era também um
ponto assente na filosofia de Aristóteles. Mas justamente no tempo de Darwin,
fizeram-se algumas observações e descobertas que punham em risco esta
concepção tradicional.— Que tipo de observações e descobertas foram?
— Em primeiro lugar, descobriram-se cada vez mais fósseis e em segundo
lugar descobriram-se grandes fósseis dos ossos de animais extintos. O próprio
Darwin se admirou ainda com o fato de se terem encontrado fósseis de animais
marinhos em montanhas. Ele mesmo fizera essas descobertas nos Andes, na
América do Sul. Mas o que faziam animais marinhos nos Andes, Sofia? Sabes
responder-me?
— Não.
— Havia quem achasse que homens ou animais os tinham deixado aí.
Outros achavam que Deus tinha criado esses fósseis de animais marinhos para
induzir em erro os incrédulos.
— E o que pensava a ciência?
— A maioria dos geólogos seguia uma “teoria da catástrofe”, segundo a
qual a Terra fora assolada várias vezes por grandes cheias, terremotos e outras
catástrofes que tinham destruído todas as formas de vida. Uma catástrofe dessegênero é descrita na Bíblia: o Dilúvio Universal, devido ao qual Noé construiu a
sua arca. Após cada catástrofe, Deus teria renovado a vida na Terra criando
plantas e animais novos — e mais perfeitos.
— Nesse caso, os fósseis seriam as marcas de todas as formas de vida
anteriores que tinham sido exterminadas por essas catástrofes gigantescas?
— Exato. Dizia-se, por exemplo, que os fósseis eram as marcas de animais
que não tiveram lugar na arca. Mas quando Darwin partiu com o Beagle, levou
consigo o primeiro volume da obra “Principles of Geology” do geólogo inglês
“Charles Ly ell”. Ele achava que a geografia atual da Terra — com montanhas
altas e vales profundos — era o resultado de uma evolução muito longa e lenta e
afirmava que alterações muito pequenas podiam provocar grandes alterações
geográficas se se tivesse em consideração grandes espaços de tempo.
— Em que tipo de mudanças estava ele a pensar?
— Nas mesmas forças que ainda hoje atuam: o tempo e o vento, degelos,
terremotos e desabamentos. Diz-se que o gotejar constante fura a pedra, não pela
sua força, mas pela sua ação contínua. Lyell defendia que essas transformações
pequenas e progressivas podiam alterar completamente a natureza num grande
espaço de tempo. Darwin compreendeu que esta idéia não podia explicar só por
si o motivo pelo qual encontrara nos Andes fósseis de animais marinhos. Mas
nunca se esqueceu, durante toda a sua vida de investigador, que “mudanças
pequenas e progressivas” podem levar a alterações dramáticas se pensarmos no
fator tempo.— Ele pensava que uma explicação semelhante podia ser aplicada à
evolução dos animais?
— Sim, e fez a si mesmo essa pergunta. Mas, como eu disse, Darwin era
um homem prudente. Ponderava longamente as questões antes de ousar dar as
respostas. Deste modo, usava o método de todos os verdadeiros filósofos, que
afirma: é importante perguntar mas não é preciso pressa para responder.
— Compreendo.
— Um fator decisivo na teoria de Ly ell era a idade da terra. No tempo de
Darwin estava muito difundida a opinião de que Deus tinha criado a Terra há
cerca de seis mil anos. Tinha-se calculado este número contando todas as
gerações desde Adão e Eva até ao presente.
— Que ingenuidade!
— Sabemos sempre mais posteriormente. Darwin estimou a idade da
Terra em trezentos milhões de anos. Uma coisa era clara: nem a teoria de Ly ell
da evolução biológica progressiva nem a própria teoria da evolução de Darwin
faziam sentido se não se tinha em conta períodos muito extensos.— Qual é a idade da Terra?
— Hoje sabemos que a Terra tem alguns milhares de milhões de anos.
— Já é suficiente... — Até agora, concentramo-nos num dos argumentos
de Darwin a favor de uma evolução biológica, o da “presença estratificada de
fósseis” nas várias formações rochosas. Um outro argumento era a “distribuição
geográfica” das espécies vivas. A viagem de pesquisa de Darwin forneceu
material novo e extremamente rico. Ele vira com os próprios olhos que as
diversas espécies animais de uma região se podiam distinguir entre si graças a
diferenças mínimas. Fez algumas observações interessantes principalmente nas
ilhas Galápagos, a oeste do Equador.
— Conta!
— Trata-se de um grupo de ilhas vulcânicas muito próximas entre si. Por
isso não havia grandes diferenças na flora e fauna. Mas Darwin estava
interessado justamente nas pequenas diferenças. Em todas as ilhas encontrou
grandes tartarugas gigantes, que diferiam sempre um pouco de ilha para ilha.
Teria Deus realmente criado uma raça específica de tartarugas gigantes para
cada ilha?— É pouco provável.
— Mais importante ainda foi o que Darwin observou na vida das aves das
ilhas Galápagos. De ilha para ilha variavam as espécies de tentilhões —
principalmente na forma do bico. Darwin demonstrou que estas variações
estavam intimamente relacionadas com o modo como os tentilhões se
alimentavam nas diversas ilhas. O tentilhão de bico afiado vivia de pinhões, o
tentilhão pequeno vivia de insetos, o tentilhão de bico mais grosso alimentava-se
de insetos que viviam nos troncos e nos ramos. Cada uma destas espécies tinha
um bico que se ajustava perfeitamente ao modo de se alimentar. Poderiam todos
estes tentilhões descender de uma mesma espécie de tentilhão? Essa espécie
tinha-se adaptado de tal forma ao seu ambiente nas diversas ilhas, com o decurso
dos anos, que tivessem surgido finalmente novas espécies de tentilhões?
— Foi essa a conclusão a que ele chegou?
— Foi. E provavelmente Darwin só se tornou um “darwinista” nas ilhas
Galápagos. Ocorreu-lhe também que a fauna nesse pequeno arquipélago
apresentava grandes semelhanças com muitas espécies que ele vira na América
do Sul. Tinha Deus criado de uma vez por todas estes animais ligeiramente
diferentes uns dos outros — ou teria havido uma evolução? Teve cada vez mais
dúvidas de que as espécies fossem imutáveis. Mas faltava-lhe ainda uma boa
explicação para o modo como poderia suceder uma evolução ou uma adaptação
ao mundo. O que ele possuía era um argumento a favor do parentesco entre
todos os animais na Terra.— Qual era?
— Era o desenvolvimento dos fetos nos mamíferos. Se comparares os
fetos do cão, morcego, coelho e homem no mesmo estádio primitivo, quase não
vês diferenças. Só num estádio muito mais tardio do desenvolvimento dos fetos
podes distinguir fetos de homens e de coe-lhos. Seria isso um indício de que
somos parentes afastados?
— Mas ele ainda não tinha encontrado uma explicação para o modo como
a evolução para espécies diferentes se tinha dado?
— Ele continuava a refletir sobre a teoria de Ly ell acerca das pequenas
transformações que tinham grandes efeitos com o decorrer do tempo. Mas não
encontrou uma explicação que pudesse servir como princípio universal. Conhecia
a teoria de Lamarck, que reconhecera que as diversas espécies animais tinham
desenvolvido exatamente aquilo de que precisavam. E considerara que as girafas
tinham um pescoço muito comprido por se terem esticado durante muitas
gerações para chegar às folhas das árvores. Lamarck achava, portanto, que as
características que um indivíduo adquire através do próprio esforço são legadas à
descendência. Mas a teoria de que as “características adquiridas” eram
hereditárias foi recusada por Darwin — precisamente porque Lamarck não podia
provar as suas teses ousadas. Porém havia outra coisa — e muito mais próxima
— na qual Darwin pensava cada vez mais. Podes dizer que o verdadeiro
mecanismo da evolução das espécies estava à frente do seu nariz.
— Estou muito curiosa.— Preferia que descobrisses esse mecanismo por ti. Por isso, pergunto: Se
tens três vacas, mas apenas comida suficiente para duas, o que fazes?
— Tenho de abater uma vaca.
— Exato... e que vaca havias de abater?
— Aquela que dá menos leite.
— Estás a falar a sério?
— Sim, é lógico.
— É exatamente isso que os homens fazem desde há milênios. Mas ainda
sobram duas vacas. Partindo do princípio que queres fazer reprodução com uma,
qual é que escolhes?— A que dá mais leite. Nesse caso, a vitela será também uma boa vaca
leiteira.
— Preferes boas vacas leiteiras às más? Então, só nos falta uma tarefa. Se
gostas de caçar e tens dois cães de caça, mas tens de dar um deles, que cão
conservarias para ti?
— Ficaria com aquele que tivesse melhor faro para a caça.
— Preferirias, portanto, o melhor cão de caça, sim. E é assim, Sofia, que
os homens criam os animais há mais de dez mil anos. As galinhas nem sempre
puseram cinco ovos por semana, as ovelhas não tiveram sempre tanta lã e os
cavalos não foram sempre tão fortes e rápidos como são hoje. Os homens
fizeram uma “seleção artificial”. Isso também é válido para o reino vegetal. Não
plantamos batatas más se queremos ter renovos melhores. Não nos damos ao
trabalho de ceifar espigas sem grãos. Segundo Darwin, não há duas vacas, duas
espigas, dois cães e dois tentilhões iguais. A natureza apresenta uma enorme
variedade. Nem na mesma espécie há dois indivíduos totalmente iguais. Tu
mesma te apercebeste disso quando bebeste o líquido azul.
— Podes ter a certeza!— Darwin tinha que pôr a questão: poderia haver também na natureza um
mecanismo análogo? Seria possível que a natureza também fizesse uma “seleção
natural” dos indivíduos que devem sobreviver? E poderia esse mecanismo em
longo prazo provocar o aparecimento de espécies vegetais e animais
completamente novas?
— Aposto que a resposta é sim.
— Darwin ainda não conseguia imaginar exatamente como essa seleção
natural podia dar-se. Mas em Outubro de 1838 — passados exatamente dois anos
depois do seu regresso com o Beagle — veio-lhe às mãos por acaso um pequeno
livro do economista “Thomas Malthus”. O livro tinha o título “An Essay on the
Principle of Population”. O americano “Benjamin Franklin”, que tinha inventado
entre outras coisas o pára-raios, dera a Malthus a idéia de escrever esse livro.
Franklin referira que na natureza também tem de haver fatores limitantes,
porque, de outro modo, uma única espécie vegetal ou animal ter-se-ia difundido
em todo o planeta. Só por existirem muitas espécies diversas é que elas se
equilibram umas às outras.
— Compreendo.
— Malthus desenvolveu esta idéia e aplicou-a à situação demográfica da
Terra. Explicou que a capacidade de procriação do homem é tão grande que
nasciam sempre mais crianças do que as que podiam sobreviver. E uma vez que
a produção de alimento nunca pode andar a passo com o crescimento
populacional, um grande número de pessoas está condenado a sucumbir na luta
pela existência. Conseguirão sobreviver — e conseqüentemente assegurar a
subsistência da sua família — só aqueles que melhor se impuserem na luta pelasobrevivência.
— Parece lógico.
— E era justamente esse o mecanismo universal de que Darwin estivera à
procura. De repente, tinha uma explicação para o modo como decorria a
evolução: a “seleção natural” na luta pela sobrevivência, graças à qual quem está
melhor adaptado ao ambiente continuará a viver e a reproduzir-se. Era a segunda
teoria por ele proposta no seu livro “A Origem das Espécies”. Ele escreveu: “O
elefante reproduz-se mais lentamente do que todos os outros animais, e eu tive o
cuidado de calcular o mínimo provável da sua reprodução natural. Podemos ter
como bastante seguro que ele inicia a reprodução aos trinta anos e a mantém até
ao nonagésimo ano de vida, e que durante este período gera seis crias e vive até
aos cem anos. Neste caso, ao cabo de 740 a 750 anos haveria cerca de 19
milhões de elefantes descendentes de um primeiro casal.”
— Para não falar dos milhares de ovos de um único bacalhau.
— Darwin explicou ainda que a luta pela sobrevivência entre as espécies
mais semelhantes é freqüentemente mais dura, porque lutam pelo mesmo tipo de
alimento. E, nessa altura, são as pequenas diferenças — as pequenas vantagens
em relação à média — que são determinantes. Quanto mais dura é a luta pela
sobrevivência mais rapidamente se dá o desenvolvimento de novas espécies. Só
os indivíduos mais bem adaptados ao ambiente sobrevivem: todos os outros se
extinguem.— Então, quanto menos alimento e quanto mais descendência há, mais
rápida é a evolução?
— Não se trata apenas de alimento. Também pode ser importante não se
ser devorado por outros animais. Pode ser uma vantagem ter uma certa cor de
camuflagem, poder correr rapidamente, aperceber-se da presença de animais
inimigos — ou pelo menos ter mau sabor. Um veneno que mate um predador é
também importante. Não é por acaso que muitos cactos são venenosos, Sofia. No
deserto, quase só crescem cactos. E por isso estão particularmente expostos aos
ataques dos animais herbívoros.
— Além disso, a maior parte dos cactos têm picos.
— A capacidade de reprodução tem também uma importância
fundamental. Darwin estudou bem a polinização. As plantas, com os seus
perfumes e as suas cores, atraem os insetos que contribuem para a difusão do
pólen. O canto dos pássaros também é importante para a reprodução. Um touro
lento e melancólico, que não se interessa por vacas, não é importante para a
história da sua espécie. A única tarefa do indivíduo é atingir a maturidade sexual
e reproduzir-se, para conservar a espécie. É como uma longa estafeta, em que
aqueles que, por algum motivo, não conseguem transmitir os genes são sempre
excluídos. Deste modo, a raça melhora progressivamente. A resistência às
doenças também é uma característica que se conserva nas variantes que
sobrevivem.
— Então tudo melhora progressivamente?— A seleção contínua faz com que aqueles que estão adaptados a um
determinado ambiente — ou a um determinado nicho ecológico — sobrevivam
nesse ambiente. Mas aquilo que é uma vantagem num ambiente pode não sê-lo
noutro. Para alguns dos tentilhões das ilhas Galápagos, a capacidade de voar era
muito importante, mas não se o alimento tem que ser escavado do solo e não
existem animais predadores. Justamente porque na natureza há tantos nichos é
que se desenvolveram tantos animais com o decurso do tempo.
— Mas há apenas uma espécie humana. — Sim, porque os homens
possuem uma capacidade fantástica de se adaptar às mais diversas condições de
vida. Darwin ficou impressionado quando viu como os índios da Terra do Fogo
conseguiam sobreviver num clima tão frio. Se os homens junto ao equador têm
uma pele mais escura do que os habitantes das regiões setentrionais é porque a
pele escura protege da luz solar. Homens de pele branca que se expõem
demasiado ao sol estão mais sujeitos ao cancro de pele.
— A pele branca também é uma vantagem quando se vive num país a
norte?
— Claro, senão os homens teriam por toda a parte a pele escura. Mas a
pele branca tem mais facilidade em produzir um certo tipo de vitaminas — do
grupo D —, e isso é muito importante nas regiões que têm pouco sol. Hoje, isso
tem pouca importância porque tomamos vitaminas através da alimentação, mas
nada é casual na natureza: tudo se deve àquelas pequenas variações que atuaram
por um número infinito de gerações.— Isso é uma idéia fantástica.
— É, não é? Podemos agora resumir a teoria de Darwin deste modo...
— Despacha-te!
— ...dizendo que: a matéria-prima responsável pela evolução da vida na
Terra são as contínuas “variações” entre indivíduos dentro de uma mesma
espécie. E é a alta “taxa de natalidade” que permite que uma pequena
percentagem deles consiga sobreviver. O mecanismo na base da evolução é a
“seleção natural” na luta pela sobrevivência. Esta seleção faz com que apenas os
mais fortes ou os que se adaptam melhor consigam sobreviver.
— Parece lógico. Como foi recebido o livro sobre a origem das espécies?
— Desencadeou uma grande celeuma. A Igreja protestou fortemente e o
meio científico inglês dividiu-se. No fundo, estas reações não eram estranhas,
uma vez que Darwin eliminara em parte Deus do ato criador. Mas algumas
pessoas, mais iluminadas, disseram que era obra muito maior criar alguma coisa
que contivesse em si as possibilidades de desenvolvimento do que criar todas as
coisas de uma vez por todas, determinadas nos mínimos detalhes.De repente, Sofia levantou-se de um pulo do seu sofá.
— Olha, ali! — exclamou. Apontava para a janela. Junto ao lago, um
homem e uma mulher passeavam de mão dada. Estavam completamente nus.
— São Adão e Eva — afirmou Alberto. — Mais tarde ou mais cedo,
tinham de compartilhar a mesma irrealidade da Chapeuzinho Vermelho e da
Alice. Por isso apareceram aqui.
Sofia foi à janela para ver melhor, mas o par desapareceu rapidamente
entre as árvores.
— Porque, segundo Darwin, o homem evoluiu dos animais?
— Em 1871, publicou “The Descent of Man”, “A Descendência do
Homem”, no qual evidencia as semelhanças existentes entre os homens e os
animais, e defende que os seres humanos e os símios antropóides devem ter-se
desenvolvido a partir de um antepassado comum. Entretanto, tinham-se
encontrado os primeiros fósseis de crânios de um tipo humano extinto, primeiro
numa pedreira no Rochedo de Gibraltar e alguns anos mais tarde em Neandertal,
na Renânia. Por estranho que pareça, houve menos reação em 1871 do que em1859, o ano em que Darwin publicara “A Origem das Espécies”, se bem que, de
fato, a tese de que o homem descendia de animais já estava implícita no
primeiro livro. E como eu já disse, quando morreu em 1882, Darwin foi
sepultado com muitas honras como um pioneiro da ciência.
— E obteve no fim fama e glória?
— No fim, sim. Mas antes disso chamaram-lhe o homem mais perigoso de
Inglaterra.
— Meu Deus!
— “Esperemos que não seja verdade, mas se é esperemos que não se
venha a saber”, disse uma senhora da alta sociedade. Um cientista conhecido
disse uma coisa semelhante: “uma descoberta humilhante, e quanto menos se
falar dela, melhor”.
— Desse modo, quase demonstraram que o homem é aparentado com a
avestruz!
— Sim, bem podes dizer isso. Mas é fácil para nós criticar. Muitas pessoasse sentiram forçadas a rever a sua opinião sobre a narração bíblica da Criação. O
jovem autor “John Ruskin” exprimiu-o do seguinte modo: “Se os geólogos
pudessem deixar-me em paz! No fim de cada versículo da Bíblia ouço as suas
marteladas.”
— E as marteladas eram as dúvidas quanto à palavra de Deus?
— Era isso que ele queria dizer, porque não foi apenas a interpretação
literal da descrição bíblica a ser abalada. A teoria de Darwin afirmava também
que variações totalmente “casuais” tinham criado o homem. E mais, Darwin
reduziu o ser humano a um produto de uma coisa tão “desprezível” como a luta
pela existência.
— Darwin explicou o modo como nascem essas “variações casuais”?
— Estás a tocar no ponto mais frágil da sua teoria.
Darwin tinha apenas idéias muito vagas sobre a hereditariedade. Alguma
coisa desaparece no cruzamento. Um casal nunca tem dois filhos exatamente
iguais e isso já representa uma certa variação. Por outro lado, dificilmente surge
alguma coisa verdadeiramente nova. Além disso, há plantas e animais que se
reproduzem através de germinação ou simples divisão celular, logo sem
cruzamentos.Para explicar como se criam estas variações viria depois o chamado
neodarwinismo, que completou a teoria de Darwin.
— Conta!
— Toda a vida e toda a reprodução andam à volta da divisão celular.
Quando uma célula se divide em dois, formam-se duas células exata-mente
iguais com o mesmo material genético. Por divisão celular entendemos, portanto,
que uma célula se copia a si mesma.
— Sim?
— Mas, por vezes, há erros minúsculos neste processo — e por isso a
célula copiada não é totalmente igual à célula mãe. Este fenômeno é chamado
“mutação” na biologia moderna.
As mutações podem ser insignificantes ou, pelo contrário, levar a
transformações evidentes nas características do indivíduo. Podem ser
diretamente prejudiciais e, neste caso, os “mutantes” são constante-mente
eliminados. Muitas doenças também se devem a mutações. Mas, por vezes, umamutação pode fornecer ao indivíduo precisa-mente aquela característica positiva
da qual precisa para se poder impor na luta pela sobrevivência.
— Um pescoço mais comprido, por exemplo?
— A explicação de Lamarck para o longo pescoço das girafas era que as
girafas tinham esticado constantemente o pescoço para comerem as folhas das
árvores. Mas, segundo Darwin, as características adquiridas pelo hábito não
podiam ser transmitidas. Para Darwin, o pescoço comprido das girafas era uma
variação natural dos pescoços dos seus antepassados. O neodarwinismo completa
esta tese indicando a causa de tais variações.
— As mutações.
— Sim. Algumas mutações casuais no material genético deram a alguns
antepassados das girafas um pescoço ligeiramente mais longo do que a média.
Variação que se pode ter tornado positiva e importante num período de escassez
de alimento: quem chegava aos ramos mais altos das árvores conseguia
sobreviver melhor.
Podemos ainda imaginar que algumas destas “primeiras girafas”
desenvolveram a capacidade de esgravatar alimento do solo. Passado muito
tempo, uma espécie animal pode ter-se dividido em duas novas espécies animais.— Compreendo.
— Vou dar exemplos mais recentes do mecanismo da seleção natural. O
princípio é muito simples.
— Diz.
— Em Inglaterra há uma espécie de borboleta que vive nos troncos claros
das bétulas. Se recuarmos ao século XIII, podemos verificar que a maior parte
destas borboletas eram de um tom cinzento-claro. Por que, Sofia?
— Para não serem vistas pelos pássaros.
— De quando em quando, nasciam exemplares mais escuros e isso se
devia a mutações casuais. O que te parece que aconteceu às variantes escuras?
— Eram mais visíveis, e por isso presa fácil dos pássaros.— De fato, nesse ambiente, ou seja, nos troncos claros das bétulas, a cor
escura não era uma característica favorável, razão pela qual as borboletas de cor
clara se multiplicaram muito. Mas, em seguida, aconteceu uma coisa no
ambiente: com a industrialização, em muitas localidades, os troncos brancos
tornaram-se mais escuros por causa da fuligem. O que aconteceu então a estas
borboletas?
— Foi a vez de os exemplares escuros se desvencilharem melhor.
— Precisamente, e não foi necessário muito tempo para o seu número
aumentar. De 1848 a 1948 a quantidade dos exemplares escuros passou, em
algumas zonas, de um a noventa e nove por cento. O ambiente tinha mudado, e
não era uma vantagem ter-se cor clara, pelo contrário! Os exemplares brancos
eram imediatamente eliminados pelos pássaros mal pousavam nos troncos. Mas
houve uma nova transformação do ambiente: um uso mais limitado do carbono e
melhores instalações de filtragem tornaram nos últimos anos o ambiente mais
limpo.
— Então agora os troncos das bétulas são novamente brancos?
— Por esse motivo as borboletas estão a voltar à cor branca. É o que
chamamos “adaptação” e estamos a falar de uma lei da natureza. Há também
outros exemplos que mostram como os seres humanos intervieram no ambiente.— A que é que te referes?
— Tentou-se eliminar animais nocivos recorrendo a várias substâncias
venenosas.
De início, o resultado foi positivo, mas quando pulverizamos um campo ou
um pomar com inseticidas, provocamos na realidade uma pequena catástrofe
ecológica para os elementos nocivos que queremos exterminar. E devido a
mutações contínuas, pode desenvolver-se um grupo de fatores nocivos mais
resistentes contra o veneno usado. Estes “vencedores” têm mais possibilidades de
sobreviver e tornam-se cada vez mais difíceis de eliminar justamente porque o
ser humano tentou destruí-los. São as variantes mais resistentes que sobrevivem.
— Terrível!
— Mesmo no nosso corpo tentamos eliminar parasitas nocivos: refiro-me
às bactérias.
— Usamos a penicilina ou antibióticos.— Uma cura à base de penicilina representa realmente uma “catástrofe
ecológica” para estes hóspedes indesejados, mas, pouco a pouco, algumas
bactérias resistem inclusivamente à penicilina. Temos de recorrer a doses cada
vez maiores, e no fim...
— No fim saem-nos pela boca, talvez tenhamos de começar a disparar
contra elas.
— Isso seria talvez um pouco exagerado. Mas é evidente que a medicina
moderna criou um sério dilema. Não se trata apenas do fato de as bactérias se
terem tornado mais resistentes do que eram.
Antigamente, muitos bebês morriam destas doenças, e sobreviviam muito
poucos. Num certo sentido, a medicina moderna eliminou a seleção natural. Mas
aquilo que ajuda o indivíduo pode, em longo prazo, enfraquecer a capacidade de
resistência da humanidade às doenças. Quer dizer que a capacidade hereditária
dos homens de resistir a doenças sérias torna-se mais fraca.
— É uma perspectiva terrível.
— Mas um filósofo tem de referir isso. Uma questão completamentediferente é a de saber quais são as suas conseqüências. Tentemos fazer um
pequeno resumo.
— Faz favor!
— Podemos dizer que a vida é uma grande loteria onde apenas vemos os
bilhetes vencedores.
— O que queres dizer?
— Aqueles que perderam na luta pela existência, desapareceram. Por
detrás de cada espécie animal e vegetal sobre a face da Terra, há milhões de
anos de extrações de “bilhetes perdedores”. Todas as espécies animais e vegetais
presentes hoje no mundo devem ser consideradas, pelo menos por enquanto,
“vencedoras” na grande loteria da vida.
— Porque apenas os melhores sobrevivem.
— Podemos dizer isso. E agora vamos ver o cartaz que Noé te deu. Sofia
passou-lhe o cartaz. De um lado, havia a imagem da arca de Noé, noutro estava
desenhada a árvore genealógica de todas as diferentes espécies animais. Era esseo lado que Alberto lhe queria mostrar.
— O esquema mostra a subdivisão das diferentes espécies animais e
vegetais: podes ver como cada espécie pertence a diversos grupos e classes.
— Sim, estou a ver.
— O homem pertence, juntamente com os símios, aos chamados
primatas. Todos os primatas são mamíferos e todos os mamíferos pertencem ao
grupo dos vertebrados, que por sua vez pertence ao grupo dos animais
pluricelulares.
— Faz lembrar Aristóteles.
— É verdade. Mas o esquema não mostra apenas qual é a subdivisão das
espécies modernas. Também diz algo sobre a história da evolução. Podes ver,
por exemplo, que os pássaros se separaram dos répteis, que por sua vez se
separaram dos anfíbios, que por sua vez se separaram dos peixes.
— Sim, é muito claro.— Cada vez que uma destas linhas se divide, é porque houve mutações que
levaram à formação de novas espécies.
Deste modo, no decurso de milhões de anos formaram-se os diversos
grupos e classes de animais. Mas este esquema é muito simplificado: na
realidade hoje existe mais de um milhão de espécies animais, e este milhão é
apenas uma pequena parte de todas as espécies animais que viveram na Terra.
Como vês, um grupo animal como o dos trilobites extinguiu-se completamente.
— E em baixo temos os animais unicelulares.
— Alguns desses não mudaram provavelmente desde há alguns milhões de
anos. Vês também uma linha que vai desde estes organismos unicelulares até ao
reino vegetal porque, muito provavelmente, as plantas provêm da mesma célula
primordial que os animais.
— Estou a ver, mas agora tenho uma pergunta.
— Sim?— Donde vem essa célula primordial? Darwin deu uma resposta?
— Eu disse-te que era um homem prudente, mas neste aspecto especulou
um pouco. Ele escreveu: “Se (e que se!) pudéssemos imaginar uma pequena
poça de água quente, onde todo o tipo de sais de amônia e fósforo, a luz, o calor,
a eletricidade estivessem presentes, e onde se tivesse criado um composto
protéico, apto a sofrer mutações ainda mais complexas...
— Sim, e então?
— Darwin estava a imaginar de que modo a primeira célula viva se podia
ter formado da matéria inorgânica. E mais uma vez acertou no alvo. A ciência
de hoje pensa que a primeira forma de vida nasceu numa “pequena poça de
água quente” tal como Darwin a imaginara.
— Continua!
— Um esboço sumário deve ser o suficiente. Lembra-te de que estamos a
deixar Darwin e a dar um salto para as mais recentes investigações sobre a
origem da vida na terra.— Isso põe-me um pouco nervosa. Ninguém sabe como a vida surgiu?
— Talvez não, mas cada vez mais peças do quadro se ajustam para formar
a imagem de como a vida pode ter surgido. 374
— Continua!
— Devemos primeiro que tudo ter presente que toda a forma de vida na
terra, vegetal ou animal, é constituída pelas mesmas substâncias. A definição
mais simples da vida é: cada ser vivo possui um metabolismo e reproduz-se
autonomamente. Este processo é dirigido por uma substância a que chamamos
ADN. Desta substância são feitos os cromossomos, ou seja, o material genético
que se encontra em qualquer célula viva. O ADN é uma molécula, ou melhor,
uma macromolécula, muito complexa. A pergunta é: como nasceu a primeira
molécula de ADN?
— Como?
— A Terra foi criada quando se formou o sistema solar há cerca de 4’500
milhões de anos. Inicialmente era uma massa incandescente, mas pouco a
pouco, a crosta terrestre arrefeceu. E, segundo a ciência moderna, a vida surgiuhá cerca de três a quatro mil milhões de anos.
— Parece inacreditável.
— Só podes dizer isso depois de teres ouvido o resto.
Antes de mais, deves reparar que a Terra era muito diferente do que é
hoje. Visto que não havia nenhuma forma de vida, nem sequer havia oxigênio na
atmosfera. O oxigênio livre só foi criado com a fotossíntese das plantas. O fato de
não existir oxigênio era importante: é impossível que os fundamentos da vida, que
podem dar origem ao ADN, tivessem nascido numa atmosfera rica em oxigênio.
— Por que?
— Porque o oxigênio é uma substância muito reativa: antes de poderem
formar complicadas moléculas de ADN, estes tijolos da molécula de ADN terse-iam
oxidado.
— Está bem.— Por isso sabemos com segurança que hoje não pode nascer nenhuma
forma nova de vida, nem uma bactéria ou vírus.
Por isso, toda a vida na Terra deve ter a mesma idade. Um elefante tem
uma árvore genealógica tão longa como a da mais simples bactéria. Podemos
dizer que um elefante, ou um homem, é na realidade uma colônia de animais
unicelulares porque em cada célula do nosso corpo temos exatamente o mesmo
material genético. A receita pela qual somos o que somos está em cada célula do
nosso corpo.
— É estranho.
— Um dos grandes mistérios da vida é que, todavia, as células dos animais
pluricelulares têm a capacidade de se especializarem numa função particular,
porque as diversas características hereditárias não estão ativas em todas as
células. Algumas destas características, ou genes, estão “ativadas”, outras
“desativadas”. Uma célula hepática produz proteínas diferentes das de uma
célula nervosa ou de uma célula da pele. Mas em todas encontramos a mesma
molécula de ADN que contém toda a receita do organismo de que estamos a
falar.
— Continua!— Quando não havia oxigênio na atmosfera, não havia sequer, à volta do
globo terrestre, uma camada protetora de ozônio. Isso significa que não havia
nada a deter as radiações provenientes do espaço. Isto também é importante
porque, muito provavelmente, estas últimas tiveram um papel decisivo na
formação das primeiras moléculas complexas. Uma radiação cósmica foi a
energia que uniu as diversas substâncias químicas presentes na Terra para
formar macromoléculas complexas.
— Está bem.
— Vou recapitular: para que se possam constituir as moléculas complexas
de que se forma a vida, pelo menos duas condições têm de ser satisfeitas: “não
pode existir oxigênio na atmosfera e não deve haver obstáculo às radiações
provenientes do espaço”.
— Compreendo.
— Na pequena “poça de água quente” — ou “sopa primordial”, como lhe
chama a ciência moderna, formou-se a dada altura uma macro-molécula muito
complexa, que tinha a estranha capacidade de se poder dividir. E com isto se
iniciou a longa evolução, Sofia. Se quisermos simplificar um pouco, diremos que
já podemos falar do primeiro material genético, do primeiro ADN ou da
primeira célula viva. Ela continuou a dividir-se; desde o primeiro momento
sucederam mutações constantes. Depois de um espaço de tempo muito longo,
sucedeu que os organismos unicelulares se uniram para constituir organismos
pluricelulares mais complexos. Do mesmo modo, teve início a fotossíntese dasplantas, e assim se formou uma atmosfera rica em oxigênio. Este acontecimento
teve um efeito duplo: antes de mais, a atmosfera permitiu que se pudessem
desenvolver animais aptos a respirar com os pulmões. Além disso, a atmosfera
protegeu a vida das radiações nocivas provenientes do espaço. Na realidade,
estas radiações, importantes “centelhas” para a criação da primeira célula, são
também prejudiciais para toda a vida animada.
— Mas a atmosfera não se formou da noite para o dia. Como conseguiram
sobreviver as primeiras formas de vida?
— A vida nasceu primeiro no oceano, aquilo a que chamamos a “sopa
primordial”. Aí, as primeiras formas de vida puderam desenvolver-se protegidas
das radiações perigosas. Só muito mais tarde, quando a vida no oceano criou a
atmosfera, é que os primeiros anfíbios subiram para terra. Já falamos do resto.
Estamos aqui sentados numa cabana de um bosque e olhamos em retrospectiva
para um processo que durou três ou quatro mil milhões de anos. E foi justamente
em nós que este processo teve consciência de si mesmo.
— Mas achas que foi tudo mero acaso?
— Não disse isso. O cartaz de Noé mostra-nos que a evolução tinha uma
direção. Durante milhões de anos desenvolveram-se animais dotados de um
sistema nervoso cada vez mais complexo e com um cérebro cada vez maior.
Pessoalmente não acho que tenha sido um acaso. O que é que tu pensas?— O olho humano não pode ter surgido por mero acaso.
Não achas que haja um significado por detrás do fato de podermos ver o
mundo que nos rodeia?
— A evolução do olho também surpreendeu Darwin. Não conseguia
imaginar que uma coisa tão bela e delicada pudesse ter nascido devido à seleção
natural. Sofia olhou para Alberto.
Pensou como era estranho ela estar a viver naquele momento, o fato de
viver apenas aquela vez e de não tornar a viver. De repente, exclamou:
— “Então que vale a eterna criação? Coisas criadas ao nada reduzir!”
Alberto fixou-a severamente:
— Não podes falar assim, minha filha. Essas são as palavras do diabo.
— Do diabo?— Ou de Mefistófeles — no “Fausto” de Goethe.
— O que querem dizer exatamente estas palavras?
— Enquanto Fausto morre, e olha retrospectivamente para a sua longa vida
— diz num tom triunfante: “És tão belo, demora-te! Por séculos E séculos de
meus terrenos dias Não se apaga o vestígio Agora mesmo, Somente em
pressentir tanta delícia, Gozo ditoso o mais celeste instante.”
— Que bonito!
— Mas agora é a vez do diabo. Mal Fausto morre exclama:
“Acabou-se! Palavra sem sentido! Acabou-se por quê? Acabou e nada, É
tudo a mesma coisa! Então que vale A eterna criação? Coisas criadas Ao nada
reduzir! “Está acabado!...Que quer isto dizer? É exatamente Como se nunca
fosse, e toda via Circula, como tendo inda existência! Preferira ao que acaba o
vácuo eterno.”
3— Que pessimismo. Gostei mais da primeira citação. Apesar de a sua vida
ter terminado, Fausto viu um significado nos vestígios que deixou atrás de si.
— Não é uma conseqüência da teoria da evolução de Darwin sentirmo-nos
parte de alguma coisa de grande onde a menor forma de vida tem um
significado na totalidade? Nós somos o planeta vivo, Sofia! Somos a grande
embarcação que navega à volta de um sol ardente no universo. Mas cada um de
nós é também um barco que atravessa a vida com uma carga de genes. Quando
a tivermos transportado até ao porto seguinte, não teremos vivido em vão.
Bjornstjerne Bjornson exprimiu a mesma idéia no poema “Salmo II”:
“Louva o eterno na nossa vida que criou todas as coisas! Na manhã da
ressurreição o mínimo é dado, apenas as formas se perdem. A estirpe gera a
estirpe, e alcança poderes crescentes; a espécie gera a espécie em milhões de
anos Mundos morrem e nascem. Na alegria de viver, tu, a quem foi concedido
ser uma flor desta primavera, goza um dia em honra do eterno na condição de
homem; oferece o teu óbolo até ao surgir do eterno, respira num único e
imperceptível fôlego o dia eterno!”
— Que bonito!
— Mas agora vamos terminar. Digo apenas: fim de capítulo!— Pára com essa tua ironia!
— Fim de capítulo, disse eu. Presta atenção ao que eu te digo!

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