CAPÍTULO XXVIII: KIERKEGAARD

...a Europa está a caminho da bancarrota...

Hilde olhou para o relógio.
Já passava das quatro. Pôs o “dossiê” na escrivaninha e desceu a correr
para a cozinha. Tinha de ir para o barracão dos barcos com os sanduíches antes
que a mãe desistisse de esperar. Ao sair, lançou um olhar ao espelho de latão.
Com toda a pressa, pôs ao lume a água para o chá e barrou alguns pães.Sim, havia de pregar uma partida ao pai. Hilde via-se cada vez mais como
aliada de Sofia e Alberto. Ele já devia estar a partir de Copenhagen...
Desceu para o barracão com um grande tabuleiro nas mãos.
— Faça favor, a refeição!
A mãe tinha um grande pedaço de lixa na mão. Limpou da fronte os
cabelos, cinzentos devido ao pó de esmeril.
— Mas assim, saltamos o almoço.
Sentaram-se na doca e comeram.
— Quando é que chega o pai? — perguntou Hilde passado um pouco.
— No sábado. Mas tu sabes isso.— Mas quando? Não disseste que ele tem de fazer transborda em
Copenhagen?
— Sim... A mãe mastigava um sanduíche com chouriço e pepino.
— ...ele chega a Copenhagen por volta das cinco. O avião parte em
seguida às oito e um quarto para Kristiansand. Acho que ele chega às nove e
meia.
— Então fica algumas horas em Copenhagen.
— Sim. Por quê?
— Ah... eu só queria saber qual era o percurso.
Continuaram a comer. Quando Hilde achou que já tinha passado tempo
suficiente, perguntou:— Tens ouvido falar de Anne e Ole ultimamente?
— Sim, às vezes telefonam. Vêm cá em Julho, de férias.
— Não vêm antes disso?
— Não, acho que não.
— Então estão em Copenhagen esta semana...
— Hilde, o que é que se passa?
— Nada. Sobre alguma coisa temos que falar.— Mas já falaste duas vezes sobre Copenhagen.
— A sério?
— Falamos sobre o fato de o pai passar por lá...
— E depois lembrei-me de Anne e Ole de repente.
Depois de terem comido, Hilde colocou os pratos e as xícaras no tabuleiro.
— Tenho de continuar a ler, Mamãe...
— Suponho que sim...
Haveria nesta resposta uma ligeira censura? Tinham dito que queriam ter o
barco preparado até ao regresso do pai.— O pai quase me fez prometer que eu teria o livro terminado quando ele
chegasse.
— Não sei se acho isso bom. Uma coisa é ele estar fora tantas vezes, mas
dirigir de longe tudo o que se passa aqui em casa...
— Se tu soubesses tudo o que ele dirige — disse Hilde misteriosamente. —
E nem podes calcular como ele gosta disso.
Foi para o quarto e continuou a ler.
Sofia ouviu alguém bater à porta. Alberto lançou-lhe um olhar severo.
— Não queremos ser incomodados.Bateram com mais força.
— Vou falar-te sobre um filósofo dinamarquês que se irritou muito com a
filosofia de Hegel — disse Alberto. Mas estavam a bater com tanta força que a
porta tremia.
— É óbvio que o major nos enviou de novo alguma personagem fantástica
para ver e caímos na armadilha — explicou Alberto. — Não lhe custa nada.
— Mas se não abrirmos e virmos quem é, também não lhe custa nada
deitar a casa abaixo.
— Talvez tenhas razão. Vamos abrir.
Foram à porta. Uma vez que tinham batido com tanta força, Sofia
esperava uma pessoa grande. Mas lá fora estava uma moça novinha com um
vestido florido e cabelos loiros compridos. Tinha duas pequenas garrafas nas
mãos. Uma era vermelha, a outra azul.
— Olá — disse Sofia — quem és tu?— Eu chamo-me Alice — disse a moça, e fez uma mesura acanhada.
— Já estava à espera — afirmou Alberto. — É a Alice no País das
Maravilhas.
— Mas como é que ela encontrou o caminho?
Alice respondeu por Sofia:
— O País das Maravilhas é um país totalmente ilimitado. Significa que está
em toda a parte — mais ou menos como a ONU. O País das Maravilhas devia
por isso tornar-se sócio honorário da ONU. Devíamos ter representantes próprios
em todas as comissões.
— Ah, aquele major! — disse Alberto, sorridente.
— O que te traz aqui? — perguntou Sofia.— Tenho de entregar estas garrafas de filosofia.
E entregou a Sofia as pequenas garrafas. Ambas eram de vidro brilhante,
mas numa encontrava-se um líquido vermelho, na outra um líquido azul. Na
garrafa vermelha estava escrito: BEBE-ME!, na azul: BEBE-ME TAMBÉM!
Em seguida, passou um coelho branco a correr pela cabana. Andava
direito sobre as patas traseiras e trazia colete e casaco. Em frente da cabana,
tirou um relógio do bolso do colete e disse:
— Não, agora estou demasiado atrasado. Depois, desatou a correr. Alice
correu atrás dele. Ao afastar-se, fez mais uma vênia e disse:
— Lá começa tudo de novo!
— Tens de cumprimentar Dina e a rainha! — gritou-lhe Sofia. E Alice
desapareceu. Alberto e Sofia ficaram parados na escada e observaram as
garrafas.— BEBE-ME! E BEBE-ME TAMBÉM! — leu Sofia alto. — Não sei se me
atrevo. Se calhar é veneno.
Alberto encolheu os ombros.
— As garrafas vêm do major, e tudo o que vem do major é apenas
consciência. É apenas sumo imaginário. Sofia tirou a rolha da garrafa vermelha
e levou-a à boca com cuidado. O sumo tinha um sabor doce e estranho.
Imediatamente, aconteceu algo com o mundo à sua volta: primeiro, as
imagens do lago, do bosque e da cabana pareciam convergir. Em seguida, Sofia
julgou estar a ver apenas uma pessoa e esta pessoa era ela própria. Quando
finalmente olhou para Alberto, este também parecia ter-se tornado uma parte de
si mesma.
— Que estranho — afirmou.
— De repente, tudo o que eu vejo parece estar relacionado. Tenho a
sensação de que tudo é apenas uma consciência. Alberto acenou
afirmativamente — mas Sofia teve a sensação de estar a acenar para si mesma.— Isso é o panteísmo ou a filosofia da unidade — disse Alberto. — É o
espírito dos românticos. Eles viram tudo como um único grande “eu”. Também é
Hegel — que por um lado não descurou o indivíduo, e por outro lado entendia
tudo como expressão de uma razão universal.
— Será que devo beber da outra garrafa?
— É o que está escrito.
Sofia tirou a rolha da garrafa azul e bebeu um grande gole. Este sumo tinha
um sabor mais fresco e amargo do que o vermelho, mas também se deu uma
mudança súbita com tudo à sua volta: num segundo desapareceu o efeito da
bebida vermelha; e tudo voltou ao lugar. Alberto era de novo Alberto, as árvores
eram de novo árvores e a água parecia de novo um lago. Isso durou apenas um
segundo, e em seguida tudo o que Sofia via deslizou afastando-se. O bosque já
não era um bosque, a menor árvore parecia-lhe um mundo à parte, o menor
ramo um conto sobre o qual se podiam contar mil histórias.
O pequeno lago parecia-lhe um ar infinito — não por ser muito fundo ou
extenso, mas devido aos seus milhares de pontos cintilantes e formas variadas de
ondas. Sofia compreendeu que podia observar este mar até ao resto da sua vida
— e contudo ele havia de lhe parecer sempre um mistério insondável.Sofia elevou o olhar em direção à copa de uma árvore.
Aí, três pequenos pardais faziam um jogo divertido. Já estavam na árvore
quando Sofia bebera da garrafa vermelha, mas Sofia não os tinha visto bem. A
garrafa vermelha tinha apagado todos os contrastes e todas as diferenças
individuais.
Sofia desceu da laje sobre a qual estava e ajoelhou-se na relva. E aí
encontrou um novo mundo — mais ou menos como se tivesse mergulhado e
abrisse os olhos no fundo do mar pela primeira vez. Entre tufos de relva e caules
de plantas formigavam seres vivos. Sofia viu uma aranha que se arrastava pelo
musgo com energia e segurança, um pulgão vermelho que corria para cima e
para baixo numa haste, e todo um exército de formigas trabalhando em conjunto.
Mas cada formiga movia as pernas à sua maneira.
O mais estranho sucedeu quando Sofia se levantou e olhou para Al-berto,
que ainda estava à soleira da porta. De repente, viu nele um ser completamente
estranho, qualquer coisa como um homem de um outro planeta — ou como uma
figura encantada de um conto de fadas. E viu-se também como um indivíduo
único: não era apenas uma pessoa, não era apenas uma moça de quinze anos —
era Sofia Amundsen, e só ela o era!
— O que estás a ver? — perguntou Alberto.— Vejo que és um pássaro estranho.
— A sério?
— Acho que nunca vou compreender como é ser uma outra pessoa. Não
há duas pessoas iguais em todo o mundo.
— E o bosque?
— Já não parece o mesmo. É todo um universo de contos fantásticos.
— Era o que eu suspeitava. A garrafa azul é o individualismo. Foi a reação
de Sören Kierkegaard ao idealismo dos românticos. O contista Hans Christian
Andersen não foi contemporâneo de Kierkegaard por acaso. Ele tinha o mesmo
olho apurado para a infinita riqueza de pormenores da natureza. Leibniz já o
possuíra cem anos antes e reagiu à filosofia da unidade de Espinosa tal como
Kierkegaard a Hegel.
— Estou a ouvir o que dizes, mas soa tão estranho que tenho vontade de rir.— Compreendo. Nesse caso bebe um gole da garrafa vermelha. E depois
sentamo-nos aqui na escada. Temos de dizer alguma coisa sobre Kierkegaard
antes de terminarmos por hoje.
Sentaram-se e Sofia bebeu um gole da garrafa vermelha.
As coisas confluíram de novo, inclusivamente um pouco demais, pois Sofia
tinha novamente a sensação de que nenhuma diferença tinha qualquer
importância. Tocou no gargalo da garrafa azul com a língua e o mundo ficou
mais ou menos como estava antes de Alice ter trazido as garrafas.
— Mas isto é “verdadeiro”? — perguntou então Sofia. — É a garrafa
vermelha ou a azul que nos proporciona a verdadeira experiência do que o
mundo é na realidade?
— Ambas, Sofia. Não podemos dizer que os românticos estavam errados.
Mas talvez fossem um pouco parciais.
— E a garrafa azul?— Acho que Kierkegaard deve ter bebido alguns fortes goles dessa. Ele
tinha um olho extremamente apurado para o significado do indivíduo. Mas nós
também não somos apenas “filhos do nosso tempo”. Cada um de nós é
igualmente um indivíduo único que apenas vive uma vez.
— Aparentemente, Hegel não estava particularmente interessado nisso?
— Não, ele preocupava-se principalmente com as grandes linhas da
história. E foi justamente isso que irritou Kierkegaard. Ele achou que a filosofia
da unidade dos românticos e o “historicismo” de Hegel tinham retirado ao
indivíduo a responsabilidade pela sua própria vida. Para Kierkegaard, Hegel e os
românticos eram talhados exatamente na mesma pedra.
— Consigo compreender que ele se tenha irritado.
— Sören Kierkegaard nasceu em 1813 em Copenhagen e foi educado pelo
pai de uma forma muito severa. Dele herdou também a melancolia religiosa.
— Isso não é bom.— Não. Devido a melancolias, sentiu-se forçado a romper um noivado
quando era jovem, o que não foi nada bem aceite pela burguesia de Copenhagen.
Ele tornou-se muito cedo uma pessoa excluída e escarnecida. Bom, com o
tempo, aprendeu a reagir. Com o tempo, tornou-se aquilo que Ibsen descreveu
mais tarde como “inimigo do povo”.
— Tudo isso por causa de um noivado desfeito?
— Não, não apenas por isso. Principalmente por volta do final da sua vida,
tornou-se um crítico cada vez mais acérrimo de toda a cultura européia. Ele
achava que a Europa estava a caminho da bancarrota. Julgava viver numa época
sem paixão nem empenho, e vociferava contra a atitude tíbia e desleixada da
Igreja. A sua crítica ao chamado “Cristianismo de domingo” era tudo menos
delicada.
— Hoje devíamos falar antes de “Cristianismo do crisma”. A maior parte
das crianças só são crismadas por causa dos presentes.
— Sim, tens razão. Para Kierkegaard, o Cristianismo era ao mesmo tempo
tão grandioso e tão irracional que só podia haver um ou/ou. Era impossível,
segundo ele, ser-se “um pouco” cristão ou cristão “até um certo grau”. Ou Jesus
ressuscitou no Domingo de Páscoa — ou não. E se Ele ressuscitou
verdadeiramente dos mortos, se Ele morreu verdadeiramente por nós, isso é tão
grandioso que “tem” de determinar toda a nossa vida.— Compreendo.
— Kierkegaard sentia que a Igreja e a maior parte dos cristãos do seu
tempo tinham uma posição francamente pedante em relação às questões
religiosas. Para ele, isso era impensável. Religião e razão eram para ele como
fogo e água. Não era suficiente ter o cristianismo por “verdadeiro”, segundo ele.
Fé cristã significava seguir o exemplo de Jesus.
— E o que é que isso tinha a ver com Hegel?
— Oh! Se calhar começamos pela ponta errada.
— Então proponho que metas a marcha atrás e comeces do princípio.
— Kierkegaard iniciou os estudos de teologia com dezessete anos, mas
começou a interessar-se cada vez mais por questões filosóficas. Com vinte e oito
anos fez o seu doutoramento com a dissertação O “conceito de ironia, sobre tudo
em Sócrates”. Nela fez contas com a ironia romântica e o jogo
descomprometido dos românticos com a ilusão. Confrontou a ironia romântica
com a “ironia socrática”. Sócrates também se tinha servido do efeito da ironia,
mas apenas para ensinar aos seus interlocutores as verdades fundamentais sobre
a vida. Sócrates era para Kierkegaard, ao contrário dos românticos, um pensador
existencial, ou seja, um pensador que tem totalmente em conta a sua existência
na sua reflexão filosófica. Ele acusou os românticos de não o fazerem.— Ah!
— Depois de ter desfeito o seu noivado, Kierkegaard foi para Berlim em
1841, onde assistiu às lições de Schelling. — Encontrou-se com Hegel lá?
— Não, Hegel morrera dez anos antes, mas as idéias de Hegel
predominavam ainda em Berlim e muitas partes da Europa. O seu “sistema” era
usado como uma espécie de explicação multiusos para todas as questões
filosóficas possíveis. Kierkegaard tomou a posição radical-mente oposta e
explicou que as “verdades objetivas” com as quais a filosofia hegeliana se
ocupava eram completamente irrelevantes para a existência do indivíduo.
— Quais são então as verdades relevantes?
— Mais importante do que a busca da Verdade com letra maiúscula era,
para Kierkegaard, a busca das verdades importantes para a vida do indivíduo.
Importante era, segundo ele, encontrar a “verdade para mim”. Ele confrontava o
“sistema” com o indivíduo. Segundo Kierkegaard, Hegel esquecera-se de que ele
próprio era apenas um homem. Ele fazia troça do tipo de professor hegeliano que
vive num castelo de nuvens e, enquanto explica toda a realidade, se esquece, na
sua distração, do próprio nome e de que é um homem, simplesmente um
homem, não um parágrafo subtil.— E o que é um homem para Kierkgaard?
— Não se pode responder a isso de uma forma tão geral.Uma descrição
universalmente válida da natureza humana ou do “ser” humano é totalmente
desinteressante para Kierkegaard. Importante é a “existência” do indivíduo. E o
homem não vive atrás de uma escrivaninha. Só quando agimos — e
principalmente quando fazemos uma “escolha” importante —, agimos em
relação à nossa existência. Uma história sobre Buda pode ilustrar o que
Kierkegaard tinha em mente.
— Sobre Buda?
— Sim, porque a filosofia de Buda também tem como ponto de partida a
existência humana. Era uma vez um monge que achava que Buda dava respostas
pouco claras sobre questões importantes, por exemplo, o que é o mundo ou o que
é um homem. Buda respondeu contando a história de uma pessoa que tinha sido
ferida por uma flecha envenenada. Este homem nunca perguntaria por puro
interesse teórico de que material é feita a flecha, em que veneno foi embebida
ou a partir de que ponto ele fora atingido.
— Ele havia de querer que alguém lhe tirasse a flecha e tratasse a ferida.— É, não é? Isso seria existencialmente importante.
Buda e Kierkgaard sentiam que existiam por um curto espaço de tempo. E
como eu disse: nesse caso, não nos sentamos a uma escrivaninha a especularmos
sobre o espírito.
— Compreendo.
— Kierkegaard disse também que a verdade é “subjetiva”. Não queria
afirmar que é indiferente o que pensamos ou aquilo em que acreditamos. Queria
dizer que as verdades realmente importantes são “pessoais”. Só essas verdades
são “verdades para mim”.
— Podes dar-me um exemplo de uma verdade subjetiva desse tipo?
— Uma questão importante é, por exemplo, se o Cristianismo é a verdade.
Segundo Kierkegaard, não podemos ter uma posição teórica ou acadêmica em
relação a essa questão. Para alguém que se vê como ser existente, é uma questão
de vida ou de morte.
Não se discute sobre isso apenas por amor da discussão. É uma coisa comque nos preocupamos muito.
— Compreendo.
— Se cais à água, não tens uma atitude teórica em relação à questão se te
vais afogar ou não. Nesse caso, não é interessante nem desinteressante saber se
há crocodilos na água.É uma questão de vida ou de morte.
— Sim, sem dúvida!
— Por isso temos de fazer a distinção entre a questão filosófica sobre a
existência de Deus e a relação do indivíduo com a mesma questão. Qualquer
indivíduo está completamente só perante essas questões. Além disso, só podemos
aceder a elas pela “fé”. As coisas que podemos compreender com a nossa razão
não são importantes para Kierkegaard.
— Tens de explicar isso.
— Oito mais quatro são doze, Sofia. Podemos ter a certeza disso. É um
exemplo de verdades da razão, de que todos os filósofos desde Descartes
falaram. Mas vamos incluí-las na nossa oração da noite? E vamos quebrar acabeça com elas no leito de morte? Não, essas verdades podem ser “objetivas” e
“universais”, mas justamente por isso são indiferentes para a existência do
indivíduo.
— E quanto à fé?
— Não podes saber se uma pessoa te perdoou por lhe teres feito algo de
mal. Masjustamente por isso é importante para ti existencialmente. É uma
questão com a qual tens uma relação viva. Também não podes saber se alguém
gosta de ti. Só podes acreditar ou esperar que goste. No entanto, isso é mais
importante para ti do que o fato indiscutível de a soma dos ângulos de um
triângulo perfazer cento e oitenta graus. Enfim, também não se pensa na lei da
causalidade ou nas formas kantianas da intuição quando se dá o primeiro beijo.
— Não, isso seria estranho.
— A fé é o mais importante quando se trata de questões religiosas.
Kierkegaard pensa que se posso compreender Deus objetivamente, não acredito,
mas justamente porque não posso compreender, tenho de acreditar. E se quero
conservar a minha fé, tenho de ter em atenção não esquecer que estou na
incerteza, e, no entanto, acredito.
— Isso é um pouco complicado.— Antigamente, muitos tentaram provar a existência de Deus — ou pelo
menos compreendê-la com a razão. Mas se nos contentamos com essas provas
da existência, ou argumentos racionais, perdemos a fé — e conseqüentemente
também o sentimento religioso. Porque o essencial não é o cristianismo ser
verdadeiro, mas ser verdadeiro “para mim”. Na Idade Média a mesma idéia foi
expressa através da fórmula “credo quia absurdum”.
— O quê?
— Significa: “creio porque é absurdo”. Se o cristianismo tivesse apelado à
razão — e não a outros aspectos nossos, não seria uma questão de fé.
— Compreendi isso agora.
— Vimos então o que Kierkegaard entendia por “existência”, “verdade
subjetiva” e “fé”. Estes três conceitos foram formulados como uma crítica à
tradição filosófica e principalmente a Hegel. Mas havia neles toda uma “crítica
da civilização”. Segundo Kierkegaard, na sociedade urbana moderna, o homem
tornara-se “público”, e a primeira característica da multidão era a “tagarelice”
irrelevante. Hoje usaríamos talvez o termo “conformismo”, ou seja, todos
“pensam” e “defendem” as mesmas coisas, sem que ninguém tenha uma
relação apaixonada com isso.— Eu pergunto-me o que é que Kierkegaard teria dito dos pais de Jorunn.
— De qualquer modo, não era muito tolerante com os seus próximos. Ele
tinha uma pena afiada e podia ser irônico de uma forma mordaz. Escreveu, por
exemplo: “a multidão é a falsidade”. Explicou também que a maior parte das
pessoas tinha uma atitude demasiado superficial em relação à existência.
— Uma coisa é colecionar Barbies. Ser uma Barbie é mais grave ainda...
— Isso leva-nos à teoria de Kierkegaard dos três estádios da vida.
— O que disseste?
— Segundo Kierkegaard, existiam três possibilidades de existência. Ele
próprio usa o termo “plano”. Chama a estas possibilidades o “plano estético”, o
“plano ético” e o “plano religioso”. Ao escolher o termo “plano” quer mostrar
que podemos viver num dos dois inferiores e fazer subitamente o “salto” para um
mais elevado. Mas muitos homens passam toda a sua vida no mesmo plano.— Aposto que vem aí uma explicação. E, além disso, estou curiosa para
saber em que plano me encontro.
Quem vive no “plano estético”, vive no momento e procura sempre o
prazer. O que é bom é o que é belo, interessante ou agradável. Assim, essa
pessoa vive completamente no mundo dos sentidos. O esteta torna-se joguete dos
seus próprios prazeres e disposições.
Tudo o que é monótono é negativo, como se diz hoje.
— Eu conheço essa atitude.
— O típico romântico é esteta, porque não se trata apenas de prazer
sensual. Uma pessoa com uma atitude contemplativa em relação à realidade —
ou, por exemplo, em relação à arte ou à filosofia, com que se preocupa — vive
no estádio estético. Mesmo em relação à aflição e ao sofrimento nos podemos
comportar de um modo estético ou “contemplativo”.
É a frivolidade que reina. Ibsen descreveu o retrato de um esteta típico em
“Peer Gy nt”.— Acho que percebo o que Kierkegaard queria dizer.
— Conheces alguém assim?
— Não totalmente assim. Mas acho que faz lembrar um pouco o major.
— Sim, talvez, Sofia — apesar de isso ser novamente um exemplo da sua
ironia romântica de mau gosto. Devias levar pimenta na língua!
— O que disseste?
— Bom, não é culpa tua.
— Continua.
— Quem vive no plano estético está exposto aos sentimentos de angústia e
de vazio. Se sente estes sentimentos, ainda há esperança. Para Kierkegaard, a“angústia” é algo quase positivo. É um sinal de que alguém se encontra numa
“situação existencial”. O esteta pode decidir que quer fazer o “salto” para um
estádio mais elevado. Ou consegue, ou não consegue. Não serve de nada ter
quase saltado, quando não salta de fato. “Ou/ou”. E ninguém pode fazer o salto
por nós. Temos de decidir e saltar por nós próprios.
— É o mesmo quando alguém quer deixar a bebida ou as drogas.
— Sim, talvez. Quando Kierkegaard fala sobre esta decisão, faz lembrar
um pouco Sócrates, que explicara que qualquer conhecimento verdadeiro vem
de dentro. A escolha que leva um homem a saltar de uma visão da vida estética
para uma visão ética ou religiosa também tem que vir de cada um. É exatamente
isso que Ibsen descreve em “peer Gy nt”. Uma outra descrição magistral de uma
escolha existencial que surge da necessidade e desespero interiores encontramola
num romance do escritor russo “Dostoievski”.
Chama-se “Crime e Castigo” e, quando tivermos terminado o curso, tens
de lê-lo sem falta. — Vamos ver. Então Kierkgaard pensa que quando alguém é
sério deve escolher uma outra forma de vida?
— E começa a viver no “plano ético”. Este se caracteriza pela seriedade e
decisões coerentes com critérios morais. Faz lembrar a ética do dever de Kant,
que também exige que procuremos viver de acordo com a lei moral. Tal como
Kant, também Kierkegaard dirige a sua atenção em primeiro lugar para a
sensibilidade humana. Não é importante o que alguém considera verdadeiro ou
falso. O importante é que alguém se decida a ter uma opinião em relação ao que
é correto ou falso. O esteta interessa-se apenas pelo que é divertido ou
aborrecido.— Mas não nos podemos tornar “demasiado” sérios se vivermos assim?
— Sim, claro. Mas o plano ético não satisfaz Kierkegaard. O homem ético
também se cansa de ser apenas consciente do dever. Muitas pessoas vivem essa
fase de enfado e cansaço quando são adultos. E alguns recaem então na vida
leviana do plano estético. Mas outros fazem um novo salto para o novo plano, o
“plano religioso”. Ousam fazer o verdadeiro grande salto na profundidade da fé.
Preferem a fé ao gozo estético e às leis da razão. E apesar de poder ser
assustador “cair nas mãos do Deus vivo”, como Kierkegaard afirmou, só então o
homem se pode reconciliar com a sua vida.
— Pelo Cristianismo, portanto. — Para Kierkegaard o estádio religioso era
o Cristianismo. Mas, a sua filosofia influenciou pensadores não-cristãos. No nosso
século nasceu mesmo uma filosofia existencial fortemente inspirada por ele.
Sofia olhou para o relógio.
— São quase sete. Tenho de ir para casa, senão a minha mãe endoidece.
Acenou com a mão ao seu professor de filosofia e desceu a correr para olago e para o barco.

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