CAPÍTULO XXVI: O ROMANTISMO

...o caminho misterioso conduz ao interior....

Hilde deixou cair o grande “dossiê” nos joelhos. Depois, deixou-o
escorregar para o chão.
No quarto, já havia mais claridade do que quando fora para a cama. Olhou
para o relógio. Eram quase três. Voltou-se e fechou os olhos. Ao adormecer,
questionou-se por que razão o seu pai fizera aparecer subitamente a Chapeuzinho
Vermelho e Winnie the Pooh.
Dormiu até às onze da manhã. Em seguida, teve a sensação de que
sonhara intensamente durante toda a noite, mas não se conseguia lembrar do que
sonhara.Desceu as escadas e fez o café-da-manhã. A mãe vestira o fato-macaco.
Queria ir para o barracão dos barcos e reparar o barco. Mesmo que não fosse
para a água, tinha de estar pronto para navegar quando o pai voltasse do Líbano.
— Vens ajudar-me?
— Primeiro tenho de ler um pouco. Queres que te leve chá e alguma coisa
para comer a meio da manhã?
— Qual meio da manhã? Depois de ter comido, Hilde voltou para o seu
quarto, puxou a coberta da cama e sentou-se com o grande “dossiê” sobre os
joelhos. Sofia passou através da sebe e viu-se no grande jardim que comparara
outrora com o jardim do Éden... Via que havia ramos e folhas por toda a parte
devido ao temporal do dia anterior. Entre o temporal e os ramos soltos, por um
lado, e os seus encontros com a
Chapeuzinho Vermelho e Winnie the Pooh, por outro, parecia haver uma
relação. Sofia afastou as agulhas de pinheiro e os ramos do balanço. Era bom o
fato de o balanço ter almofadas de plástico que não era preciso levar para casa
cada vez que chovia. Sofia entrou em casa. A mãe acabara de chegar.
Arrumava garrafas de limonada no frigorífico. Na mesa da cozinha havia um
bolo de chocolate com um aspecto delicioso.— Estás à espera de visitas? — perguntou Sofia, que quase se esquecera do
seu aniversário.
— Eu pensei que apesar da festa ao ar livre no sábado devíamos festejar
hoje.
— Como assim?
— Convidei Jorunn e os pais.
Sofia encolheu os ombros.
— Por mim está bem.
Os convidados chegaram pouco antes das sete e meia. A atmosfera estava
um pouco formal porque a mãe de Sofia não se encontrava freqüentemente com
os pais de Jorunn.Sofia e Jorunn subiram logo para o quarto de Sofia para escreverem os
convites para a festa ao ar livre.
Visto que queria convidar também Alberto Knox, Sofia teve a idéia de
convidar as pessoas para uma “festa de jardim filosófica”. Jorunn concordou.
Afinal era a festa de Sofia e nessa altura essas “festas com temas” eram muito
populares.
Até terem escrito o texto, passaram mais de duas horas e as duas moças
não conseguiam parar de rir.
“Caro...
Convidamos-te para uma festa de jardim filosófica no sábado, dia 23 de
Junho (noite de S. João) às 19 horas em Klöverveien 3. No decurso da noite
esperamos resolver o mistério da vida. Traz um casaco quente e idéias
inteligentes que possam contribuir para uma resolução dos enigmas da filosofia.
Devido ao grande perigo de incêndio florestal, infelizmente não podemos fazer
fogueiras, mas as chamas da fantasia podem arder livremente. Entre os
convidados encontra-se pelo menos um verdadeiro filósofo. Por isso, o convíviovai ser privado nesta festa. Membros da imprensa não serão admitidos!
Com os nossos melhores cumprimentos,
Jorunn Ingebrigtsen (comissão organizadora) e Sofia Amundsen (anfitriã)”
.
Depois foram ter com os adultos que já estavam a falar mais à vontade.
Sofia deu à mãe o convite que escrevera com uma caneta caligráfica.
— Dezoito fotocópias, por favor — disse. Já tinha pedido outras vezes à
mãe para lhe fazer fotocópias no escritório. A mãe leu rapidamente o convite e
passou-o depois ao pai de Jorunn.
— Estão a ver? Ela perdeu completamente a cabeça.
— Mas isto parece mesmo interessante — disse o pai de Jorunn enquantopassava a folha à esposa. — Estou pasmada! — disse esta. — Também podemos
vir, Sofia?
— Então vinte cópias — disse Sofia.
— Deves estar maluca — disse Jorunn.
Antes de ir para a cama nessa noite, Sofia ficou muito tempo a olhar pela
janela. Lembrou-se como uma vez vira a sombra de Alberto na escuridão. Já
passara mais de um mês. Nesse momento também era de noite, mas era uma
noite clara de Verão. Alberto só voltou a dar notícias suas na manhã de terçafeira.
Telefonou logo depois de a mãe de Sofia ter ido trabalhar.
— Sofia Amundsen.
— Alberto Knox.
— Era o que eu estava a pensar.— Peço desculpa por telefonar só agora, mas estive a trabalhar
intensivamente no nosso plano. Só quando o major se concentra completamente
em ti é que tenho descanso e posso trabalhar sem ser perturbado.
— Estranho.
— Posso esconder-me, percebes? Mesmo o melhor serviço secreto do
mundo tem as suas limitações, se tem apenas um agente... Recebi um postal teu.
— Um convite, queres dizer.
— Arriscas mesmo?
— Porque não?
— Nunca se sabe o que pode suceder numa festa destas.— Vens?
— Claro que vou. Mas há mais uma coisa. Já pensaste que o pai de Hilde
regressa do Líbano nesse mesmo dia?
— Não, não tinha pensado nisso.
— É impossível ser obra do acaso que ele te faça organizar uma festa
filosófica justamente no dia em que regressa a Bjerkely.
— Como disse, não tinha pensado nisso.
— Mas ele pensou. Bom, ainda vamos falar sobre isso. Podes ir hoje de
manhã à cabana do major?
— Eu tenho que tirar a erva daninha de alguns canteiros.— Então às duas. Pode ser?
— Lá estarei.
Desta vez, Alberto Knox também estava sentado na soleira da porta
quando Sofia chegou.
— Senta-te aqui — disse — e foi direto ao assunto.
— Até agora falamos sobre o Renascimento, o Barroco e o Iluminismo.
Hoje vamos falar sobre o Romantismo, ao qual podemos chamar a última
grande época cultural da Europa.
Estamos a aproximar-nos do fim de uma longa história, minha filha.
— O Romantismo durou tanto tempo?— Começou em finais do século XVIII e durou até meados do século
passado. Mas a partir de 1850 já não faz sentido falar de épocas completas que
abranjam do mesmo modo poesia e filosofia, arte, ciência e música.
— Mas o Romantismo foi ainda uma dessas épocas?
— Sim, e como disse, a última na Europa. Teve início na Alemanha, como
reação ao culto da razão no Iluminismo. Após Kant e a sua fria filosofia racional,
os jovens na Alemanha pareciam respirar fundo. — E o que é que colocaram no
lugar da razão?
— Os novos “slogans” eram “sentimento”, “fantasia”, “vivência” e
“nostalgia”. Alguns pensadores do Iluminismo também tinham apontado para a
importância dos sentimentos — por exemplo, Rousseau — e criticado a
insistência exclusiva na razão. Esta corrente secundária tornou-se a corrente
principal da vida cultural alemã.
— Então Kant não foi popular por muito tempo?
— Sim e não. Muitos românticos viam-se como herdeiros de Kant. Kant
afirmara que havia limites para aquilo que podemos conhecer. Por outro lado,
mostrara como era importante a contribuição do eu para o conhecimento. Eagora, no Romantismo, o indivíduo tinha, por assim dizer, livre curso para a sua
interpretação pessoal da existência. Os românticos professavam um culto quase
desenfreado do eu. Por isso, a essência da personalidade romântica é também o
gênio artístico.
— Havia muitos gênios naquela época?
— Alguns. “Beethoven”, por exemplo. Na sua música, encontramos uma
pessoa que exprime os seus próprios sentimentos e nostalgias. Deste modo,
Beethoven era um artista “livre” — ao contrário dos mestres do Barroco como
Bach e Haendel que compunham as suas obras para glória de Deus e geralmente
segundo regras rigorosas.
— Eu conheço apenas a sonata “Ao luar” e a “Quinta sinfonia”.
— Mas vês como é romântica a sonata “Ao luar” e como Beethoven se
exprime de forma dramática na “Quinta sinfonia”.
— Disseste que os humanistas do Renascimento também eram
individualistas.— Sim, há muitos paralelismos entre o Renascimento e o Romantismo.
Um desses paralelismos é, por exemplo, o grande valor dado à importância da
arte para o conhecimento humano. Também neste aspecto, Kant tinha aberto
caminho para o Romantismo. Na sua estética ele investigara o que sucede
quando somos dominados por uma coisa bela, uma obra de arte, por exemplo.
Quando vemos uma obra de arte sem outro interesse que o de “vivê-la”
tão intensamente quanto possível, ultrapassamos o limite daquilo que podemos
conhecer, ou seja, o limite da nossa razão.
— Isso quer dizer que o artista nos proporciona algo que o filósofo não
pode proporcionar-nos?
— Era assim que Kant pensava, e juntamente com ele os românticos.
Segundo Kant, o artista joga livremente com a sua faculdade de conhecer. O
poeta “Friedrich Schiller” desenvolveu a idéia de Kant.
Ele achava que a atividade do artista era como um jogo e só quando o
homem jogava era livre, porque fazia as suas próprias leis. Os românticos
acreditavam que apenas a arte nos podia aproximar do “indizível”. Alguns foram
até às últimas conseqüências e compararam o artista com Deus.
— Porque o artista cria a sua própria realidade, tal como Deus criou o
mundo.— Dizia-se que o artista tinha uma espécie de imaginação criadora de
universos. No seu arrebatamento artístico, conseguia experimentar o
desaparecimento da fronteira entre sonho e realidade. O poeta “Novalis”, um dos
jovens gênios da Alemanha, afirmou:
“O mundo torna-se sonho, o sonho mundo”. Ele escreveu um romance
medieval com o título “Heinrich von Ofterdingen”, que ainda estava incompleto
quando o autor morreu em 1801, mas que teve grande importância para o
Romantismo.
Nele lemos que o jovem Heinrich procurava a “flor azul”, que vira uma
vez em sonhos e da qual se finava de saudades desde então. O poeta romântico
inglês Coleridge exprimiu a mesma idéia do seguinte modo:
“What if y ou slept? And what if, in y our sleep, you dreamed? And what if,
in y our dream, y ou went to heaven and there plucked a strange and beautiful
flower? And what if, when y ou awoke, y ou had the flower in y our hand? Ah,
what then?
(E se adormecesses? E se, no teu sono, sonhasses? E se, no teu sonho,
subisses aos céus e ali colhesses uma estranha e bela flor? E ainda se, ao
acordares, tivesses a flor na tua mão. Ah, como seria, então?)”:— Que bonito!
— Este desejo de algo longínquo e inatingível era típico dos românticos.
Eles também podiam ter a nostalgia de um mundo desaparecido — por exemplo,
a Idade Média, que no Iluminismo fora tida pela idade das trevas e era agora
revalorizada. Ou tinham nostalgia de culturas distantes, por exemplo, o “Oriente”
com a sua mística. E sentiam-se atraídos pela noite, por ruínas antigas e pelo
sobrenatural. Preocupavam-se com aquilo a que chamamos o lado noturno da
vida, ou seja, o obscuro, o lúgubre e místico.
— Acho que parece uma época excitante. Mas quem eram então esses
românticos?
— O romantismo foi principalmente um fenômeno urbano. Na primeira
metade do século passado, a cultura urbana viveu uma época áurea em muitas
regiões da Europa, em especial na Alemanha. Os “românticos” típicos eram
jovens, freqüentemente estudantes — apesar de nem sempre serem muito
dedicados ao estudo. Tinham uma atitude declaradamente antiburguesa e
chamavam a mortais vulgares como policias, por exemplo, ou às senhorias,
“filisteus”, ou simplesmente “inimigos”.
— Então eu nunca alugaria um quarto a um romântico.— A primeira geração de românticos era ainda muito jovem por volta do
ano 1800.
Deste ponto de vista, podemos dizer que o movimento romântico foi a
primeira revolta juvenil da Europa. Há um claro paralelismo com a cultura
“hippie” cento e cinqüenta anos depois.
— Flores e cabelos compridos, tocar a guitarra e não fazer nada?
— Sim, dizia-se que o ócio era o ideal do gênio e a inércia a primeira
virtude romântica. Era dever do romântico viver a vida — ou afastar-se dela,
sonhando. Os filisteus é que deviam preocupar-se com os assuntos do dia-a-dia.
— Houve românticos na Noruega?
— “Wergeland” e “Welhaven” foram dois deles. Wergeland defendeu
também muitos ideais do Iluminismo, mas a sua vida foi típica de um romântico.
Ele entusiasmava-se, estava apaixonado, mas — e este também era um traço
romântico típico — Stella, a quem ele dedicou os seus poemas de amor, estava
tão distante e tão inacessível como a “flor azul” de Novalis. O próprio Novalis
ficou noivo de uma moça que tinha apenas catorze anos. Ela morreu quatro dias
após ter feito quinze anos, mas Novalis amou-a durante toda a vida.— Ela morreu mesmo quatro dias após ter feito quinze anos?
— Sim...
— Eu tenho hoje quinze anos e dez dias.
— Tens razão...
— Como é que se chamava?
— Chamava-se Sophie.
— O que estás a dizer?— Sim, chamava-se Sophie...
— Estás a assustar-me! Será um acaso?
— Não faço idéia, Sofia. Mas ela chamava-se Sophie.
— Continua!
— O próprio Novalis morreu com apenas vinte e nove anos. Muitos
românticos morreram jovens, geralmente de tuberculose. Alguns suicidaramse...
— Meu Deus!
— E aqueles que chegaram a velhos, normalmente deixavam de ser
românticos quando atingiam os trinta anos. Alguns tornavam-se mais tarde
burgueses e conservadores.— Então passaram-se para o campo do inimigo.
— Sim, talvez. Mas estávamos a falar sobre a paixão romântica: a grande
obra sobre o amor inacessível é o romance epistolar de amor, de “Goethe”, “Die
Leiden des jungen Werthers” (As mágoas do Jovem Werther), que foi publicado
em 1774. Termina com o suicídio do jovem Werther por não poder ter aquela
que ama...
— Ele não terá ido demasiado longe nisso?
— Os seus contemporâneos podiam compreender muito bem estes
sentimentos. Pelo menos, por toda a parte em que o romance foi publicado, o
suicídio aumentou rapidamente.
Por isso, o livro foi proibido durante algum tempo na Dinamarca e na
Noruega. Não era totalmente inofensivo ser-se romântico, estavam em jogo
sentimentos muito fortes.
— Quando dizes “romântico”, eu penso em grandes pinturas de paisagens.
Vejo florestas misteriosas e a natureza selvagem... envolvidas em névoa.— Aos traços mais característicos do Romantismo pertenciam
efetivamente a nostalgia pela natureza e uma verdadeira mística natural.
Era um fenômeno urbano, como disse — uma coisa deste gênero não
surge no campo. Sabes que o estribilho “Regresso à natureza!” provém de
Rousseau. Só então, no Romantismo, é que este mote recebeu um verdadeiro
impulso. O romantismo era também uma reação à concepção mecanicista do
mundo do Iluminismo. Com razão se afirmou que o Romantismo trouxe consigo
um Renascimento do antigo pensa-mento da totalidade.
— Explica-me isso!
— Significa que a natureza foi vista novamente como unidade. Os
românticos recorreram a “Espinosa”, mas também a “Plotino” e a filósofos do
Renascimento como “Jakob Boehme” e “Giordano Bruno”.
Todos eles tinham visto na natureza um “Eu” divino.
— Eram panteístas...
— Descartes e Hume tinham traçado uma fronteira nítida entre o eu e arealidade “extensa”. Também Kant tinha colocado uma separação clara entre o
eu como sujeito e a natureza “em si”. Agora, a natureza era tida como único
grande “eu”. Os românticos usavam também expressões como “alma do
mundo”, ou “espírito do mundo”.
— Compreendo.
— O filósofo mais influente do Romantismo foi “Friedrich Wilhelm
Schelling”, que viveu entre 1775 e 1854.
Ele procurou eliminar a separação entre “espírito” e “matéria”. Toda a
natureza — tanto a alma do homem como a realidade física — era expressão de
um Deus ou do “espírito do mundo”, segundo ele.
— Sim, isso faz lembrar Espinosa.
A natureza era o espírito visível, o espírito a natureza invisível, segundo
Schelling. Pois em toda a natureza pressentimos um espírito orde-nador,
estruturante. Via a matéria como uma espécie de inteligência adormecida.
— Tens de explicar isso melhor.— Schelling via na natureza um espírito do mundo, mas também via este
espírito do mundo na consciência do homem. Deste ponto de vista, a natureza e a
consciência humana são na verdade expressão da mesma coisa.
— Sim, porque não?
— Podemos procurar o espírito do mundo tanto na natureza como no nosso
próprio espírito. Deste modo, Novalis podia dizer que o “caminho misterioso”
conduzia ao interior. Ele achava que o homem trazia em si todo o universo e que
por isso podia experienciar melhor o mistério do mundo se penetrasse dentro de
si.
— É uma idéia bonita.
— Para muitos românticos, a filosofia, a investigação natural e a poesia
formavam uma unidade. Quer se estivesse no quarto de estudo e escrevesse
poemas inspirados, quer se investigasse a vida das plantas ou a composição das
pedras — tratava-se apenas de duas faces da mesma moeda, porque a natureza
não era um mecanismo morto, mas um espírito vivo.— Se contares mais coisas, eu torno-me imediatamente romântica.
— O naturalista norueguês “Henrik Steffens” — a quem Wergeland
chamava “desaparecida folha de louro norueguesa”, por ele ter ido viver para a
Alemanha — foi em 1801 para Copenhagen, para dar aulas sobre o Romantismo
alemão.
Ele caracterizou o movimento romântico com as seguintes palavras:
“cansados das tentativas eternas para forçarmos o caminho pela matéria rude,
escolhemos um outro caminho e procurávamos atingir o infinito. Entramos em
nós mesmos e criamos um novo mundo”.
— Como é que sabes tudo isso de memória?
— Uma ninharia, Sofia.
— Continua!
— Schelling via também um desenvolvimento na natureza, desde as pedras
até à consciência humana, referindo-se a transições progressivas desde a
natureza inanimada até formas de vida mais complexas. A visão romântica danatureza estava marcada pela concepção da natureza como um organismo, ou
seja, como unidade, que através dos tempos desenvolve as suas potencialidades
inerentes. A natureza é como uma flor, que desenvolve as suas folhas e pétalas.
Ou como um poeta, que cria os seus poemas.
— Isso não faz lembrar um pouco Aristóteles?
— Sim, claro. A filosofia romântica apresenta tanto traços aristotélicos
como traços neoplatônicos. Aristóteles tinha uma concepção mais orgânica dos
processos naturais do que os materialistas mecanicistas.
— Estou a ver.
— Também encontramos idéias semelhantes numa nova visão da história.
O filósofo da história “Johann Gottfried Herder” que viveu entre 1744 e 1803
teve uma grande importância para os românticos. Segundo ele, o curso da
história era o resultado de um processo teleológico. Justamente por isso
designamos a sua visão da história como “dinâmica”. Os iluministas tinham uma
visão “estática” da história. Para eles, havia apenas uma razão universal, e que
podia estar ora mais ora menos presente, consoante as diferentes épocas. Herder
mostrou, pelo contrário, que cada época da história tinha o seu próprio valor, e
cada povo tinha o seu caráter especial, a sua própria “alma do povo”.
A questão era apenas se e como nos podíamos identificar com outrostempos e culturas.
— Da mesma maneira que nos temos de identificar com a situação de
outra pessoa para a entendermos melhor, também temos de nos identificar com
outras culturas para as conhecermos.
— Hoje, isso tornou-se quase evidente. Mas, durante o Romantismo, era
um conhecimento novo. O Romantismo contribuiu para fortalecer o sentimento
da identidade própria de cada nação. Não é por acaso que também aqui na
Noruega a luta pela independência nacional se tenha desenvolvido justamente
em 1814.
— Compreendo.
— Uma vez que o Romantismo trazia consigo uma nova orientação em
tantos domínios, é freqüente distinguir duas formas de Romantismo. Por
Romantismo entendemos, por um lado, aquilo a que podemos chamar
“Romantismo universal”. Estamos a pensar nos românticos que se preocupavam
com a natureza, a alma universal e o gênio artístico. Esta forma de Romantismo
foi a primeira e floresceu principalmente na cidade alemã de Jena por volta do
ano 1800.
— E a outra forma de Romantismo?— Era o chamado “Romantismo nacional”. Surgiu um pouco mais tarde e
o seu centro era em Heidelberg. Os românticos nacionais interessavam-se
principalmente pela história do povo, a sua língua e por toda a cultura “popular”.
O povo também era visto como um organismo que desenvolve as
capacidades que lhe são inerentes — exatamente como a natureza e a história. —
Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és.
— Aquilo que ligava as duas formas de romantismo era principalmente a
palavra— chave “organismo”. Todos os românticos viam tanto uma planta como
um povo, inclusivamente uma obra de poesia, como um organismo vivo. Por
isso, não há uma fronteira nítida entre as duas formas. O espírito do mundo
estava tão presente no povo e na cultura popular como na natureza e na arte.
— Compreendo.
— Já Herder reunira canções populares de muitos países e deu à sua
coleção o expressivo título “Vozes do povo”. Ele dizia que a poesia popular era a
“língua materna dos povos”. Em Heidelberg, começou-se a reunir canções
populares e contos populares.Já ouviste falar dos contos dos Irmãos Grimm?
— Claro que sim — a “Branca de Neve”, a “Chapeuzinho Vermelho”, a
“Gata Borralheira” e “Haensel e Gretel...
— E muitos, muitos outros.
Na Noruega tivemos “Asbjörnsen” e “Moe”, que viajavam pelo país, para
recolherem a “Poesia do povo”. Era a colheita de um fruto suculento, que se
reconheceu subitamente ser saboroso e nutritivo. E era urgente — o fruto já caía
das árvores. “Landstad” recolheu canções populares e “Ivar Aasen” recolheu
por assim dizer a própria língua norueguesa. Também os mitos e as sagas da
época pagã foram redescobertos em meados do século XIX. Em toda a Europa,
os compositores utilizavam canções populares nas suas composições.
Procuravam assim fazer uma ponte entre a música erudita e a música popular.
— Música erudita?
— A música erudita é composta por uma pessoa determinada — por
exemplo, Beethoven. A música popular não foi criada por uma pessoa
específica, mas pelo próprio povo.Por isso, também não sabemos exatamente de quando é cada canção. Do
mesmo modo distinguimos contos populares e contos eruditos.
— O que significa um conto erudito?
— É um conto que um escritor imaginou, por exemplo, “Hans Christian
Andersen”.O gênero do conto foi cultivado com grande ardor pelos românticos.
Um dos mestres alemães foi “E. T. A. Hoffmann”.
— Acho que já ouvi falar dos “Contos de Hoffmann”.
— O conto era o ideal literário dos românticos — mais ou menos como o
teatro era a forma artística do Barroco. Dava ao escritor a possibilidade de jogar
com o seu próprio poder criativo.
— Ele podia representar o papel de Deus para um mundo imaginado. —
Exato. E agora, é necessário uma espécie de resumo.
— Faz favor. — Os filósofos do Romantismo compreendiam aquilo a quechamavam “alma do mundo” como um “eu”, que cria as coisas no mundo num
estado mais ou menos de sonho. O filósofo “Johann Gottlieb Fichte” afirmou que
a natureza provinha de uma atividade imaginativa elevada, inconsciente.
Schelling afirmava explicitamente que o mundo estava “em Deus”. Deus
estaria consciente de alguma coisa, segundo ele, mas havia também aspectos da
natureza que representavam o inconsciente de Deus. Pois Deus tinha também
uma “face obscura”.
— Essa idéia é simultaneamente assustadora e fascinante. Faz-me lembrar
Berkeley .
— A relação entre o escritor e a sua obra era vista aproximadamente
desse modo. O conto dava ao escritor a possibilidade de jogar com a sua
imaginação criativa. E o ato criador nem sempre era muito consciente. O
escritor podia ter a sensação de que a história que ele escrevia surgia de uma
força interior. Ele quase podia escrever como que hipnotizado.
— Sim?
— Mas em seguida também podia romper a ilusão de repente. Podia
intervir na história através de pequenos comentários irônicos para o leitor, e este
lembrar-se-ia de que o conto era apenas um conto.— Compreendo.
— Deste modo, o escritor podia também fazer recordar o leitor que a sua
existência era fictícia. Esta forma de destruir a ilusão é designada por ironia
romântica. O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen põe uma das personagens da
sua peça Peer Gy nt a dizer:
“Não se pode morrer no meio do quinto ato.”
— Compreendo que essa fala é um pouco estranha. Com isso, ele está
simultaneamente a dizer que é apenas um personagem de fantasia.
— Esta fala é tão paradoxal que devíamos terminar com ela um
parágrafo.
— O que queres dizer com isso?— Ah, nada, Sofia. Lembras-te de que a noiva de Novalis se chamava
Sofia como tu, e, além disso, morreu com quinze anos e quatro dias...
— Ainda não percebeste que eu fiquei assustada?
O olhar de Alberto endureceu. Prosseguiu:
— Tu não tens que ter medo de vir a sofrer o mesmo destino da amada de
Novalis.
— Porque não?
— Porque ainda faltam muitos capítulos. — O que estás a dizer?
— Digo que todos os que lêem a história de Sofia e Alberto, sentem nas
pontas dos dedos que ainda faltam muitas páginas da história. Ainda só chegamos
ao Romantismo. — Estou a ficar mesmo confusa com a tua conversa.— Na realidade, o major tenta pôr Hilde confusa. Não achas isso maldoso,
Sofia?
Novo parágrafo! Alberto não terminara ainda a sua frase quando um rapaz
veio a correr do bosque. Trazia vestes árabes e um turbante. Tinha uma
lamparina na mão. Sofia agarrou no braço de Alberto.
— Quem é este? — perguntou. Mas o jovem respondeu por si mesmo.
— Eu chamo-me Aladino e venho do Líbano.
Alberto examinou-o severamente.
— O que tens na tua lamparina, rapaz?
O rapaz esfregou a lamparina — e dela subiu uma fumaça espessa. Da
fumaça formou-se a figura de um homem. Tinha uma barba negra como a de
Alberto e trazia uma boina azul. Flutuava no ar sobre a lamparina e disse:— Estás a ouvir-me, Hilde? Venho certamente demasiado tarde para
novas felicitações. E agora quero apenas dizer que Bjerkely e o sul da Noruega
me parecem quase um sonho. Lá nos veremos dentro de poucos dias.
A figura masculina voltou a desaparecer em fumaça — e toda a nuvem
foi sugada para dentro da lamparina. O rapaz com o turbante pôs a lamparina
debaixo do braço, correu para o bosque e desapareceu.
— Isto... isto é inacreditável. — afirmou Sofia.
— Uma bagatela, minha filha.
— O gênio falou exatamente como o pai de Hilde. — Era o seu gênio...
— Mas...
— Eu e tu, e tudo o que sucede à nossa volta — tudo isso se passa no fundo
da mente do major. É noite avançada no sábado, dia 28 de Abril; à volta do
major desperto dormem todos os soldados da ONU, e ele também já está muitosonolento. Mas tem de terminar o livro que quer oferecer a Hilde pelo seu
aniversário. Por isso tem de trabalhar, Sofia, por isso o pobre homem não tem
descanso.
— Acho que desisto!
— Novo parágrafo!
Sofia e Alberto olhavam fixamente para o pequeno lago. Alberto estava
como que petrificado. Passado um pouco, Sofia atreveu-se a dar-lhe um toque no
ombro.
— Perdeste a fala?
— Ele interveio diretamente, sim. Os últimos capítulos foram inspirados
por ele até às menores letras.
Devia ter vergonha. Mas assim também se traiu, deu-se a conhecer
completamente. Agora sabemos que vivemos a nossa vida num livro que o pai de
Hilde lhe envia pelos anos.Tu ouviste o que eu disse, não ouviste? — Apesar de na realidade não ter
sido “eu” quem disse isso.
— Se isso é verdade, vou tentar fugir do livro e seguir o meu próprio
caminho.
— É exatamente esse o meu plano secreto. Mas primeiro, temos que tentar
falar com Hilde. Ela lê todas as palavras que estamos a dizer. E quando tivermos
fugido daqui se tornará muito mais difícil retomar o contato com ela.
— O que havemos de dizer?
— Acho que o major adormece sobre a sua máquina de escrever. Os seus
dedos percorrem ainda o teclado com uma pressa febril. — Um pensamento
estranho.
— Mas, justamente agora, ele pode escrever coisas de que se venha a
arrepender. E não tem corretor, Sofia.Este é um elemento importante do meu plano. Ai daquele que der ao
major Albert Knag um corretor!
— De mim ele não leva sequer papel nem corretor!
— Exorto neste momento a pobre moça a rebelar-se contra o seu pai. Ela
devia ter vergonha por se divertir com o seu jogo ridículo de sombras. Se ele
estivesse aqui, o senhor major sentiria a nossa irritação no corpo.
— Mas ele não está aqui.
— O seu espírito e a sua alma estão aqui, mas ele está no Líbano. Tudo o
que vemos à nossa volta é o “eu” do major.
— Mas ele é mais do que isso.
— Nós somos apenas sombras na sua alma. Não é fácil para uma sombra
atacar o seu mestre, Sofia. Para isso, é necessário coragem e uma reflexão
madura. Mas nós temos a possibilidade de influenciar Hilde. Só um anjo se podeinsurgir contra um deus.
— Nós podemos incitar Hilde a dizer-lhe das boas logo que ele chegue a
casa. Ela pode dizer-lhe que acha que ele é um trapaceiro. Pode estragar-lhe o
barco — ou pelo menos destruir as luzes de borda. Alberto acenou
afirmativamente. Em seguida, disse:
— E ela pode fugir dele.
É mais fácil para ela do que para nós. Pode deixar a casa do major e não
pôr lá mais os pés. Isso seria justo para o major, que brinca à nossa custa com a
sua imaginação.
— Já estou a imaginar: o major viaja pelo mundo à procura de Hilde, mas
Hilde desapareceu sem deixar rasto porque não quer viver com um pai que faz
troça de Sofia e Alberto.
— Ele faz troça, sim. Era o que eu queria dizer com o fato de nos utilizar
como entretenimento de aniversário. Mas ele devia ter cuidado, Sofia. E Hilde
também.— O que queres dizer?
— Estás bem sentada?
— Desde que não venham mais gênios, sim.
— Tenta imaginar que tudo o que vivemos se passa na consciência de uma
outra pessoa. Nós somos essa consciência. Não temos uma alma própria, somos
a alma de um outro. Até agora encontramo-nos em solo filosófico familiar
Berkeley e Schelling arrebitariam as orelhas.
— Sim?
— E podemos imaginar que esta alma é o pai de Hilde Möller Knag. Ele
está no Líbano e escreve à filha um livro de filosofia para o seu aniversário.
Quando Hilde acordar no dia 15 de Junho, encontrará o livro na mesa de
cabeceira e então ela e outras pessoas podem ler sobre nós.
Ele já disse há muito tempo que o “presente” pode ser partilhado com
outros.— Eu sei.
— E Hilde lê aquilo que te estou a dizer depois de o pai ter estado em dada
altura no Líbano e ter imaginado que eu te conto que ele está no Líbano...
imaginando que eu te conto que ele está no Líbano...
De repente, tudo se voltou na cabeça de Sofia. Tentou lembrar-se do que
ouvira sobre Berkeley e os românticos. E Alberto prosseguiu:
— Mas por isso eles não deviam estar tão convencidos. E principal-mente
não se deviam rir, porque podem engasgar-se com esse riso.
— Quem?
— Hilde e o pai. Não é deles que estamos a falar?
— Mas porque é que eles não deviam estar convencidos?— Porque não é um pensamento totalmente impossível eles serem
também apenas consciência.
— Como é que isso é possível?
— Se era possível para Berkeley e para os românticos, também tem de ser
possível para eles. Talvez o major seja um fantasma num livro que trata dele e
de Hilde, mas também de nós, que somos uma pequena parte da sua vida.
— Isso seria ainda mais grave. Assim, seríamos apenas sombras de
sombras.
— Mas podemos pensar que um outro autor está em algum lado e escreve
um livro que trata deste major da ONU, Albert Knag que escreve um livro para
a sua filha Hilde.
Este livro trata de um certo Alberto Knox que começa subitamente aenviar modestas lições de filosofia a Sofia Amundsen, em Klöverveien 3.
— Acreditas nisso?
— Apenas estou a dizer que é possível. Para nós, este autor seria um Deus
oculto, Sofia. Apesar de tudo o que dizemos e fazemos vir dele, porque nós somos
ele, nunca poderemos saber algo sobre ele. Estamos arrumados na caixa mais
interior.
Sofia e Alberto ficaram calados muito tempo. Sofia quebrou por fim o
silêncio:
— Mas se existe realmente um escritor que imagina a história sobre o pai
de Hilde no Líbano exatamente como imaginou a história sobre nós...
— Sim?
— ...nesse caso podemos pensar que ele também não se devia gabar
demasiado.— O que queres dizer com isso?
— Ele está lá, e algures no fundo da sua mente estão Hilde e eu. Mas não
se pode imaginar que ele também viva numa consciência ainda mais elevada?
Alberto acenou afirmativamente com a cabeça.
— É evidente, Sofia.
Também isso é possível. E se é assim, ele fez-nos ter esta conversa
filosófica para indicar essa possibilidade. Assim, quer sublinhar que também é
uma sombra indefesa e que este livro, em que Hilde e Sofia vivem, é na
realidade um manual de filosofia.
— Um manual?
— Porque todas as conversas que tivemos, todos os diálogos, Sofia.
— Sim?— São na realidade um monólogo.
— Agora, tenho a sensação de que tudo se dissolve em consciência e em
espírito. Estou contente por ainda haver alguns filósofos. A filosofia, que
começou tão bem com Tales, Empédocles e Demócrito, não pode encalhar aqui?
— Claro que não. Eu vou falar-te de Hegel. Foi o primeiro filósofo que
tentou salvar a filosofia depois de o Romantismo ter dissolvido tudo em espírito.
— Estou ansiosa.
— Para não sermos interrompidos por outros gênios ou sombras, vamos
para dentro, está bem?
— Está um pouco frio, de qualquer modo.
— Próximo capítulo!

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