CAPÍTULO XXVII: HEGEL

...o que é racional é real...

Hilde deixou cair o grande “dossiê” no chão com um estampido. Ficou
deitada na cama e a olhar fixamente para o teto. Tudo parecia andar à roda. O
seu pai tinha conseguido efetivamente que ela ficasse tonta. Que pirata!
Como é que ele podia fazer isto? Sofia tinha tentado falar diretamente com
ela. Exortara Hilde a rebelar-se contra o pai. E tinha realmente conseguido
inculcar uma idéia em Hilde. Um plano...
Sofia e Alberto não podiam tocar num cabelo do seu pai, isso era claro.
Mas Hilde podia! E através de Hilde, Sofia também. Hilde estava de acordo com
Sofia e Alberto no fato de o seu pai ter ido longe demais com o jogo das sombras.Apesar de ter concebido Sofia e Alberto, havia limites para a demonstração do
seu poder.
Pobre Sofia, pobre Alberto! Estavam tão indefesos em relação à fantasia
do pai de Hilde como uma tela está indefesa em relação ao projecionista. Hilde
queria dar-lhe uma bronca quando ele chegasse a casa. Em contornos nítidos, ela
via nesse mesmo instante o esboço de um golpe astuto. Foi para a janela e olhou
para a enseada. Eram quase duas horas. Abriu a janela e gritou em direção ao
barracão dos barcos: — Mãe! Pouco depois, a mãe apareceu.
— Daqui a uma hora levo-te umas sanduíches. Está tudo bem?
— Sim.
— Ainda tenho que ler um pouco sobre Hegel.
Sofia e Alberto sentaram-se na poltrona em frente à janela que dava para
o pequeno lago.— “Georg Wilhelm Friedrich Hegel” era um verdadeiro filho do
Romantismo — começou Alberto. — Quase podes dizer que ele seguiu fielmente
o desenvolvimento do espírito alemão. Nasceu em Estugarda em 1770 e iniciou
um curso de teologia em Tubinga com dezoito anos. A partir de 1799 trabalhou
com Schelling em Iena, onde o movimento romântico estava no apogeu. Depois
de ter sido docente em Iena, recebeu uma cátedra em Heidelberg — o centro do
Romantismo nacional alemão. Finalmente, tornou-se professor em Berlim em
1818 — exatamente na época em que esta cidade começava a tornar-se um
centro espiritual da Europa. Em Novembro de 1831, morreu de cólera, mas
nessa altura o “hegelianismo” já tinha grupos de discípulos em quase todas as
universidades alemãs.
— Então ele apanhou o principal.
— Sim, e isso também é válido para a sua filosofia. Hegel uniu nela quase
todas as idéias que se tinham desenvolvido com os românticos e sintetizou-as.
Mas ele era também um forte crítico da filosofia de Schelling, por exemplo.
— O que é que criticou nela?
— Schelling e os outros românticos tinham visto o mais profundo
fundamento da realidade no chamado espírito do mundo. Hegel também
emprega o conceito “Weltgeist”, mas dá-lhe outro significado.Quando Hegel fala de espírito do mundo ou de “razão do mundo”, quer
dizer a soma de todas as manifestações humanas, pois só o homem tem espírito.
Nesta acepção, ele também fala do percurso do espírito do mundo através da
história. Não podemos esquecer que ele fala da vida, dos pensamentos e da
cultura dos homens.
— Então este espírito é menos assustador. Já não está à espreita como uma
inteligência adormecida em pedras e árvores.
— E tu sabes ainda que Kant tinha falado da “coisa em si”. Apesar de
negar que os homens pudessem ter um conhecimento claro dos segredos mais
íntimos da natureza, ele apontou para uma espécie de verdade inatingível.
Segundo Hegel, esta verdade era fundamental-mente subjetiva — e negou que
pudesse haver uma verdade acima ou além da razão humana. Todo o
conhecimento é conhecimento humano.
— Ele queria trazer a filosofia de volta à terra?
— Sim, talvez possas dizer isso. Mas a filosofia de Hegel é tão abrangente e
diversificada que temos de nos contentar por agora com a clarificação de alguns
dos pontos mais importantes. É difícil dizermos que Hegel tinha uma filosofia
própria. Aquilo a que chamamos a filosofia de Hegel é principalmente um
método para compreender a evolução da história. Por isso, quase não podemos
falar sobre Hegel sem mencionarmos a evolução da história. A filosofia de
Hegel não nos ensina realmente nada sobre a “natureza profunda da vida”, mas
pode ensinar-nos a pensar de um modo frutífero.— E isso também é muito importante.
— Todos os sistemas filosóficos anteriores a Hegel tinham tentado
estabelecer critérios eternos para aquilo que o homem pode saber acerca do
mundo. Isso sucede em Descartes e Espinosa, Hume e Kant. Qualquer deles
queria investigar qual era o fundamento de todo o conhecimento humano. Mas
todos tinham falado sobre os pressupostos intemporais para o conhecimento do
mundo.
— Não é esse o dever do filósofo?
— Hegel achava impossível encontrar esses pressupostos intemporais.
Segundo ele, as bases do conhecimento humano mudam de geração para
geração. Por isso, também não há para ele “verdades eternas”. Não há razão
intemporal. O único ponto fixo em que o filósofo se pode basear é a própria
história.
— Não, tens de me explicar isso. A história altera-se constantemente,
como é que pode ser um ponto fixo?— Um rio também se altera constantemente. Mas isso não significa que
não possas falar sobre esse rio. Mas não podes perguntar em que parte do vale o
rio é mais verdadeiro.
— Não, porque o rio é em toda a parte igualmente rio.
— Para Hegel, a história era como o curso de um rio. O menor
movimento na água num ponto determinado do rio é na realidade determinado
pela queda da água e pela agitação da água mais acima. Mas também é
importante que pedras e curvas há no rio no ponto em que tu estás e o observas.
— Acho que estou a perceber.
— A história do pensamento — ou da razão — é como o curso desse rio.
Contém todas as idéias que gerações de pessoas pensaram antes de ti e que
determinam o teu pensamento do mesmo modo que as condições de vida da tua
época. Por isso, não podes afirmar que uma determinada idéia é eternamente
verdadeira. Mas essa idéia pode ser verdadeira onde tu estás.
— Mas isso não significa que tudo é falso — ou que tudo é verdadeiro, pois
não?— Não, uma coisa só pode ser verdadeira ou falsa em relação a um
contexto histórico. Se argumentas a favor da escravatura no ano de 1990 tornaste
ridícula, na melhor das hipóteses. Há dois mil e quinhentos anos não era tão
ridículo, apesar de já nessa época haver vozes progressistas que defendiam a
abolição da escravatura. Mas podemos tomar um exemplo mais próximo. Há
apenas cem anos ainda não era irracional queimar extensas áreas de floresta
para se obter terreno arável. Mas hoje é extremamente irracional. Nós temos
condições completamente diferentes — e melhores — para julgarmos.
— Agora compreendi.
— Também a razão, diz Hegel, é algo dinâmico, é um processo. E a
“verdade” é apenas este processo. Não há critérios exteriores ao processo
histórico que possam decidir o que é mais verdadeiro ou racional.
— Exemplos, por favor.
— Não podes examinar diversas idéias da Antiguidade ou da Idade Média,
do Renascimento ou do Iluminismo e dizer que isto estava certo e aquilo errado.
Por isso, também não podes dizer que Platão estava errado ou que Aristóteles
tinha razão. Também não podes dizer que Hume estava errado enquanto Kant ou
Schelling tinham razão. Isso é um modo de pensar anti-histórico.— Pois, não me parece bem.
— Não podes arrancar nenhuma filosofia nem nenhuma idéia do seu
contexto histórico. Mas, e agora estou a falar de um aspecto novo, uma vez que
os homens compreendem sempre coisas novas, a razão é “progressiva”.
Significa que o conhecimento humano está constantemente em expansão e em
progresso.
— Assim, a filosofia de Kant seria um pouco mais correta do que a de
Platão?
— Sim. O “espírito do mundo” desenvolveu-se no tempo que medeia entre
Platão e Kant. Se regressarmos à nossa imagem do rio podes dizer que agora
leva mais água. Entre as duas épocas passaram mais de dois mil anos. Kant não
pode pretender que as suas “verdades” fiquem na margem como pedras
imóveis. As suas idéias também não são a última conclusão da sabedoria e a
geração seguinte criticá-las-ia seriamente. Foi exatamente o que se passou.
— Mas este rio do qual estás a falar...
— Sim?— Para onde corre?
— Hegel explicou que o espírito tem cada vez mais consciência de si
mesmo. Os rios são cada vez mais largos quanto mais se aproximam do mar.
Segundo Hegel, na história, o espírito do mundo desperta lentamente para a
consciência de si mesmo. O mundo existiu sempre, mas, através da cultura e do
desenvolvimento do homem, o espírito fica cada vez mais consciente do seu
valor intrínseco.
— Como é que ele podia ter tanta certeza disso?
— Para ele era uma realidade histórica, não era de modo algum uma
mera profecia. Para quem estuda a história, segundo ele, torna-se claro que a
humanidade caminha em direção a um autoconhecimento e a um
autodesenvolvimento cada vez maiores. A história mostra um inequívoco
desenvolvimento no sentido de uma racionalidade e liberdade progressivamente
maiores. Naturalmente, tem todo o tipo de hesitações, mas em geral avança de
modo imparável. Para Hegel, a história dirige-se a um fim.
— Então estamos sempre a desenvolver-nos. Que bom, nesse caso ainda
há esperança.— A história é para Hegel uma longa cadeia de pensamentos, cujos elos
não se ajustam ao acaso, mas segundo leis determinadas. Quem estuda a história
pormenorizadamente há de reparar que geralmente uma nova idéia é exposta
com base noutra anteriormente expressa. Mas se uma nova idéia é apresentada,
será forçosamente contestada por outra nova idéia. Deste modo, surgem duas
formas de pensar opostas e entre elas uma tensão. Esta tensão é superada quando
uma terceira idéia que preserva o melhor dos dois pontos de vista precedentes é
apresentada. Hegel chama a isto o processo “dialético”.
— Tens um exemplo?
— Talvez ainda te lembres que os pré-socráticos tinham discutido a
questão do elemento primordial e do devir.
— Sim.
— E os eleatas declararam que qualquer transformação era impossível.
Por isso, tinham de negar todas as alterações, mesmo que as sentissem com os
sentidos. Os eleatas tinham exposto uma perspectiva, e Hegel chama a essa
perspectiva uma “tese”.
— Sim?— Mas cada vez que uma perspectiva é apresentada, surge uma
perspectiva contrária. Hegel chama-lhe “negação”. A negação da filosofia dos
eleatas era a filosofia de Heráclito, que afirmava que “tudo flui”. Surgiu então
uma tensão entre duas formas de pensar diametralmente opostas. Mas esta
tensão foi “suprimida” quando Empédocles afirmou que ambos estavam
parcialmente certos e parcialmente errados.
— Sim, começo a compreender...
— Os eleatas tinham razão em dizer que por princípio nada se altera; mas
não era verdade que não podemos confiar nos nossos sentidos. Heráclito tinha
razão ao dizer que podemos confiar nos nossos sentidos; mas não tinha razão ao
dizer que “tudo” flui.
— Porque existe mais do que um elemento primordial. A composição
altera-se, mas os elementos não.
— Exato. O ponto de vista de Empédocles, que medeia entre os pontos de
vista opostos, é designado por Hegel a “negação da negação”.
— Meu Deus!— Ele também chamava aos três estádios do conhecimento “tese,
antítese” e “síntese”. Podes dizer que o racionalismo de Descartes é a tese — o
qual foi depois criticado pela antítese empírica de Hume. Mas esta oposição, a
tensão entre duas formas de pensamento opostas foi superada pela síntese de
Kant. Kant deu razão por um lado aos racionalistas, por outro aos empiristas. Ele
mostrou também que ambos estavam errados em pontos importantes. Mas a
história não termina com Kant. A síntese de Kant tornou-se o ponto de partida
para uma nova cadeia de pensamentos tripartida ou “tríade”. Porque a síntese
também se torna tese e segue-se uma nova antítese.
— Mas isso é extremamente teórico.
— Sim, é teórico. Mesmo que isto pareça verdade, Hegel não queria de
modo algum espartilhar a história num esquema. Ele achava poder retirar este
modelo dialético da própria história. Estava fortemente convicto de ter
encontrado leis para o desenvolvimento da razão — ou para a evolução do
espírito através da história.
— Compreendo.
— Mas a dialética de Hegel não se aplica apenas à história. Mesmo quando
discutimos — ou debatemos — pensamos dialeticamente. Tentamos detectar os
erros de uma forma de pensar. Hegel chamou-lhe “pensamento negativo”. Mas
quando tivermos descoberto os erros de uma forma de pensar conservamosainda o que estava correto nela.
— Exemplos, por favor!
— Quando um socialista e um conservador se reúnem para resolver um
problema social, será logo patente uma tensão entre ambas as maneiras de
pensar. Mas isso não quer dizer que um tem toda a razão e o outro está
completamente errado. É perfeitamente pensável que ambos estejam
parcialmente certos e parcialmente errados. No decurso da discussão conservarse-ão,
se eles são inteligentes, os melhores argumentos de ambos os lados.
— Esperemos que sim.
— Se estamos no meio de uma discussão destas, infelizmente nem sempre
é fácil verificar o que é mais racional. No fundo, é a história que tem de mostrar
o que é verdadeiro e o que é falso. O que é racional é real, segundo Hegel.
— Isso quer dizer que o que sobrevive está certo?
— Ou ao contrário: o que está certo sobrevive.— Não tens um pequeno exemplo? Isso parece tudo tão abstrato.
— Há cento e cinqüenta anos muitos lutavam pela igualdade de direitos
para as mulheres. E muitos lutavam encarniçadamente contra a igualdade. Se
hoje examinarmos os argumentos de ambos os lados, não é difícil reconhecer
quais eram os mais racionais. Mas não podemos esquecer que posteriormente
sabemos sempre mais. Provou-se que aqueles que lutaram pela igualdade de
direitos tinham razão. Muitas pessoas teriam certamente vergonha se tivessem de
ler o que o seu avô disse acerca deste tema.
— Sim, percebo. O que é que Hegel achava?
— Sobre a igualdade?
— Sim, não é disso que estamos a falar?
— Queres ouvir uma citação?— Sim.
— “A diferença entre homem e mulher é a mesma que entre o animal e a
planta” — escreveu ele. “O animal corresponde mais ao caráter do homem, a
planta mais ao da mulher, pois o seu desenvolvimento é mais tranqüilo, e o
princípio que lhe está subjacente é principalmente a unidade indeterminada do
sentimento. Se as mulheres estão no topo do poder, o governo está em perigo,
porque elas não agem de acordo com as exigências da universalidade, mas de
acordo com uma inclinação e opinião arbitrárias. A formação das mulheres dá-
se, por assim dizer, na atmosfera da imaginação, mais através da vida do que da
aquisição de conhecimentos. Enquanto o homem atinge o seu lugar apenas
através da aquisição das idéias e de muito empenho técnico.”
— Obrigada, já chega. Prefiro não ouvir mais citações dessas.
— Mas a citação é um exemplo brilhante de que a nossa noção do que é
“racional” se altera constantemente. Mostra também que Hegel era um filho do
seu tempo — tal como nós. Muito do que nos parece hoje “evidente” não passará
o teste da história.
— Tens um exemplo?
— Não, não tenho.— Porque não?
— Porque eu apenas poderia falar do que já está em vias de
transformação. Eu não poderia, por exemplo, dizer que andar de carro será tido
um dia como algo terrivelmente estúpido porque destrói a natureza. Hoje, já
muita gente pensa assim. Por isso, seria um mau exemplo. Mas a história vai
mostrar que muito do que todos nós temos por evidente não passará o teste da
história.
— Compreendo.
— E podemos reparar ainda noutra coisa: o fato de os homens no tempo de
Hegel fazerem estas afirmações extremas sobre a inferioridade da mulher
apenas acelerou o desenvolvimento do feminismo.
— Como assim?
— Os homens apresentaram — como teria dito Hegel — uma tese. A
razão pela qual eles achavam isso importante era obviamente o fato de as
mulheres já terem começado a insurgir-se. Não é preciso ter uma opinião tãodecidida sobre uma coisa com a qual todos estão de acordo. Quanto mais eles
discriminavam as mulheres, mais forte se tornava a antítese ou negação.
— Acho que estou a compreender.
— Podes dizer que adversários enérgicos são o melhor que pode acontecer
a uma idéia. Quanto mais extremistas melhor, porque mais forte será a reação a
que terão de fazer face. Sob o ponto de vista puramente lógico ou filosófico existe
também uma tensão dialética entre dois conceitos.
— Exemplos, por favor!
— Quando reflito sobre o conceito “ser”, tenho também que introduzir o
conceito oposto “não-ser”. É impossível pensarmos que existimos sem nos
lembrarmos em seguida que não existiremos sempre. A tensão entre “ser” e
“não-ser” é resolvida no conceito “devir”. O processo do devir significa de certo
modo que uma coisa é e não é.
— Compreendo.
— A razão de Hegel é uma razão dinâmica. Uma vez que a realidade écaracterizada por antíteses, uma descrição da realidade também tem que ser
contraditória. Vou dar-te um exemplo: diz-se que o físico dinamarquês “Niels
Bohr” pendurou uma ferradura sobre a porta da sua casa.
— Diz-se que traz sorte.
— Mas isso é apenas superstição, e Niels Bohr era de fato tudo menos
supersticioso. Quando, certa vez, um amigo o visitou, perguntou-lhe: — “Não
acreditas numa coisa dessas, pois não?”. “Não”, respondeu Niels Bohr, “mas
disseram-me que funciona”.
— Não tenho palavras. — A resposta foi bastante dialética; alguns diriam
que é contraditória. Niels Bobr era conhecido, bem como o poeta norueguês
Vinje, por uma visão dialética do mundo. Ele afirmou certa vez que existem dois
tipos de verdade, as superficiais, cuja antítese era incontestavelmente falsa, mas
também as profundas, cuja antítese era tão verdadeira como elas próprias.
— Que tipo de verdades eram essas?
— Se, por exemplo, digo que a vida é curta...— Eu estou de acordo.
— Numa outra ocasião posso abrir os braços e dizer que a vida é longa. —
Tens razão. De certo modo, também é verdade.
— Para terminar vou dar-te ainda um exemplo de como uma tensão
dialética pode provocar uma ação espontânea que leva a uma mudança súbita.
— Diz!
— Imagina uma moça que diz sempre: “Sim, Mamãe”, “Claro, Mamãe”,
“Como queiras, Mamãe”, “Sim, vou já fazer isso, Mamãe!”.
— Sinto um calafrio nas costas.
— Certo dia, a mãe irrita-se por a filha ser sempre tão obediente e grita
enervada: “Não sejas tão obediente!”, e a filha responde: “Sim, Mamãe!”— Nesse caso, eu dava-lhe uma bofetada.
— É, não é? Mas o que farias se ela tivesse respondido: “Não, eu quero ser
obediente”.
— Seria uma resposta estranha. Talvez lhe desse à mesma uma bofetada.
— Por outras palavras, estamos num impasse. A tensão dialética agravouse
tanto que tem de haver uma mudança.
— Referes-te à bofetada?
— Temos de mencionar ainda um último aspecto da filosofia de Hegel.
— Sou toda ouvidos.
— Lembras-te que Caracterizamos os românticos como individualistas?— O caminho misterioso conduz ao interior.
— Justamente este individualismo encontrava na filosofia de Hegel a sua
“negação”. Hegel dava um grande peso àquilo a que chamava “poderes
objetivos”, isto é, a família e o Estado. Podes dizer que Hegel não perdeu o
indivíduo de vista; apenas o via principalmente como um elemento orgânico da
comunidade. A razão, ou o espírito, são visíveis principalmente na colaboração
entre homens, segundo Hegel.
— Explica-te!
— A razão manifesta-se principalmente na língua. E a língua é algo no
qual nascemos. A língua norueguesa passa bem sem o senhor Hansen, mas o
senhor Hansen não pode viver sem a língua norueguesa. Não é o indivíduo que
forma a língua, mas a língua que forma o indivíduo.
— Sim, podes dizer isso.
— Assim como o indivíduo nasce numa língua, também nasce no seu
contexto histórico. E ninguém tem uma relação “livre” com esse contexto. Quemnão encontra o seu lugar no Estado é uma pessoa anti-histórica. Talvez te lembres
ainda que esta idéia também era importante para os grandes filósofos de Atenas.
O Estado é tão inconcebível sem cidadãos como os cidadãos sem o Estado.
— Compreendo.
— Para Hegel, o Estado é “mais” do que o cidadão individual. E é mais do
que a soma de todos os cidadãos. Hegel acha impossível que alguém se despeça,
por assim dizer, da sociedade. Quem encolhe os ombros em relação à sociedade
em que vive e prefere “encontrar-se a si mesmo” é, segundo ele, um louco.
— Não sei se estou de acordo, mas está bem.
— Para Hegel, não é o indivíduo que se encontra a si mesmo, mas o
espírito.
— O espírito encontra-se a si mesmo?
— Hegel tentou mostrar que o espírito regressa a si em três estádios, ou
seja, torna-se consciente de si mesmo em três estádios.— Continua!
— Em primeiro lugar, o espírito toma consciência de si no indivíduo, o que
Hegel designa “espírito subjetivo”.
O espírito atinge uma consciência mais elevada de si na família, na
sociedade, e no Estado, que Hegel designa por “espírito objetivo”, porque é uma
razão que se manifesta na interação entre os homens. Mas há ainda um terceiro
estádio...
— Estou ansiosa.
— A forma mais elevada de autoconhecimento é atingida pelo espírito no
“espírito absoluto”. E este espírito absoluto é a arte, a religião e a filosofia. Dentre
estas, a filosofia é a forma mais elevada da razão, pois na filosofia o espírito
reflete sobre o seu papel na história. Só na filosofia é que o espírito se encontra a
si mesmo. Deste ponto de vista, poderíamos dizer que a filosofia é o espelho do
espírito.
— Isso parece tão misterioso que tenho que assimilá-lo com calma. Mas aúltima coisa que disseste agradou-me.
— Eu disse que a filosofia é o espelho do espírito.
— Isso é bonito. Achas que isso tem alguma coisa a ver com o espelho de
latão?
— Sim, já que perguntas.
— O que queres dizer com isso?
— Eu penso que este espelho de latão tem uma importância especial, uma
vez que está sempre a vir à baila.
— Então também tens uma idéia de qual é a importância dele?
— Não, não. Eu apenas disse que o espelho não seria mencionado tantasvezes se não tivesse uma importância especial para Hilde e o seu pai. Mas só
Hilde pode revelar qual é a sua importância.
— Isto foi ironia romântica?
— É uma pergunta sem esperança, Sofia.
— Por que?
— Nós não podemos ser irônicos. Somos vítimas indefesas dessa ironia.
Quando uma criança desenha alguma coisa numa folha de papel, não podes
perguntar ao papel o que representa o desenho.
— Deixas-me arrepiada.

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