CAPÍTULO XXXI: FREUD

...um desejo horrível, egoísta, emergira nela...

Hilde Möller Knag saltou da cama com o grande “dossiê” nos braços.
Deixou-o na mesinha de cabeceira, correu com a roupa para a casa de banho,
tomou uma ducha em dois minutos e vestiu-se a toda a pressa. Em seguida,
desceu as escadas a correr.
— Café-da-manhã, Hilde?
— Antes tenho de remar um pouco.— Mas, Hilde!
Hilde saiu a correr da casa para o jardim. Desamarrou o barco da doca e
saltou para dentro dele. Depois, começou a remar. Remou sem direção pela
enseada, primeiro com golpes enfurecidos, depois começou a acalmar-se. “Nós
somos o planeta vivo, Sofia!
Somos a grande embarcação que navega à volta de um sol ardente no
universo. Mas cada um de nós é também um barco que atravessa a vida com
uma carga de genes. Quando a tivermos transportado até ao porto seguinte, não
teremos vivido em vão...
Hilde sabia-o de cor: afinal tinha sido escrito para si. Não para Sofia, mas
para si. Tudo o que estava escrito no “dossiê” era uma carta do pai para ela.
Retirou os remos dos toletes e pô-los dentro do barco, que começou a
balouçar para cima e para baixo. As ondas batiam levemente no fundo.
Tal como o pequeno barco se movia na água de uma pequena enseada em
Lillesand, também ela era uma casca de noz na superfície da vida.Onde estavam Sofia e Alberto neste quadro? Sim, onde estavam Sofia e
Alberto?
Não conseguia aceitar a idéia de que fossem apenas “impulsos
eletromagnéticos” no cérebro do pai. Não fazia sentido que fossem apenas papel
e tinta de uma fita da máquina de escrever do pai.
Nesse caso poderia dizer que ela própria era uma aglomeração de ligações
protéicas que se tinham reunido outrora “numa pequena poça quente”. Mas ela
era mais do que isso. Ela era Hilde Möller Knag!
O “dossiê” era, de fato, um presente de aniversário fantástico. E o pai
soubera fazer ressoar nela uma corda nova. Mas o tom impertinente com o qual
escrevia sobre Sofia e Alberto não lhe agradava.
O major havia de levar uma bronca no regresso a casa. Ela devia-o
àqueles sobre os quais estava a ler. Hilde já estava a ver o pai a andar de um lado
para o outro como um garoto no aeroporto de Copenhagen.
Hilde tinha-se acalmado. Remou novamente até à doca e amarrou o
barco. Depois tomou o café-da-manhã com a mãe. Gostaria de poder dizer que o
ovo estava muito bom, mas na realidade estava um pouco mole. À noite, voltou apegar no “dossiê”. Já não faltavam muitas páginas.
Voltaram a bater à porta.
— Tapamos as orelhas? — perguntou Alberto. — Talvez parem.
— Não, eu quero ver quem é.
Quando foi à porta, Alberto foi atrás dela. Lá fora estava um homem nu.
Pusera-se numa postura muito solene, mas a única coisa que trazia vestida era
uma coroa na cabeça.
— Então? — perguntou. — O que pensam os senhores das novas vestes do
rei? Alberto e Sofia ficaram mudos de perplexidade, mas isso não fez diferença
para o homem nu.
— Vós nem vos inclinais! — exclamou.Alberto ganhou coragem:
— É verdade, mas o rei está completamente nu. O homem manteve a
mesma posição solene. Alberto inclinou-se para Sofia e sussurrou-lhe ao ouvido:
— Julga ser uma pessoa muito distinta. O homem fez uma expressão
carrancuda.
— Esta casa exerce algum tipo de censura? — perguntou.
— Infelizmente — respondeu Alberto. — Aqui estamos completamente
despertos e em plena posse das nossas faculdades mentais. Na condição
vergonhosa em que se encontra não lhe é permitido passar a soleira desta
pequena casa.
Sofia achou aquele homem pomposo, mas nu, tão cômico que desatou a
rir. Como se isso fosse o sinal secreto, o homem com a coroa na cabeça deu-se
subitamente conta de não ter nada vestido. Cobriu-se com ambas as mãos, correu
para o bosque e desapareceu. Talvez se encontrasse com Adão e Eva, Noé,
Chapeuzinho Vermelho e Winnie the Pooh.Alberto e Sofia ficaram à porta. Finalmente, Alberto disse:
— Talvez seja melhor voltarmos a entrar. Vou falar-te de Freud e da sua
teoria sobre o inconsciente. Sentaram-se em frente à janela. Sofia olhou para o
relógio e disse:
— Já são duas e meia, e ainda tenho que fazer muita coisa para a festa do
jardim.
— Eu também. Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.
— Era um filósofo?
— Podemos defini-lo como um filósofo da cultura. Freud nasceu em 1856
e estudou medicina na universidade de Viena, cidade em que passou a maior
parte da sua vida, justamente no período em que a vida cultural de Viena estava
no apogeu. Especializou-se no ramo da medicina que se chama neurologia. Em
finais do século passado — e durante a primeira metade deste século — elaborou
a sua “psicologia analítica” ou “psicanálise”.— Espero que expliques isso melhor.
— Por psicanálise entendemos quer uma descrição da psicologia humana
em geral quer um método para a cura das doenças nervosas e psíquicas. Não
tenho intenção de te fornecer um quadro completo nem de Freud nem da sua
atividade, mas a sua doutrina do inconsciente é fundamental para
compreendermos o que é um ser humano.
— Já conseguiste despertar o meu interesse. Fala!
— Segundo Freud, existe sempre uma tensão entre um ser humano e o
ambiente que o rodeia. Mais precisamente, trata-se de uma tensão, ou de um
con-flito, entre as pulsões e necessidades do homem e as exigências do mundo
externo. Não é exagerado afirmar que foi Freud a descobrir a vida instintiva do
homem, e isto torna-o um expoente das correntes naturalistas, dominantes no
final do século.
— O que queres dizer com “vida instintiva” do homem?
— Nem sempre a razão domina as nossas ações: o homem não é apenas
um ser racional como os racionalistas do século XVIII pensavam. Muitas vezes,são os impulsos irracionais que determinam o que pensamos, o que sonhamos e
fazemos. Estes impulsos irracionais podem ser expressão de pulsões profundas ou
de necessidades. Tão importante como a necessidade de sucção do recémnascido
é o impulso sexual do homem.
— Compreendo.
— Em si, talvez não fosse uma verdadeira descoberta, mas Freud mostrou
que as necessidades deste gênero podem ser “camufladas” ou “transformadas” e
dominar assim as nossas ações sem que tenhamos consciência disso. Mostrou
ainda que mesmo as crianças têm a sua forma de sexualidade. Esta constatação
da sexualidade infantil provocou na burguesia culta vienense uma reação de
repulsa que tornou Freud muito impopular.
— Não é de admirar.
— Estamos a falar da chamada época vitoriana, quando tudo o que tinha a
ver com a sexualidade era considerado tabu. Freud tinha chegado às suas
conclusões sobre a sexualidade infantil através da sua prática como
psicoterapeuta, logo, as suas afirmações tinham um fundamento empírico. Ele
tinha também verificado que muitas formas de doenças psíquicas podiam ser
reconduzidas a conflitos na instância. Gradualmente, desenvolveu um método de
cura que podemos definir como uma espécie de “arqueologia psíquica”.— O que queres dizer com isso?
— Um arqueólogo procura encontrar vestígios de um passado longínquo
escavando os diversos estratos culturais: encontra uma faca do século XVII, um
pouco mais abaixo descobre um pente do século XIV e ainda mais abaixo um
vaso do século IV.
— E então?
— Da mesma forma, um psicólogo pode “escavar” na consciência do seu
paciente com a ajuda deste, para trazer à luz as experiências que estão na origem
dos sofrimentos psíquicos. Segundo Freud, conservamos dentro de nós todas as
recordações do passado.
— Agora compreendo.
— E por vezes encontra uma experiência dolorosa que o paciente tentou
sempre esquecer, mas que permaneceu no fundo e destrói a sua resistência.
Quando essa “experiência traumática” é trazida à consciência — e apresentada
ao paciente — ele pode “libertar-se” dela e curar-se.— Parece lógico.
— Mas fui demasiado rápido. Vamos primeiro ver como Freud descreve a
mente humana. Já alguma vez viste um recém-nascido?
— Eu tenho um primo de quatro anos.
— Quando vimos ao mundo, vivemos de modo direto e sem
constrangimento as nossas necessidades físicas e psíquicas. Se não nos dão leite,
choramos e gritamos. Fazemo-lo também quando as fraldas estão molhadas. E
exprimimos diretamente o nosso desejo de contato físico e de calor humano.
Freud chama a este “princípio de prazer” “id”. Quando somos bebês somos
quase apenas “id”.
— Continua!
— O “id” está presente em nós durante toda a vida, mas pouco a pouco
aprendemos a controlar os nossos desejos e a adequar-nos às circunstâncias.
Aprendemos a adaptar as pulsões instintivas ao “princípio de realidade”. Freud
diz que construímos um eu (ou ego) que tem esta função reguladora. Mesmo se
desejamos algo, não podemos simplesmente pôr-nos a gritar até que os nossos
desejos ou necessidades sejam satisfeitos.— Claro que não.
— Pode acontecer desejarmos algo intensamente e simultaneamente o
mundo não o aceitar. Nesse caso, temos de “reprimir” os nossos desejos, ou seja,
tentamos afastá-los ou esquecê-los.
— Compreendo.
— Freud tem ainda em conta uma terceira instância na mente humana:
desde a infância confrontamo-nos constantemente com as obrigações morais
impostas pelos pais e pelo mundo exterior. Quando fazemos alguma coisa errada,
os pais dizem: “Isso não!”, ou “Que vergonha!”. Mesmo na idade adulta
trazemos conosco um eco dessas obrigações morais e dessas condenações. As
convenções morais do mundo externo parecem ter penetrado em nós e terem-se
tornado parte de nós. A isso chama Freud “super-ego”.
— Queria dizer consciência?
— Num passo, Freud diz efetivamente que o Superego se coloca perante o
Eu como consciência moral. Mas aquilo que importa a Freud é que em primeiro
lugar o superego nos dá sinal de si quando temos desejos “indecorosos” ou“inconvenientes”, principalmente se se trata de desejos eróticos ou sexuais. E,
como dissemos, Freud afirmou que esse tipo de desejos já estão presentes num
estádio precoce da infância.
— Explica-te!
— Hoje sabemos e vemos que as crianças pequenas gostam de tocar nos
órgãos genitais.
Podemos observar isso em qualquer praia. No tempo de Freud, crianças de
dois ou três anos levavam uma palmada nos dedos por isso. Nesse tempo, as
crianças ouviam constantemente: “Que vergonha!”, ou “Está quieto!”, ou “As
mãos quietas”.
— Isso está mal.
— Deste modo, cria-se um sentimento de culpa, e uma vez que este
sentimento de culpa se conserva no Superego, muitas pessoas, — segundo Freud
a maior parte — têm um sentimento de culpa em relação ao sexo. Mas os
desejos e as necessidades sexuais são uma componente natural e fundamental do
homem. E então, minha cara Sofia, surge um conflito entre prazer e culpa que
durará toda a vida.— Não achas que esse conflito se atenuou desde o tempo de Freud?
— Certamente. Mas muitos dos pacientes de Freud viviam-no tão
intensamente que desenvolviam aquilo a que Freud chamou “neurose”. Uma das
suas pacientes, por exemplo, estava apaixonada pelo cunhado. Quando a irmã
morreu devido a uma doença, ela pensou: “Agora ele está livre e podemos
casar!” Este pensamento entrou naturalmente em contradição com o superego.
Era tão monstruoso que ela o recalcou, como diz Freud.
Quer dizer que ela o empurrou para o inconsciente. Essa moça adoeceu e
apresentou graves sintomas histéricos, e quando Freud se encarregou da cura,
verificou-se que ela se tinha esquecido completa-mente da cena junto ao leito de
morte da irmã e do desejo horrível, egoísta, que emergira nela. Mas durante o
tratamento recordou-o, reproduziu aquele momento patogênico e ficou curada.
— Agora compreendo melhor o que queres dizer com “arqueologia
psíquica”.
— Então vou tentar fazer uma descrição geral de mente humana. Após
uma longa experiência na cura dos doentes, Freud chegou à conclusão de que a“consciência” constitui apenas uma pequena parte da mente humana. A parte
consciente é comparável à ponta de um iceberg que vemos sobressair da água.
Sob a superfície da água, — ou sob o limiar da consciência — há o
“inconsciente”.
— Então o inconsciente é tudo aquilo que está em nós, mas que
esquecemos ou não recordamos?
— Não temos sempre presentes na consciência todas as nossas
experiências, mas tudo o que pensamos ou vivemos e que nos vem à mente se
“pensarmos um pouco”, foi designado por Freud “pré-consciente”.
O termo inconsciente foi usado por Freud apenas para aquilo que
recalcamos, ou seja, as coisas que queremos esquecer por serem desagradáveis,
indecentes ou repugnantes. Se temos desejos ou vontades que são intoleráveis
para a nossa consciência — ou para o super-ego, — empurramo-los para o résdo-chão.
Fora com eles!
— Compreendo.— Este mecanismo funciona em todas as pessoas sãs, mas manter longe
da consciência os pensamentos desagradáveis ou proibidos exige tal esforço que
provoca problemas nervosos. Aquilo que é recalcado tenta reemergir por si na
consciência, de forma que cada vez mais energia tem de ser usada para manter
os impulsos desse gênero longe da consciência. Quando Freud deu lições sobre a
psicanálise em 1909 nos EUA, explicou com um exemplo simples o
funcionamento deste mecanismo de recalcamento.
— Conta!
— Ele disse aos ouvintes:
“Imaginemos que nesta sala se encontra um indivíduo que me perturba e
distrai rindo de um modo insolente, falando e batendo com os pés. Declaro que
assim não posso continuar a conferência e, nessa altura, alguns homens robustos
levantam-se e depois de uma breve luta lançam fora o importuno.
Ele é assim “removido” e eu posso continuar. Para que não haja mais
distúrbios, caso o indivíduo tente entrar novamente na sala, os homens que
executaram a minha vontade põem as suas cadeiras à porta, feita a remoção, e
ficam lá como “resistência”. Se imaginarmos a sala como o consciente e o
corredor como o inconsciente temos uma boa imagem do processo de
recalcamento.”— Eu também acho que é uma boa imagem.
— Mas o indivíduo quer voltar a entrar, Sofia. Isto é o que acontece, pelo
menos com os pensamentos e os impulsos recalcados: vivemos sob uma
“pressão” constante devido aos pensamentos recalcados que tentam emergir do
inconsciente. Por esse motivo, dizemos ou fazemos freqüentemente coisas sem
querer e, deste modo, as reações inconscientes dominam os nossos sentimentos e
as nossas ações.
— Podes dar-me um exemplo?
— Freud descreve muitos destes mecanismos. Por exemplo, aqueles a que
chamou “atos falhados”, quando dizemos ou fazemos coisas que tentamos
recalcar. Ele dá o exemplo de um empregado que ia brindar ao seu chefe, que
não era muito popular. Ele era aquilo a que se pode chamar “um sacana”.
— E o que aconteceu?
— O empregado levantou-se, elevou o seu copo solenemente e disse:
“Convido-vos a arrotarem pelo nosso chefe.”— Não tenho palavras.
— O empregado também não.
Na realidade tinha apenas dito aquilo que pensava sem a intenção de o
dizer. Esta expressão involuntária de sinceridade era um lapso, ou seja, uma
troca de palavras devido à semelhança. Em alemão — não te esqueças de que
Freud era vienense — o verbo “anstossen”, “beber à saúde”, é muito semelhante
a “aufstossen” que significa entre outras coisas “arrotar”. Queres ouvir outro
exemplo?
— Sim.
— A família de um pastor, que tinha muitas filhas boas e amáveis,
esperava a visita de um bispo. Acontece que este bispo tinha um nariz
extremamente grande e por isso foi imposto às moças não fazerem comentários
sobre o seu nariz. Porém, acontece muitas vezes que as crianças deixem escapar
alguma coisa, porque o seu mecanismo de recalcamento ainda não está muito
desenvolvido.
— E então?— O bispo chegou e as moças esforçaram-se o máximo para não dizerem
nada sobre o nariz. E mais ainda: tentaram nem sequer olhar para o nariz; tinham
de tentar esquecê-lo. E pensavam nisso o tempo todo. Mas quando uma das filhas
menores serviu o açúcar para o café, pôs-se em frente do austero bispo e disselhe:
“Quer um pouco de açúcar no nariz?”
— Embaraçoso.
— Por vezes, também “racionalizamos”, ou seja, damos a nós e aos
outros, para justificarmos aquilo que fazemos, motivos diferentes da verdadeira
causa, precisamente porque a causa real é desagradável.
— Um exemplo, por favor.
— Eu posso hipnotizar-te e fazer com que abras a janela. Ordeno-te
portanto que te levantes e abras a janela quando eu bater com os dedos na mesa.
Depois pergunto-te por que razão abriste a janela. Talvez me respondas
que abriste a janela porque achaste que estava calor. Mas esse não é o
verdadeiro motivo: não queres admitir para ti mesma que fizeste uma coisa por
minha ordem, sob hipnose. Neste caso estás a racionalizar, Sofia.— Compreendo.
— Quase todos os dias acontece comunicarmos, por assim dizer, com
sentido duplo.
— Eu falei do meu primo de quatro anos. Não me parece que tenha muitas
crianças com quem jogar, pelo menos fica muito contente quando o vou ver.
Uma vez disse-lhe que tinha de me apressar para voltar a casa e sabes o que me
respondeu?
— Diz!
— “Ela é estúpida”, disse ele.
— Sim, isso é verdadeiramente um exemplo do que entendemos por
racionalização: o rapaz queria dizer que segundo ele era estúpido que tivesses que
te ir embora, mas não queria admiti-lo. Por vezes, acontece também que“projetamos”.
— Traduz.
— Quando projetamos, transferimos para outras características nossas que
tentamos recalcar. Uma pessoa muito avara, por exemplo, está inclinada a dizer
que os outros são avaros. Uma outra pessoa que não quer admitir para si mesma
ter interesse por sexo, será talvez a primeira a irritar-se porque os outros têm
fixação pelo sexo.
— Compreendo.
— Segundo Freud, a nossa vida quotidiana apresenta numerosos exemplos
de ações inconscientes. Acontece freqüentemente esquecermos o nome de uma
pessoa, remexermos na roupa enquanto falamos ou mudarmos o lugar dos
objetos, aparentemente por acaso, na sala. Além disso, podemos tropeçar nas
palavras e enganarmo-nos a falar, ações que poderiam parecer totalmente
incautas. Mas, para Freud, os lapsos nem sempre são tão casuais nem tão
inocentes como acreditamos, devem ser vistos como sintomas. Atos falhados
deste tipo ou “ações casuais” podem revelar os segredos mais íntimos.
— A partir de agora vou refletir bem antes de dizer uma palavra.— Mas não conseguirás fugir aos teus impulsos inconscientes. A arte reside
em não nos esforçarmos em empurrar demasiadas coisas desagradáveis para o
inconsciente. É o mesmo que querermos tapar o buraco de uma toupeira.
Podemos consegui-lo, mas também podemos ter a certeza de que a toupeira
aparecerá numa outra parte do jardim. O mais saudável é deixar entreaberta a
porta entre consciente e inconsciente.
— Se fechamos a porta podemos ter distúrbios psíquicos?
— Sim, um neurótico é justamente uma pessoa que despende demasiada
energia para afastar da consciência aquilo que é desagradável. Freqüentemente,
são experiências particulares que esta pessoa quer recalcar: Freud chamou-lhes
“traumas”. A palavra é grega e significa “ferida”.
— Compreendi.
— Na cura do paciente, foi importante para Freud tentar abrir com cautela
esta porta fechada, ou talvez abrir uma nova. Com a colaboração do paciente
tentava trazer à luz as experiências recalcadas. O paciente não tem consciência
daquilo que recalca, mas pode desejar que o médico (ou “analista” como se diz
na psicanálise) o ajude a encontrar os traumas escondidos.— Como procede o psicanalista?
— Freud chamou-lhe a técnica da “associação livre”. Fazia o paciente
deitar-se descontraído e deixava-o falar sobre o que lhe vinha à cabeça nesse
momento, independentemente de poder parecer insignificante, casual,
desagradável ou embaraçoso. O analista parte do princípio de que, naquilo que o
paciente associa no divã, estão sempre contidas referências aos seus traumas e às
resistências que impedem que eles se tornem conscientes. É que os pacientes
preocupam-se com os seus traumas sempre — mas não conscientemente.
— Quanto mais nos esforçamos por esquecer alguma coisa, mais
pensamos inconscientemente nisso?
— Exato. Por isso é importante tomar atenção aos sinais que provêm do
inconsciente. O caminho certo para penetrar no inconsciente reside, segundo
Freud, nos sonhos. Um dos seus livros mais importantes foi de fato “A
Interpretação dos Sonhos”, publicado em 1900. Nessa obra ele afirmou que
aquilo que sonhamos não é casual: através dos sonhos os pensamentos
inconscientes tornam-se manifestos à consciência.
— Continua!
— Depois de muitos anos de experiência com os pacientes, e depois de ter
analisado os seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos os sonhos são a“satisfação” de um desejo. Podemos observar isto nas crianças, afirmou.
Sonham com gelados e cerejas. Mas, nos adultos, os desejos que o sonho quer
realizar são freqüentemente camuflados, porque, mesmo quando dormimos, há
uma censura relativamente àquilo que podemos ou não podemos fazer. Mesmo
se durante o sono essa censura, ou mecanismo de recalcamento, está
enfraquecida em relação ao nosso estado de vigília, é suficientemente forte para
deformar os desejos que não queremos reconhecer.
— É por isso que os sonhos têm de ser interpretados?
— Freud defende que devemos distinguir o sonho como o recordamos de
manhã do seu verdadeiro significado. Chamou às imagens oníricas ou seja, ao
“filme” que sonhamos, o “conteúdo manifesto” do sonho. Este conteúdo
manifesto tem por motivo acontecimentos que se deram recentemente, muitas
vezes no dia anterior. Todavia, o sonho tem também um significado mais
profundo e oculto à consciência. Freud chamou-lhe “conteúdo onírico latente”.
Estes pensamentos ocultos, de que o sonho trata, podem dizer respeito a um
tempo passado, por exemplo, a primeira infância.
— Então temos de analisar o sonho para compreendermos do que se trata.
— Sim, e quando são pessoas doentes, é interpretado com o terapeuta. Mas
não é o médico que interpreta sozinho o sonho: só o pode fazer com a ajuda do
paciente. Nesta situação, o psicanalista desempenha a função de uma parteira
socrática que está presente e ajuda durante a interpretação.— Compreendo.
— A transformação que se dá na passagem dos pensamentos oníricos
latentes ao conteúdo manifesto é chamada por Freud “trabalho onírico”.
Podemos falar de um camuflamento ou de uma codificação do verdadeiro
significado do sonho; através da sua interpretação, deve-se percorrer um
processo inverso para desmascarar ou decodificar o motivo do sonho, para
descobrir o verdadeiro tema do sonho.
— Podes dar-me um exemplo?
— Nos livros de Freud há muitos desses exemplos. Mas nós podemos
imaginar um muito freudiano e simples. Quando um jovem sonha que a sua
prima lhe envia dois balões...
— Sim?
— Não, tens que tentar interpretá-lo sozinha.— Hmm... o “conteúdo manifesto” do sonho é exatamente aquilo que
disseste: recebe dois balões da sua prima.
— Continua!
— Disseste que o material contido pode ter a ver com algo recentemente
vivido... No dia anterior, ele estava numa feira popular ou viu a fotografia de dois
balões no jornal.
— Sim, é possível, mas bastava-lhe ter visto a palavra “balão” algures ou
uma coisa que lhe fizesse recordar um balão.
— Mas quais são os pensamentos oníricos latentes, ou seja, o verdadeiro
significado do sonho? — Tu és a analista.
— Talvez desejasse apenas dois balões.
— Não, isso é pouco provável. É verdade que o sonho é a realização de um
desejo, mas um homem adulto não pode desejar ardentemente ter dois balões. E
mesmo que isso fosse um desejo seu, não teria necessidade de sonhar com isso.— Então, acho que na realidade ele desejava a sua prima, e os dois balões
são os seus seios.
— Sim, é uma explicação provável, principalmente se esse desejo é um
pouco embaraçoso para ele, de tal forma que não goste de o admitir no estado de
vigília.
— Então os nossos sonhos falam numa linguagem que é preciso
decodificar?
— Sim. Segundo Freud, o sonho é uma realização camuflada de desejos
recalcados. Aquilo que nós hoje camuflamos pode ter mudado muito desde que
Freud era médico em Viena, mas o mecanismo de camuflagem do conteúdo
onírico é o mesmo.
— Compreendo.
— A psicanálise de Freud teve uma grande importância nos anos 20,
principalmente na cura de pacientes que sofriam de distúrbios psíquicos. Mas a
teoria do inconsciente foi também muito importante para a arte e para aliteratura.
— Queres dizer que os artistas começaram a interessar-se mais pela vida
inconsciente da mente?
— Exato. Se bem que esse interesse já se tivesse manifestado na literatura
nos últimos dez anos do século passado, ou seja, antes de a psicanálise de Freud
ser conhecida. Isso significa que não foi por acaso que a psicanálise de Freud
surgiu nessa época.
— Queres dizer que fazia parte do espírito do tempo?
— Freud foi o primeiro a afirmar que não fora ele a inventar fenômenos
como o recalcamento, os atos falhados e a racionalização, mas simplesmente o
primeiro a levar essas experiências humanas à psiquiatria. Freud foi muito hábil a
servir-se de exemplos literários para ilustrar a sua teoria. Mas, como dissemos, a
partir dos anos 20 a psicanálise influencia mais diretamente a arte e a literatura.
— Como?
— Os poetas e os pintores procuraram servir-se das forças inconscientesno seu trabalho de criação. Isto é válido para os chamados surrealistas.
— E quem eram?
— “Surrealismo” é uma palavra de origem francesa e significa literalmente
“além da realidade”. Em 1924, “André Breton” publicou um “manifesto
surrealista” no qual afirmou que a arte devia provir do inconsciente, pois só assim
o artista podia obter as suas imagens oníricas com inspiração livre e tender para
uma “suprarrealidade”, na qual as diferenças entre sonho e realidade são
suprimidas. De fato, também pode ser importante para um artista destruir a
censura da consciência, para que as palavras e as imagens possam fluir
livremente.
— Compreendo.
— De certo modo, Freud tinha mostrado que todos os homens são artistas:
um sonho é uma pequena obra de arte e todas as noites criamos sonhos. Para
interpretar os sonhos dos seus pacientes, Freud tinha de atravessar uma floresta
de símbolos, mais ou menos como sucede quando interpretamos um quadro ou
um texto literário.
— E sonhamos todas as noites?— Investigações recentes mostram que sonhamos cerca de vinte por cento
do tempo em que dormimos, ou seja, duas a três horas por noite. Se somos
perturbados durante o sono, tornamo-nos nervosos e irritáveis. Isto significa, entre
outras coisas, que todos os homens têm uma necessidade inata de dar expressão
artística à sua situação existencial, e o sonho trata de nós. Somos os realizadores,
somos nós que imaginamos o enredo, somos nós que desempenhamos todos os
papéis. Uma pessoa que afirma não entender nada de arte conhece-se mal.
— Compreendo.
— Freud também mostrou que a consciência humana é fantástica. O seu
trabalho com os pacientes convenceu-o de que conservamos em algum local
profundo da mente tudo aquilo que vimos e que vivemos e todas estas impressões
podem ser trazidas à superfície. Quando temos um “vazio mental” e depois
temos isso “na ponta da língua” e por fim “nos veio à mente”, estamos a falar de
algo que estava no inconsciente e que de repente se torna manifesto passando por
uma porta entreaberta.
— Mas, por vezes, isso demora muito tempo.
— Todos os artistas têm consciência disso, mas, subitamente, todas as
portas e gavetas dos arquivos parecem abrir-se. Tudo flui por si, e podemos
escolher exatamente as palavras e as imagens de que precisamos. Isso sucede
quando abrimos um pouco mais a porta para o inconsciente. Também podemos
chamar a isso “inspiração”, Sofia. Temos então a sensação de que aquilo quedesenhamos ou escrevemos não vem de nós mesmos.
— Deve ser uma sensação maravilhosa.
— Certamente já a experimentaste. Podemos observar esse estado em
crianças muito cansadas. Por vezes, as crianças estão tão cansadas que agem de
forma totalmente desperta. De repente começam a falar, e é como se
descobrissem palavras que ainda não aprenderam. Mas apredram-nas. Essas
palavras e pensamentos estavam latentes na consciência, porém só naquele
momento, quando devido ao cansaço o cuidado diminui e já não há censura, é
que elas vêm à luz. Para um artista a situação é diferente. Mas para ele também
é importante que a razão e a reflexão não controlem aquilo que se desenvolve
melhor de uma forma livre, espontânea e inconsciente. Posso contar-te uma
pequena fábula que ilustra o que eu disse?
— De bom grado. — É uma fábula muito séria e muito triste.
— Começa!
— Era uma vez uma centopéia que com as suas cem pernas era muito boa
a dançar. Quando dançava, os animais reuniam-se no bosque para a admirar e
todos estavam muito impressionados pela sua habilidade. Só um animal não podia
suportar que a centopéia dançasse, um sapo...— Certamente tinha inveja.
— “Como é que posso impedi-la de dançar”, pensou o sapo. Não podia
dizer que não gostava da dança nem que era melhor a dançar do que a centopéia,
seria um absurdo. Por fim, tramou um plano diabólico.
— Fala!
— Escreveu uma carta à centopéia: “Ó incomparável centopéia! Sou um
devoto admirador da tua requintada dança. Gostaria de saber como te moves a
dançar. Levantas primeiro a perna esquerda número 22 e depois a perna direita
número 59? Ou começas por levantar a tua perna direita número 26 antes de
levantares a tua perna esquerda número 44? Aguardo ansiosamente uma resposta
tua. Saudações cordiais, o sapo.”
— Que horror!
— Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na
sua vida no que fazia quando dançava. Que perna movia em primeiro lugar? E
que perna vinha a seguir? O que te parece que aconteceu depois?— Acho que a centopéia não voltou a dançar.
— Sim, foi o fim. É justamente isso que pode suceder quando a fantasia é
sufocada pela razão.-É uma história mesmo triste.
— Para um artista pode ser importante “deixar-se ir”. Os surrealistas
tentaram atingir um estado no qual tudo fluísse por si. Sentavam-se em frente a
uma folha em branco e começavam a escrever sem pensarem no que estavam a
escrever. Chamaram-lhe “escrita automática”. A expressão provém do
espiritismo, onde um médium acreditava que a caneta era guiada pelo espírito de
um defunto. Mas voltaremos a falar destas coisas amanhã.
— Está bem.
— O artista surrealista também é de certo modo um médium, o médium
do seu inconsciente. Mas talvez esteja presente um elemento inconsciente em
qualquer processo criativo. Porque, o que é na realidade aquilo a que chamamos
“criatividade”?
— Não é o fato de se criar uma coisa nova?-Sim, e isso sucede quandoexiste uma colaboração entre fantasia e razão. Demasiadas vezes, a razão sufoca
a fantasia e isso é uma coisa grave, porque sem fantasia nunca nasce algo
verdadeiramente novo. Eu vejo a fantasia como um sistema darwiniano.
— Desculpa, mas não compreendi isso.
— O darwinismo mostra que na natureza nascem mutantes uns a seguir
aos outros, mas a natureza só precisa de alguns. Só alguns têm a possibilidade de
sobrevivência.
— Sim?
— O mesmo sucede quando pensamos, quando estamos inspirados e temos
muitas idéias. Um “pensamento mutante” surge a seguir a outro na nossa
consciência, se não nos submetemos a uma censura demasiado severa. Mas só
alguns destes pensamentos podem ser utilizados. Neste ponto a razão ocupa o seu
lugar, porque também tem uma função importante. Quando a caça do dia está na
mesa, não podemos esquecer-nos de ser seletivos.
— É uma boa comparação.— Imagina que tudo aquilo que nos impressionou, ou seja, toda a nossa
fonte de inspirações, passasse pelos nossos lábios! Ou abandonasse o bloco de
notas ou a gaveta da escrivaninha. O mundo afogar-se-ia num mar de idéias
acidentais e não haveria qualquer escolha, Sofia.
— E é a razão que seleciona todas as idéias?
— Sim, ou achas que não? Talvez seja a fantasia que cria uma coisa nova,
mas não é responsável pela escolha. Não é a fantasia que “compõe”: uma
composição, e qualquer obra de arte é uma composição, surge de uma
colaboração admirável entre fantasia e razão, ou entre sensibilidade e
pensamento. Há sempre algo de casual num processo criativo e, numa certa
fase, é importante não fechar a porta a essas idéias casuais. É preciso soltarmos
as ovelhas antes de começarem a pastar. Alberto ficou em silêncio algum tempo
a olhar pela janela. Sofia seguiu o seu olhar e viu uma grande multidão de
personagens de Walt Disney de todas as cores na margem do pequeno lago.
— Olha o Pateta — disse.
— E o Pato Donald e os sobrinhos... e a Margarida... e o Tio Patinhas. Vês
o Tico e o Teco? Não ouves o que eu digo, Alberto? Lá em baixo estão também o
Rato Mickey e o Pardal!
Ele voltou-se para ela:— Sim, isto é triste, minha filha.
— O que queres dizer com isso?
— Estamos aqui sentados, vítimas impotentes das ovelhas postas em
liberdade pelo major. Mas é culpa minha, fui eu a falar do jogo livre da fantasia.
— Não tens nada a censurar-te.
— Queria dizer que a fantasia também é importante para nós filósofos.
Para pensarmos uma coisa nova, temos de ter a coragem de nos deixarmos ir.
Mas eu exprimi-me de um modo um pouco vago.
— Não te preocupes.
— Eu queria dizer alguma coisa sobre a importância da reflexão
silenciosa. E ele vem-nos com estas doidices coloridas. Devia ter vergonha!— Estás a ser irônico? — “Ele” está a ser irônico, eu não. Mas tenho uma
consolação, a verdadeira pedra angular do meu plano.
— Já não estou a perceber nada.
— Falamos sobre sonhos: nisso há uma pequena ponta de ironia! O que
somos senão as imagens oníricas do major?
— Ah...
— Mas ele esqueceu-se de uma coisa.
— O quê?
— Talvez tenha consciência do seu sonho, sabe tudo o que fazemos e o que
dizemos, tal como o sonhador recorda o conteúdo onírico manifesto. É ele que o
escreve. Mas mesmo que se lembre de tudo o que dizemos um ao outro, não estácompletamente desperto.
— O que queres dizer com isso?
— Não conhece os pensamentos oníricos latentes, Sofia. Esquece-se de
que também este é um sonho disfarçado.
— Falas de um modo tão estranho...
— O major também pensa assim. E é assim porque não compreende a sua
própria linguagem onírica. Devíamos alegrar-nos com isso, porque nos dá um
mínimo de espaço para agirmos. Com esta liberdade conseguiremos escapar à
sua consciência lamacenta como um arganaz que num dia quente de sol sai da
sua toca.
— Achas que conseguimos?
— Temos de conseguir. Dentro de dois dias dar-te-ei um novo horizonte, e
nessa altura o major já não saberá onde estão os arganazes e onde vão aparecer.— Mesmo que sejamos apenas imagens oníricas, eu sou à mesma uma
filha. São cinco horas. Tenho que ir para casa preparar a festa de jardim.
— Mmmm... podes fazer-me um pequeno favor enquanto vais para casa?
— O quê?
— Tenta atrair a atenção.Tenta fazer com que o major não te perca de
vista durante todo o caminho para casa. Tenta pensar nele quando chegares a
casa — assim, ele também pensará em ti.
— Para quê?
— Desse modo, posso trabalhar no meu plano sem ser perturbado.
Mergulharei nas profundezas do inconsciente do major, Sofia, e ficarei lá até nos
voltarmos a ver.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo